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OPRESSÕES

Argentina: aborto legalizado para pessoas com útero!

Lucas Marques, de Campinas, SP

Na madrugada de 30/12 foi dado um passo histórico dos direitos das pessoas com útero na América Latina. Sim, você leu certo: das pessoas com útero. A Argentina não apenas legalizou o aborto, mas o definiu como um direito das mulheres e pessoas de quaisquer identidades de gênero capazes de gestar.

Uma reflexão sobre direitos reprodutivos

Tem sido cada vez mais comum relatos de homens trans ou pessoas transmasculinas em geral que decidem engravidar e ter filhos. Isso ocorre pelo fato de cada pessoa vivenciar sua identidade de gênero de maneira muito particular: enquanto para alguns homens trans isso pode ser a própria imagem do pesadelo, para outros pode ser a oportunidade de viver um sonho, e isso não os torna menos homens.

Essa questão gera uma série de desdobramentos, que levantam problemas muito concretos: no momento de registrar a criança, o pai acaba sendo obrigado a aparecer como a mãe no documento, por exemplo. Podemos fazer uma longa lista de problemas desse tipo que envolve o cissexismo estrutural de nossa sociedade, que é inteira construída sobre o pressuposto de corpos e vivências cis e estereótipos do que deve ser a vivência de uma pessoa trans.

Pouco se discute sobre o tema da saúde sexual das pessoas trans, em especial das transmasculinas, o que é divulgado sobre isso? Muitos homens trans e pessoas transmasculinas se relacionam com homens cis e pessoas transfemininas, isso pode impor a necessidade de métodos contraceptivos, além de levantar o problema da gravidez indesejada. A terapia hormonal não é realizada por todos e para aqueles que a realizam, a testosterona não funciona como método contraceptivo. Esse cenário gera um sem número de dúvidas nas pessoas transmasculinas, em especial as mais jovens: preciso de métodos contraceptivos? Quais os métodos contraceptivos mais adequados? Posso tomar pílulas anticoncepcionais? De que tipo? 

Além disso, é importante não esquecer que as pessoas transmasculinas também são vítimas sistemáticas de estupros corretivos.

Argentina também é vanguarda nos direitos das pessoas trans na América Latina

Para quem está acostumado com a realidade brasileira, acompanhar a votação da lei do aborto no senado argentino surpreendeu: o tema das identidades de gênero apareceu na fala de diversos senadores, além de aparecer no texto da lei.

A Argentina foi o primeiro país da América Latina a aprovar o casamento igualitário (2010) e conta com uma lei de identidade de gênero aprovada em 2012 [1], importante vitória dos movimentos sociais, que garante o acesso à retificação do nome nos documentos sem necessidade de laudos ou ações judiciais, mas também toda uma série de direitos, como a obrigatoriedade do tratamento adequado ao gênero e acesso a serviços de saúde. A lei define o que é ser uma pessoa trans e os direitos implicados a partir disso. O país também adotou cotas para pessoas trans no serviço público em 2020 [4], medida importantíssima para garantir emprego e renda para uma população que tem grandes dificuldades de ser empregada no mercado de trabalho formal. 

Aqui no Brasil Jean Wyllys e Érika Kokay apresentaram, em 2013, a Lei João Nery de Identidade de Gênero [2], que acabou sendo engavetada. O direito de retificar os documentos sem a necessidade de processo judicial de uma série de laudos veio apenas em 2018, através de uma decisão do Supremo Tribunal Federal [3], com muita luta dos movimentos sociais.

Ainda há muito a fazer

Como em toda luta, há idas e vindas: em outubro deste ano a justiça argentina decidiu retirar o agravante de travesticídio do caso do crime de ódio cometido contra a ativista travesti Diana Sacayán [5]. A sentença era histórica por ser a primeira do tipo, mas na revisão do caso foi definido como um feminicídio, mas foi mantida a sentença de prisão perpétua ao assassino Gabriel David Marino. A justiça alegou falta de elementos para caracterizar o caso como um travesticídio. Diana foi impulsionadora da lei que garante cotas para pessoas trans no serviço público, primeira do tipo no mundo.

De acordo com o  Observatório Nacional de Crimes de Ódio LGBT, foram registradas 177 mortes por crimes de ódio a LGBTQIA+ na Argentina em 2019 [6] e, ainda que o país conte com uma das legislações mais avançadas na América Latina, a justiça falha em sua implementação, bem como o governo falha na garantia plena de direitos.

Agora é lei!

A vitória da legalização do aborto é uma grande conquista para todo o movimento feminista latinoamericano, e o fato de contemplar expressamente os direitos de pessoas trans capazes de gestar é uma conquista política sem paralelo em nosso continente, além de ter um profundo significado para as pessoas trans de conjunto. A luta feminista no país vizinho é um sopro de esperança para o nosso povo que vem sofrendo os duros golpes da ofensiva burguesa e os efeitos brutais da pandemia de Covid-19 sob o governo genocida de Jair Bolsonaro.

Foi necessária uma ampla construção de base e muita luta do movimento feminista argentino para a obtenção dessa vitória, que deve servir de exemplo para as lutas em nosso próprio país. Temos grandes desafios à nossa frente, as mulheres argentinas nos mostram o caminho!

Agora é lei!

 

[1] InfoLEG – Ministerio de Economía y Finanzas Públicas – Argentina

[2] prop_mostrarintegra (camara.leg.br)

[3] Trans consideram vitória decisão do STF sobre mudança no registro civil | Agência Brasil (ebc.com.br)

[4] Argentina adota cota para trans e travestis no serviço público – Internacional – Estado de Minas

[5] Justiça argentina retira agravante de travesticídio no | Internacional (brasildefato.com.br)

[6] Observatorio Nacional de Crímenes de Odio LGBT_Informe 2019.pdf – Google Drive