Por Douglas Santos Alves
A chegada do mês de junho, mês da diversidade e da luta de pessoas LGBTs, oferece uma ótima oportunidade para refletir sobre algumas confusões na concepção de luta política dos dissidentes sexuais e seus decorrentes riscos. A ideia de representatividade que está norteando posicionamentos e ações do ativismo deve ser seriamente questionada. A relação cada vez mais confusa entre Estado, mercado e as esferas de atuação da militância também. E como resultado disso, o papel a ser cumprido pelo movimento LGBT como sujeito político e a própria ideia do que seja um sujeito político de transformação social.
Mercado e Estado disputam LGBTs
A crescente participação de pessoas LGBTs, assim como negras/os e mulheres, na publicidade de grandes marcas e na esfera de mercado em geral está cada vez mais comum. Da propaganda de logomarcas dos mais variados produtos e empresas até programas de auditório e reality shows de televisão, a aparição de indivíduos e/ou símbolos identificados com grupos oprimidos é celebrada como uma imensa vitória da luta contra a opressão. Alguns dizem “é preciso ocupar todos os espaços”. Esse raciocínio está definitivamente equivocado, e isso se deve a alguns motivos específicos.
O primeiro diz respeito a como se entende a luta política contra opressão. O combate às diferentes formas com que se impõem relações opressoras é, antes de mais nada, uma batalha que pertence à esfera da política. Isso significa, portanto, que pertence ao espaço público e diz respeito às coletividades.
Se na sociedade estão estruturadas relações sociais conflitantes, que produzem interesses antagônicos, então deve-se dizer que essas relações organizam-se sob formas de dominação e exploração. Se existe, e existe, divisão de grupos e classes, então fazer publicidade para um banco, uma empresa multinacional ou uma grande emissora de televisão, significa atuar para os interesses de um dos lados. Imbuída de boa vontade, alguém poderia dizer que, de todo modo, a causa LGBT também ganha quando se ocupa aquele espaço.
O problema é que aquele espaço é o mercado, que opera com leis próprias que nada tem a ver com luta política. Ao levar as bandeiras dos oprimidos para essa esfera pode-se crer que o oprimido está fazendo um tipo de troca ou barganha na qual é possível ambos os lados ganharem. Porém, isso significa acreditar na ideia de negociação. Ao agir sob as regras inerentes à esfera das negociações de mercado deve-se aceitar que as partes interessadas estão em condições de igualdade e são igualmente livres para celebrar seus contratos. Essa é a premissa básica do liberalismo burguês e do livre-mercado.
Mas, se somos todos iguais então a opressão não existe ou é muito menor do que se imagina. Com certeza os poucos avanços conquistados nos últimos 15 anos, por mais importantes que sejam, e o são, não nos tiraram da condição desesperadora de alvos privilegiados de discriminação, violência e morte.
Portanto, deve-se dizer em alto e bom som, não somos iguais e tampouco livres, e por isso é preciso lutar.
O mercado é o terreno dos dominantes e falar em representatividade soa ingênuo. Agir nesse terreno significa estar sempre em desvantagem, subordinar-se às suas regras ou mesmo ser assimilado pela sua lógica. O raciocínio é simples: quem está ganhando é a marca que está sendo beneficiada com a publicidade dos oprimidos e não o indivíduo que vende a sua identidade ou a sua imagem para emprestar legitimidade à marca da empresa.
A segunda questão diz respeito à projeção de casos individuais e isolados de pessoas oprimidas como “exemplos de sucesso”. O uso de casos isolados cumpre algumas funções como a reificação das identidades e o reforço da meritocracia.
Sem o perceber, intelectuais e artistas que se identificam com grupos subalternizados, quando atingem certo patamar de celebridade, fecham contratos com algumas das marcas mais famosas do mercado. Roupas de grife, bancos, aplicativos e emissoras televisivas, todos compram a identidade dessas pessoas para venderem junto com suas mercadorias. Trata-se de agregar valor ao produto. (existem casos onde os produtos e marcas em questão são símbolos de distinção social e servem para separar oprimidos e opressores, e são também muito caros, a ponto de serem inacessíveis para os oprimidos que os “garotos e garotas propaganda” dizem representar).
Identidades e meritocracia
Neste mês, a indústria publicitária está “lavada” com as cores do arco-íris tal como o lilás saturou as mídias em março e o mês de maio foi tomado pelos simbolismos negros. As identidades tornam-se mercadorias elas mesmas, e entram na esfera mercadológica sendo compradas e vendidas com a finalidade do lucro.
Diante disso, alguns diriam que ao menos aquela pessoa conseguiu subir, adentrar em um espaço que lhe era negado, e isso abre a possibilidade para os demais buscarem o mesmo. Mais uma vez uma noção distorcida de representatividade, contraditoriamente ligada à meritocracia. A mensagem é simples e conhecida: se um conseguiu, todos podem conseguir. Mas o que não é dito é que se todos podem, então somos todos iguais e livres, portanto não existe opressão nem exploração. O diferencial é o esforço e o sucesso é a medida do mérito individual. Nesse caso, é cada um por si, não há motivo para luta política e que vença o melhor.
O que estamos debatendo aqui é o assédio que o capital faz junto aos oprimidos, tentando assimilar aqueles indivíduos mais destacados, com o principal do “marcadores sociais de diferença”: o sucesso. Também neutralizar os demais por meio da confusão ideológica e, ao fim, lucrar sobre os subalternos.
É assim que se promove a total confusão entre o interesse individual privado de pessoas que estão ganhando muito dinheiro (em alguns casos muito mesmo!), e o interesse político coletivo de grupos sociais subalternizados e estigmatizados. Quando um sujeito oprimido vende seu trabalho para fazer publicidade a favor do capital ele está atuando em nome do seu interesse privado. A legitimidade ou não disso é outra discussão. Contudo, seria um erro confundir sua atuação movida pelo interesse particularista, com a atuação política em favor da causa coletiva dos oprimidos com os quais ele diz se identificar. Não há essa relação direta de representatividade.
Todo corpo é político?
Por fim, o último ponto de confusão está na particularidade em si que distingue o oprimido dos “normais”: seu próprio corpo.
Foi popularizada a ideia de que toda pessoa é um “corpo político”. A premissa disso é que a simples presença de alguém incide nas relações de poder onde se encontra. Tal ideia sugere que a ocupação de espaços hegemônicos por corpos desinteressados e diferenciados (efeminados, transgenerificados, intersexuados, etc) é, em si, suficiente para produzir alterações políticas efetivas nas relações de dominação.
Dada a já demonstrada facilidade de assimilação pelo capital, não faz sentido crer nessa ideia. Os corpos, ou pessoas, são capazes de ter uma atuação deliberada, ou seja, pretender produzir efeitos políticos específicos dentro da totalidade das relações de poder e dominação que os oprimem.
Não basta a mera presença de um corpo marcado pelo preconceito para se fazer política. Urge tomar parte nas relações de poder e dominação que organizam as relações sociais estruturadas sob o capital.
Isso significa pensar programa político, formas de organização dos grupos oprimidos, arenas de batalha, aliados, inimigos etc. Trata-se de intencionalidade, ou seja, de uma vontade consciente e decidida de combater alvos nítidos e produzir resultados precisos.
Não existe ação política desinteressada. Em última instância, o problema é a constituição dos oprimidos em sujeitos políticos efetivos.
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