A aplicação das resoluções estabelecidas pelo 3° Congresso encontrou não pouca resistência em um ambiente marcado pelas ideias, ainda em voga, do infantilismo de esquerda.
Na Itália, as dificuldades se deram em razão do papel nocivo exercido por dirigentes esquerdistas como Amadeo Bordiga, que acabou ficando à frente do PCI depois de liderar a ruptura da ala abstencionista com o PSI. Mesmo depois do 3° Congresso o PCI seguiu renitente em aplicar a nova tática1 aprovada naquela ocasião.
O PCI está de fato convencido da inevitabilidade da revolução, (…). Entre seus dirigentes, (…), Amadeo Bordiga tem a ideia de que o fascismo, esta “contrarrevolução branca”, como ele insiste em dizer, vai destruir a social democracia e assim pavimentar o caminho, acelerar o resultado final – porque, de toda forma, a revolução terá que passar sobre o cadáver do PSI (Broué, 1997, p. 248).
Depois de dois anos seguidos de ofensiva do proletariado italiano, a burguesia desatou a contra-ofensiva no país. Nesse contexto, cumpriu papel destacado a ação dos bandos fascistas conhecidos como Camicie nere ou Camisas negras. Sob o comando do líder contrarrevolucionário Benito Mussolini, esses bandos atuavam como tropa de choque anti-proletária perseguindo lideranças socialistas, agredindo ativistas, bombardeando sedes sindicais e dispersando manifestações. Mas, imerso no total esquerdismo, o PCI subestimou o risco:
O Partido Comunista não tinha uma noção exata da extensão do perigo fascista, embalava-se com ilusões revolucionárias, foi irremediavelmente hostil à política de frente única, foi atingido, em suma, por todas as doenças infantis (Trotsky, 2011, pp. 191-195).
Assim, a resistência oferecida por parte da esquerda italiana, que apesar de contar com dois grandes partidos, o PCI e o PSI, além de vários sindicatos, se deu de forma fragmentada, portanto precária. Essa situação foi decisiva para que Mussolini conseguisse render o país sem muita dificuldade e arrancar da monarquia sua nomeação como primeiro-ministro em 1922, o que lhe serviu como primeiro passo para a instauração de uma ditadura fascista ao longo dos anos seguintes.
Na Alemanha, cuja seção local também seguia hegemonizada por dirigentes esquerdistas, poucos dias depois do 3° Congresso da IC ocorreu em Jena o congresso nacional do KPD2. Nessa ocasião os militantes comunistas rechaçaram as principais teses sobre tática aprovadas pelo 3° Congresso da IC e nenhum militante favorável à resolução internacional foi eleito para a direção.
Também é verdade que a disposição por parte da social-democracia para conformar uma frente única era limitada. Ademais, como dificuldade suplementar, a aplicação da nova tática não pôde contar com o auxílio de quadros mais lúcidos como Levi ou Serrati, que ficaram de fora da Internacional3. A exceção se deu somente entre as seções comunistas da Suécia e da Suíça.
Primeiras inflexões no KPD
Contudo, pelo menos na Alemanha, os mesmos militantes que haviam rechaçado a nova tática no Congresso de Jena, se viram impelidos a recorrerem a ela quando, em 26 de agosto, a extrema-direita monárquica organizou uma provocação.
Em um momento particularmente crítico para a Alemanha, que estava submetida aos ditames draconianos do Tratado de Versalhes, a organização reacionária radical, Consul, em conjunto com a Oberland Freikorps, assassinou Matthias Erzberger, do Partido de Centro católico, cuja figura carregava um simbolismo intolerável para a extrema-direita alemã4. Erzberger havia sido ninguém menos que o signatário do tratado de capitulação da Alemanha na I° Guerra. Tal papel significou, aos olhos da extrema-direita, um gesto ofensivo ao orgulho patriótico germânico, portanto, um ato de traição nacional.
Sem dúvidas, tal fato acirrou os ânimos em toda a Alemanha e o proletariado voltou ao cenário político depois da derrota de março. Com efeito, uma onda de lutas agitou o país levando-o ao clímax político quando, em 31 de agosto, mais de 5 milhões de trabalhadores saíram às ruas de todo o país contra a extrema-direita. O KPD e a social-democracia são irremediavelmente arrastados pelas mobilizações e acabam somando forças nelas.
Nesse contexto, o KPD passa a operar uma sensível inflexão na perspectiva da adoção da nova tática. Seu jornal Die Rote Fahne trazia em suas linhas a defesa da construção de uma “coesa frente de todo o proletariado” (apud Bois, 2017) a serviço do cumprimento de um programa que exigia a dissolução dos grupos reacionários e a libertação de presos políticos. Sem dúvidas, uma evolução relevante na condução de sua política.
Lições da luta
Assim, em dezembro de 1921 o CEIC lançou uma primeira tentativa de sistematização das teses, estabelecendo premissas e possibilidades para a execução da nova tática.
Em 18 de dezembro, o Executivo lançou as famosas 25 teses sobre a Frente Única dos Trabalhadores. Possuíam dois pontos principais: 1) pregavam a unidade na ação concreta; e 2) opinavam que a política de organização da classe trabalhadora não significava uma renúncia aos outros objetivos comunistas, descompartilhados pelas forças que não adotavam em sua estratégia a ditadura do proletariado. O comitê dirigente da IC definiu que “por frente única operária deve entender-se a unidade dos operários desejosos de lutar contra o capitalismo”. (Golin, 1989, p. 23).
À luz das 25 teses se reúne entre fevereiro e março de 1922 uma plenária ampliada do CEIC que aprova as teses em questão, embora com votos contrários dos espanhóis, franceses e italianos, que permaneceram recalcitrantes.
Na Alemanha, em particular, as teses encontraram boa receptividade do KPD, que vinha operando uma evolução em sua postura. Assim, cada oportunidade de luta e mobilização do proletariado, mesmo aquelas circunscritas ao terreno sindical, foi explorada pelo KPD com chamados a ações em comum na perspectiva da Frente Única.
O ano de 1922 foi, nesse sentido, um momento chave para o desenvolvimento da tática, tendo em vista dois grandes fatos: a greve dos trabalhadores ferroviários e o assassinato de Walther Rathenau.
Aplicando a Frente Única nas greves
Os funcionários do sistema ferroviário estatal alemão, sufocados com as dificuldades econômicas daquele período, passaram a exigir reposição salarial acima da inflação. Todavia, o governo do qual fazia parte o SPD, respondeu com a demissão de 20.000 trabalhadores e a elevação da jornada de trabalho. A reação entre os trabalhadores foi imediata e a federação sindical, que se mantinha independente da central sindical social-democrata, a ADGB, no dia 2 de fevereiro lançou a greve dos trabalhadores das ferrovias. A greve teve adesão de 800.000 trabalhadores e entrou para a história como uma das maiores já realizadas pelos operadores de transporte ferroviário da Alemanha.
O presidente do Reich, o social-democrata Friedrich Ebert, revidou com um ataque ao direito de greve. O SPD, entre a cruz e a espada, já que estava comprometido com o governo Ebert, convoca os funcionários a voltarem ao trabalho. A ADGB, controlada pelo SPD e pelo USPD, endossa o pedido de encerramento da greve. Contudo, a greve segue resistindo por mais alguns dias, até que a federação sindical resolveu voltar ao trabalho no dia 7 de fevereiro, sem ganhos substanciais.
Entretanto, ao longo de toda a greve, somente o KPD se lançou de forma integral e incondicional ao apoio dos trabalhadores em luta, promovendo campanhas de solidariedade, assembleias de apoio, defendendo o direito de greve e, sobretudo, exigindo do SPD, do USPD e da ADGB que apoiassem a greve. O KPD conseguiu convencer, inclusive, a própria federação a repercutir o chamado aos social-democratas.
Apesar dos parcos resultados econômicos obtidos, essa experiência permitiu que o KPD se apresentasse diante dos trabalhadores de todo o país como o único e mais consequente guardião do direito de greve, o que lhe conferiu prestígio não só entre os funcionário das ferrovias, mas de outros ramos profissionais, enquanto que o SPD, o maior partido proletário da Alemanha, vacilante entre Ebert e os grevistas, abandonou os segundos à própria sorte.
Nos meses seguintes experiências muito parecidas se repetiram em outras categorias profissionais como os metalúrgicos, um dos maiores contingentes proletários do país, com resultados similares para o KPD. Assim, Ernst Meyer, um dos dirigentes do partido comunista, observa a nova situação do KPD: “Nosso isolamento anterior entre os trabalhadores foi posto de lado. Nossa influência entre seus representantes já cresceu extraordinariamente por meio do movimento grevista.” (apud Bois, 2017)
Frente Única contra a extrema-direita
Em julho de 1922 mais um assassinato político entra para a conta da extrema-direita e o país é novamente tomado de comoção. Dessa vez foi abatido o ministro das relações exteriores da República de Weimar e signatário, junto com a Rússia, do tratado de Rapallo, Walter Rathenau. A revolta diante de mais uma execução pelas mãos da extrema-direita foi enorme e o KPD tomou a primeira iniciativa.
Duas horas depois do atentado, ele se dirige aos dois partidos social democratas lhes propondo uma reunião para determinar as medidas a serem tomadas, citando: a interdição de toda reunião nacionalista; a dissolução das organizações monarquistas e nacionalistas; a demissão de todos os oficiais monarquistas do exército e da policia, altos funcionários e magistrados conhecidos por sua ligação com a extrema direita. Ele exige a renúncia do ministro do Reichswehr, Gessler, a demissão do general von Seeckt, a prisão de Ludendorff, padrinho de todos os grupos de extrema direita, e de Escherich, fundador e dirigente da Orgesch; anistia para os “trabalhadores revolucionários”, a interdição dos jornais que incentivam os assassinatos e apelam à luta contra a república; a formação de tribunais especiais de trabalhadores, funcionários e chefes sindicais, para prender e condenar os monarquistas culpados de atos contra a república. O KPD também propôs a convocação de um congresso nacional de comitês de fábrica encarregado de fiscalizar a aplicação de tal programa e propôs a consigna de greve geral a ser lançada em comum. A situação é tão tensa que o Partido social-democrata aceita a reunião proposta e, sem esperar, convocar um ato de massas para o dia 25 de junho, enquanto que a ADGB, em seu congresso, delibera meio dia de greve. Para o KPD e sua política isso já era um enorme sucesso, uma vitória muito grande. Claro, os outros partidos declaram se opor à greve geral ilimitada, aos comitês de controle e à perspectiva de um governo operário (Broué, 1997, pp. 255-256).
O KPD aceita os termos negociados pela social-democracia e os partidos se lançam à luta ombro a ombro. Como resultado da frente única entre os principais partidos proletários, além de uma das maiores centrais sindicais do país, no dia 27 se produz uma gigantesca mobilização sob as mesmas palavras de ordem propostas inicialmente pelo KPD, o que foi suficiente para que o governo aceitasse negociar.
A iniciativa foi um sucesso e um exemplo brilhante de execução da tática da frente única, ainda que não tenha sido vista assim pelo conjunto do partido, como no caso da regional de Berlim-Brandemburgo, cuja direção, ainda animada pela teoria da ofensiva, organizou em outubro uma escaramuça desnecessária contra uma reunião da extrema-direita. O resultado foi um militante comunista assassinado, 50 feridos e os dirigentes do KPD perseguidos.
Algumas semanas depois, em razão dos êxitos alcançados, a frente única se rompe e o SPD se reintegra à vida parlamentar, em coalizão com partidos moderados de direita.
A Frente Única e os êxitos do KPD
Sem dúvidas, o giro operado em sua política, que começou no III° Congresso da IC, foi indiscutivelmente decisivo para a recuperação dos efetivos e da influência do KPD, depois da desmoralização que sofreu em março de 1921. Somente a adoção de uma linha correta para aquela conjuntura, implementada de maneira correta, pôde fazer o KPD obter resultados tão impressionantes:
O partido conseguiu reverter todas as perdas incorridas dentro do movimento proletário como resultado da Ação de Março de 1921. No primeiro ano da Frente Única, o número de membros do partido atingiu um pico de 250.000, um crescimento entre 50 e 90.000. Em setembro, havia 70.000 novos membros. O aumento da influência também foi verificado no número de votos que o partido atraiu. Em todas as eleições regionais, o ano de 1922-3 foi um ano melhor para o KPD. (…). Nos sindicatos, os comunistas ganharam igual influência. Assim, o partido representava um oitavo de todos os delegados na conferência sindical nacional anual em junho de 1922 (90 dos 691 delegados). Como disse o historiador Ossip Flechtheim, ‘mais do que o KPD foi capaz de realizar em um congresso sindical antes ou depois da República de Weimar’ (Bois, 2017).
Tal fato foi observado pela própria polícia de Hamburgo, em cujos documentos registrou que “O KPD mostrou claramente um grande aumento em seu número de membros desde a eclosão da greve ferroviária” (Apud Bois, 2017).
Essa rica experiência observada na Alemanha, embora não somente lá, permitiu ao 4° Congresso do Komintern avançar na elaboração da Frente Única, consolidando as 25 teses aprovadas na conferência5 internacional de março de 1922, tema sobre o qual falaremos no próximo artigo.
LISTA DE SIGLAS
ADGB – Federação Geral de Sindicatos Alemães
CEIC – Comitê Executivo da Internacional Comunista;
KPD – Partido Comunista Alemão;
PCI – Partido Comunista Italiano;
PSI – Partido Socialista Italiano;
NOTAS
[1] Até então era pela denominação genérica de Nova tática que a Frente Única Operária era chamada. O nome de Frente Única foi formalizado somente em dezembro, quando da conferência mundial que votou as 25 teses da Frente Única dos Trabalhadores.
[2] Todas as fontes que utilizamos passam a usar apenas KPD, em vez de VKPD, para se referir a seção alemã da IC logo na sequência da ação de março. Atribuímos a isso o fato de que o VKPD restou praticamente destruído depois da crise que eclodiu no partido como consequência daqueles eventos e levou dois terços dos seus efetivos; afastou Paul Levi; e ainda seguiu experimentando outras rupturas no quadro do seu grupo dirigente logo depois do 3° Congresso da IC, a exemplo de Curt Geyer que posteriormente constituiu uma organização com Paul Levi.
[3] Serrati, diferentemente de Levi, acabou voltando para a IC em 1925.
[4] O ambiente político na Alemanha logo após a capitulação na guerra e, particularmente, ao longo do período em que a República foi regida pela Constituição de Weimar, foi marcado por intensa agitação reacionária, o que em parte acabou culminando com a chegada de Hitler ao poder. O portal alemão de notícias Deutsch Welle assim sintetiza esse período: “Hans Mayer, um dos últimos grandes intelectuais judeus de língua alemã, lembra o clima reinante na época. Multiplicavam-se os grupos paramilitares que agiam como esquadrões da morte, cometendo assassinatos políticos. ‘Meus colegas de escola, que de repente se identificavam com os chamados freikorps, a suástica e o desejo de uma revanche pela derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, pareciam aprovar tudo isso.’ Eles gritavam slogans carregados de xenofobia e poderiam muito bem ter dito: ‘Matem Walther Rathenau, o porco judeu’, conta Mayer.” 1922: Assassinado ministro da República de Weimar: http://bit.ly/3fKibGL
[5] A Conferência em questão também ajudou a abrir caminho para que pudesse se realizar uma experiência de Frente Única no plano mundial, com a realização de uma conferência das três internacionais proletárias então existentes, a II°, a 2 ½ e a III°. A Conferência das Três Internacionais, como ficou conhecida, embora com muitos limites, foi um dos acontecimentos importantes de 1922.
Bibliografia
BOIS, Marcel, The KPD and the United Front during the Weimar Republic, rs21, 2017. Disponível em: http://bit.ly/3vFVLgK Acessado em maio de 2021. Trad. Bruno Rodrigues
BROUÉ, Pierre, Histoire de l’internationale communiste 1919-1943, Fayard, Paris, 1997. Trad. Bruno Rodrigues.
TROTSKY, Leon, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, Sundermann, São Paulo, 2011.
III Internacional Comunista, Manifesto, teses e resoluções do 3º congresso Vol. 3, Brasil debates, 1989.
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