Na década da ressaca, o mundo reorganizava os seus passos sobre os ossos da Segunda Guerra Mundial. No mesmo período, a poeta Ingeborg Bachamnn publicou em 1953 no livro “Die gestundete Zeit” seu célebre poema homônimo “O tempo adiado”, onde anunciava: “Vem aí dias piores / O tempo adiado até a nova ordem / surge no horizonte / Em breve deves amarrar os sapatos / e espantar os cães para os charcos”[1]. Meio século depois, vivemos tempos incertos onde ao tentarmos imaginar futuros possíveis, não é mais possível sentir com alguma certeza a terra onde pisam nossos pés.
A metáfora ensejada pelo poema de Bachmann está longe de indicar espera, como talvez pudéssemos aferir em uma leitura ágil do título a uma ideia de retorno daquilo que terás sido, muito pelo contrário. Ela alerta sobre os dias vindouros, onde as palavras serão cortadas, o silêncio ordenado e a morte banalizada. No curso das décadas seguintes aos anos 1950, vivenciamos sangrentas ditaduras latino-americanas, pesadelos autoritários como o salazarismo que parecia interminável, a destruição de uma dignidade básica do trabalho promovida pelo tratcherismo, dentre outros exemplos da barbárie capitalista.
A pandemia da Covid-19 é a guerra do século XXI. Tem como fiadora das milhares de mortes pelo mundo a ganância capitalista que coloca o lucro em primazia a vida e impede uma vacinação universal entre todos os povos. Cientes de que a luta pela vida repousa na capacidade de inquietude, diversos povos se mobilizam contra a máquina capitalista, que por sua vez não descansou um segundo sequer durante a pandemia, e continuou a baforejar o seu hálito de morte sobre as terras yanomamis, as paredes das famílias palestinas, os morros do jacarezinho, as calles de Bogotá e demais rincões de resistência. Todavia, nossa insubmissão secular segue pulsante e sinaliza “Há fogo sob a terra / e é líquida a pedra dura”[2]. Seguimos dispostas a escrever na madeira “enquanto ainda está verde, e com bílis / enquanto ainda está amarga, sigo / disposta a escrever o que era no início! / Tratem de ficar acordados!”[3]. Somente o fogo é capaz de subverter de forma brusca a realidade intragável dos dias que seguem, como aponto o filósofo Gaston Bachelard “Se tudo que muda lentamente se explica pela vida, tudo que muda velozmente se explica pelo fogo”[4].
Ingeborg Bachmann, uma das maiores poetas de língua alemã, deixou uma obra brilhante e recentemente vem sendo explorada pelo público brasileiro, contemplado por uma belíssima publicação de “O tempo adiado e outros poemas” organizado primorosamente por Claudia Cavalcanti e editado pela Todavia Livros.
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