A Câmara de Vereadores de São Paulo tomou a infeliz decisão de negar a emenda apresentada por Erika Hilton e o Thammy Miranda, com o apoio da Bancada Feminista do PSOL, junto à bancada do PSOL e do PT, entre outros setores, que propunha a inclusão de pessoas transmasculinas, binárias ou não, ao projeto de lei que deve instituir a distribuição gratuita de absorventes nas escolas públicas.
A decisão foi tomada no último dia do mês do orgulho LGBTQIA+, dois dias depois do aniversário de 52 anos da rebelião de Stonewall, e expressa o peso dos setores conservadores e fundamentalistas na Câmara de São Paulo. A retomada das lutas de rua nas últimas semanas não nos autoriza a subestimar o peso e a influência políticos que tais setores conservam na sociedade de conjunto.
Apenas mulheres menstruam?
O principal argumento apresentado foi de que “apenas mulheres menstruam”, de que homens não seriam capazes disso, e que o substitutivo apresentado pela a emenda proposta (“pessoas que menstruam” substituindo “mulher”) seria excludente para com as mulheres cis.
Em primeiro lugar, vamos a alguns elementos de ordem prática: pessoas transmasculinas, e de identidade de gênero não feminina em geral, podem menstruar, bem como pessoas intersexo, que podem ter um aparelho reprodutivo capaz de menstruar, independentemente da sua identidade de gênero ou do gênero que consta em seus documentos. Inclusive, vale dizer que no nosso país o direito de retificar o gênero em nossos documentos sem necessidade de processo judicial é garantido por decisão do STF desde 2018. Isto quer dizer, concretamente, que o Estado brasileiro já reconhece a existência de pessoas que não são mulheres que menstruam. Esse fato, por si só, já torna absolutamente bizarra a decisão tomada pela câmara, que, em última instância, nega o acesso legítimo de pessoas trans a uma política pública importante. Não deveria ser necessário se afirmar mulher, negar nossa identidade de gênero, para ter acesso ao direito garantido pelo PL, isto é um ato de transfobia institucional grotesco. Em decisão recente, que ainda deve ser submetida ao plenário do STF, o ministro Gilmar Mendes determinou que o SUS deve fornecer serviços de saúde de acordo com o “sexo biológico declarado”, isto é, para que pessoas trans possam ter acesso a estes serviços independentemente do gênero que consta em seus documentos[1].
Em segundo lugar, uma parte importante do argumento é que retirar a palavra “mulher” do PL seria uma forma de invisibilização, de negação dos direitos das mulheres. Em um país que registrou cinco feminicídios por dia em 2020[2], no qual as mulheres recebem, em média, 77% do salário de homens para exercer a mesma função [3], não pode ser que a preocupação mais legítima e central seja garantir a associação fundamental e exclusiva entre feminilidade e menstruação, ao custo de negar um direito que deveria ser garantido às pessoas trans.
Um belo exemplo das hermanas argentinas: quando uma pessoa trans avança, nenhuma mulher cis retrocede
Um belo exemplo a ser seguido é o da luta das mulheres argentinas, a maré verde que conquistou o direito ao aborto legal, seguro e gratuito na Argentina em 2020: para pessoas com útero [4].
A luta conduzida ao longo de décadas pelo movimento feminista argentino culminou na grande vitória de 2020. O movimento era majoritariamente de mulheres cis, sem sombra de dúvidas, mas evidentemente a unidade em torno da pauta extrapolou as mulheres cis e o projeto de lei aprovado deliberadamente inclui todes aqueles com “capacidade de gestar”, incluindo uma ampla gama de identidades de gênero que terão acesso ao direito com reconhecimento estatal de serem quem são.
Ser mulher extrapola as características biológicas, entre as próprias mulheres cis existe uma ampla gama de variedades de corpos. Há um sem número de mulheres cis que não menstruam e não são capazes de gestar.
A pergunta que podemos nos fazer é: a garantia do acesso a um direito e o reconhecimento pelo Estado da existência de pessoas trans afeta negativamente de alguma maneira a legítima luta por direitos das mulheres cis? Ou, pelo contrário, fortalece a luta contra a regulação machista, LGBTQIAfóbica e capitalista de nossos corpos de conjunto? A associação direta entre os corpos biológicos das mulheres cis e seu gênero é algo que positivo ou algo que fortalece esta regulação e o sistema sexo-gênero que nos oprime de conjunto? O reconhecimento da existência de pessoas trans e a desessencialização dos gêneros são coisas que fortalecem a nossa luta conjunta pela emancipação. Incluir nas leis brasileiras mecanismos que permitam a inclusão de pessoas trans seria um avanço global da luta contra o machismo e a LGBTQIAfobia em nosso país. O movimento de mulheres se fortalece com essa unidade de pautas.
[2]Por dia cinco mulheres foram vítimas de feminicídio em 2020, aponta estudo (cnnbrasil.com.br)
[3]Mulheres ganham 77,7% do salário dos homens no Brasil, diz IBGE (cnnbrasil.com.br)
[4]Argentina: aborto legalizado para pessoas com útero! – Esquerda Online
Comentários