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OPRESSÕES

Um governador gay no Rio Grande do Sul

Na noite de 1º de julho, o governador Eduardo Leite (PSDB/RS) comentou sobre sua orientação sexual em uma entrevista para o programa Conversa com Bial.

William Gonçalves Rolim*, de Porto Alegre, RS

Palácio Piratini, sede do governo.

Três dias após 28 de junho, data internacional que celebra o orgulho LGBT, Eduardo Leite entra para os assuntos mais comentados do Twitter após declarar ser gay, em entrevista ao jornalista Pedro Bial. A notícia impactou de diversas formas. Comentários que o saudavam, o aclamavam ou até mesmo o criticavam, engajaram o tópico nas redes sociais. Mas que sentidos estão, de fato, implicados nessa declaração?

O gesto de “se assumir” em rede nacional, em um contexto tão conservador e em um estado que ainda é produtor de quadros políticos que destilam o ódio em suas falas é, realmente, de coragem. Ainda assim, não foi, como se comentou nas redes sociais, o primeiro governador do país assumidamente LGBTQIA +. No Rio Grande do Norte, a única mulher a se eleger governadora já ocupava esse posto. Fátima Bezerra (PT), professora e com origem no movimento sindicalista, tem sua referência para o movimento LGBTQIA + potiguar há algum tempo.

É importante ressaltar, antes de tudo, que a fala do governador assume um marco positivo, na atual conjuntura e na história do estado gaúcho. Em um contexto político onde a LGBTfobia e o discurso de ódio são imperativos da extrema-direita, “se assumir gay” é, de fato, um elemento que vai na contramão, principalmente vindo do chefe do Piratini. Esse, porém, é um elemento ínfimo perto da agenda de reivindicações do movimento de luta LGBTQIA +.

Ainda vivemos no país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo e a violência é a tônica do cotidiano de pessoas da comunidade LGBTQIA +. No Rio Grande do Sul, por exemplo, podemos perceber esses números através do Relatório Final da Comissão Especial para a análise da violência contra a população LGBT da Assembleia Legislativa do Estado, presidida pela Deputada Estadual Luciana Genro (PSOL). O documento, produzido em 2019, traz uma relação de dados de denúncias de violência por motivação LGBTfóbica dirigidas ao Disque 100. Destas, 27,79% dos casos aconteceram na rua e 26,87% nas casas das vítimas. A agenda política pelo direito à vida, portanto, ainda precede qualquer representatividade vazia. Aqui vale, também, discutirmos em que termos se dá essa representatividade, que apresenta limites não só por estar localizada em apenas uma das letras da sigla, mas também pela ausência de compromisso do governador com a pauta LGBTQIA +. Ainda enfrentamos, sobretudo no Rio Grande do Sul, estado com um considerável grau de conservadorismo, desinformação e retrocessos sobre o tema.

Nunca foi centro do debate para o governador, porém, o combate aos projetos de lei que ficaram conhecidos como Escola Sem Partido. Tais projetos, que na prática propõem minar o debate de gênero e sexualidade nas escolas, são um retrocesso contra potenciais catalisadores de combate à LGBTfobia, ao machismo e a formação para a diversidade na educação básica, além de ser objeto constante de reivindicação do movimento de luta contra as opressões. Na agenda política do governador, por exemplo, tais temas nunca constaram entre as prioridades.

Então candidato a governador, se aliou aos setores mais reacionários da política brasileira no segundo turno, apoiando Jair Bolsonaro.

Muito pelo contrário, em 2018, então candidato a governador, se aliou aos setores mais reacionários da política brasileira e nas eleições presidenciais para o segundo turno apoiando Jair Bolsonaro. E aqui não podemos incorrer em falsas polêmicas, pois as falas desenvolvidas no campo ideológico do bolsonarismo e do fascismo não são de ordem puramente discursiva que não impacta na materialidade. As falas do presidente genocida que atualmente dirige o país em direção ao caos representam parte importante da estratégia autoritária do governo, que tem como alvo as mulheres, a população negra e LGBTQIA + para atacar, inclusive, os setores de esquerda.

Esse elemento nos evidencia a máxima que diz “não basta ser LGBTQIA +”. É preciso ter compromisso com a luta de uma comunidade que sofre cotidianamente com a opressão, sendo expulsa de casa ou até mesmo constrangida nos serviços de saúde. Eduardo Leite, por exemplo, afirmou em sua entrevista que esse tema diz respeito unicamente a sua vida privada, mas nós que sofremos com a violência física e psicológica cotidiana sabemos que, politicamente, o tema diz respeito ao todo da sociedade. Muito mais do que o direito de circular por espaços de festa e lazer, diz respeito ao direito de existir em nossas diversas identidades e sermos respeitados por elas. A luta da comunidade é também pelo direito de pessoas trans acessarem os procedimentos do processo transsexualizador pelo SUS, por exemplo. Essa luta, entretanto, está profundamente alicerçada na defesa da rede de direitos sociais.

Na esteira do tema dos direitos sociais da população pobre e oprimida, somos levados a um outro debate: podemos criticar Leite pela sua política de ataque aos trabalhadores e privatização e desmonte das estatais no estado do Rio Grande do Sul? A resposta, ainda que pareça óbvia, precisa ser dita. Sim, e muito! Eduardo Leite fazer parte de um grupo oprimido não o faz aliado das trabalhadoras. Muito pelo contrário, nos últimos meses vimos a resistência dos professores estaduais que lutavam contra a tentativa do governo do estado de abrir as escolas em um estágio da pandemia no qual os números de mortes continuavam subindo e a vacinação não avançava com a mesma velocidade. Em paralelo, vimos o governador encampar a privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) e a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), esta última sendo leiloada a preço de banana.

Como dito anteriormente, ser LGBTQIA + não significa ter um compromisso com a luta desse grupo nem com os direitos dos trabalhadores, entretanto lutar pelo movimento deve significar a luta contra as políticas neoliberais. Isso se dá porque tais políticas aprofundam a situação de degradação das condições de vida das pessoas, em detrimento da manutenção das taxas de lucro. A eximição do Estado em relação à garantia de serviços públicos, a concessão destes à iniciativa privada, o desmonte dos serviços públicos de saúde e educação e a degradação da rede de proteção social duramente conquista nas últimas décadas vão na contramão do avanço dos direitos LGBTQIA +, dificultando, principalmente, a vida da parcela negra e pobre da comunidade. De fato sua declaração e seu gesto de iluminar o Palácio do Piratini com as cores da bandeira LGBTQIA + não alteram em nada a situação reacionária que vivemos hoje. Investir no cruzamento de dados das condições de vida dessa população com soluções efetivas que não vendam nossos direitos, sim.

Nosso compromisso, longe de reivindicar Eduardo Leite, passa por se colocar contra qualquer discurso de ódio, inclusive contra ele

Todo esse balanço negativo, entretanto, não significa permissão para utilizar-se da homofobia ao criticar Eduardo Leite. A homofobia, mesmo que para atacar figuras da direita, não fortalece, em nada, o movimento de luta contra as opressões. Tampouco enfraquecê-lo a partir desse tema contribui para a luta dos trabalhadores ou para a ocupação da política gaúcha pelo campo da esquerda. Pelo contrário, abre espaço para e fortalece aqueles que ainda encampam um combate contra a chamada “ideologia de gênero”, que ainda dizem que filho LGBTQIA + merece apanhar, que destilam discursos de ódio e desenvolvem uma política autoritária de controle dos nossos corpos. Em outras palavras, ainda que sejam direcionadas diretamente a ele enquanto indivíduo, toda comunidade LGBTQIA + se enfraquece nos discursos ofensivos e opressores direcionados ao governador. Para que fique nítido, porém, sabemos que Leite fez parte da situação que nos levou até esse cenário. Seu apoio no segundo turno das eleições de 2018 ignorou parte significativa da plataforma de campanha de Jair Bolsonaro que era declaradamente LGBTfóbica. O que está sendo discutido aqui, entretanto, não passa nem por perdoar os erros de Leite, tampouco culpabilizá-lo por sua própria opressão. Nosso compromisso, longe de passar por reivindicar Eduardo Leite, passa por se colocar contra qualquer discurso de ódio, inclusive contra ele, e em defesa dos direitos sociais por entender que essa é uma parte importante da nossa luta contra o fascismo e o capitalismo.

 

*Militante do Afronte e da Resistência PSOL