“Marx incluiu a reflexão sobre o fenômeno artístico no interior de sua concepção ontológica:
a arte, assim, foi pensada como parte integrante do processo de
humanização, como forma específica pela qual os homens se objetivam.
Ficam assim anunciadas as possíveis funções da arte:
humanização dos sentidos, forma de conhecimento
e intervenção na realidade social”
(Celso Frederico – Ensaios sobre Marxismo e Cultura)
As últimas manifestações de rua, com todos os cuidados sanitários que o momento exige, retomam uma disputa fundamental para a derrubada do governo Bolsonaro. Enfrentar o bolsonarismo, combater o neofascismo nas ruas e apresentar uma alternativa à esquerda são os principais desafios da resistência nesse cenário de barbárie, com a violência da política genocida que vivenciamos.
Durante todo o período da pandemia, o setor de cultura tem sido drasticamente afetado com o desemprego ou redução substancial das atividades laborais. Ao mesmo tempo, assistimos a um processo de intensivas discussões em torno das políticas públicas de cultura para o fomento à renda emergencial mensal aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura.
A Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/2020) (1), que prevê auxílio financeiro ao setor cultural, dispondo sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública, foi um importante marco de conquista dos(as) trabalhadores(as) da cultura em nosso país. E mais do que uma medida pontual, essas políticas necessitam se consolidar como política permanente, compreendendo as contribuições culturais e de circulação financeira que esse setor mobiliza em várias frentes de trabalho.
Foi também na pandemia que assistimos, de forma mais perceptível, a função da arte nas articulações das nossas subjetividades e objetividades. O isolamento social, acompanhado das consequências psicológicas que o momento impôs, possibilitou a leitura mais qualificada sobre o potencial que as expressividades artísticas produzem nas emoções cotidianas, nas leituras sobre a realidade desigual e contraditória e, também, na disputa ideológica sobre os sentidos da vida e a compreensão sobre a construção da humanidade.
Arte é manifestação dos sentimentos com intencionalidades construídas para atingir nossos sentidos. Arte é parte da cultura e a cultura é produto das relações produtivas do ser humano sobre a natureza. A cultura, portanto, é consequência da existência humana, fruto da vida concreta na sociedade em que vivemos e das condições, principalmente sociais que nos circundam (2).
Assistimos em nossos celulares, computadores e televisões inúmeras iniciativas artísticas capazes de nos sensibilizar e de imprimir esperança em nossas vidas. Espetáculos teatrais e de dança, apresentações musicais, charges, tirinhas, colagens, projeções visuais e audiovisuais em prédios, poesia, dentre outras modalidades artísticas fizeram e fazem parte de instrumentos possíveis para a intervenção na realidade social.
Newton Duarte (3), em suas leituras acerca da função social da arte, a partir de Vygotsky e de Lukács, traz reflexões compreendendo a Arte como manifestação sensível do espírito, onde ela exerce uma função mediadora, unindo o sensível e o inteligível; o finito e o infinito; o subjetivo e o objetivo; a natureza prisioneira de si mesma e a liberdade de pensamento. Para Duarte, a Arte também pode contribuir na libertação das malhas da alienação social. Evidentemente que a arte não pode ser reduzida às demandas do cotidiano, mas ela pode fazer provocações para novas ações. Portanto, a Arte se comporta dialeticamente a partir das mediações que envolve reflexão da vida e crítica a vida.
Os atos do dia 29 de maio (29M), 19 de junho (19J) e 3 de julho (3J) foram recheados de intervenções artísticas que impulsionaram uma dinâmica potencializadora para as manifestações de rua no país. Os atos monótonos, frios, e unicamente com falas sequenciais repetitivas talvez não cumpra o papel efetivo de dialogar com nossa classe e agitar fragmentos de um programa para o nosso povo. A arte nas manifestações, além de dar ânimo e energia para os atos na rua podem cumprir também uma função educativa de nossas subjetividades, contribuindo para nossa formação e produção do pensamento crítico. O lúdico pode assumir um caráter transformador das nossas emoções e ações.
Um destaque especial nos últimos atos tem sido a manifestação de expressividades artísticas da cultura popular. A cultura popular é também sinônimo de resistência, podendo fazer enfrentamento à dominação de classes, nos diversos modos de expressão. Antonio Augusto Arantes (4) defende que a resistência ocorre quando a participação nos diversos espaços alternativos, fragmentários desenvolvem as suas formas de expressão, a partir das suas maneiras de pensar, de agir, de fazer e, sobretudo, de organizar conjuntos de relações sociais capazes de tornar viáveis, política e materialmente, as suas atividades.
A esquerda brasileira pode avançar na compreensão da arte em suas diversas dimensões, sem se ater ao utilitarismo, ampliando suas leituras que envolvem a presença de artistas e suas produções nas manifestações (e para além delas). É possível combinar forma e conteúdo nas disputas políticas sem abandonar princípios revolucionários. A estética também é política. Nossas cores, nossos corpos, nossos sons tem ecos de Resistência!
Indicações de leituras e filme:
CELSO, Frederico. Ensaios sobre marxismo e cultura. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2016.
ESTEVAM, Douglas; COSTA, Iná Camargo (org.) Revolução, arte e cultura. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas tendências de estética marxista. 2. ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2013.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Tradução de José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. 1. ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2010.
Filme NO. 1h 57min / Histórico, Drama. Direção: Pablo Larraín.
*Micael Carvalho é militante da Resistência PSOL-MA, professor de música e membro da diretoria da APRUMA, seção sindical do ANDES-SN.
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