Leia aqui a primeira parte deste artigo: 100 anos da Frente Única Operária: gênese e atualidade
“Vocês são excelentes revolucionários, vão combater e morrer pelo comunismo; mas isso não nos basta. Não basta lutar. É necessário vencer, e para isso é necessário a arte da estratégia revolucionária.” Trotsky
Passados alguns meses depois de março e tendo em vista os resultados desastrosos da ação desencadeada por obra dos partidários da teoria da ofensiva, finalmente era possível aos delegados do III Congresso da IC* um debate lúcido sobre a aplicabilidade desta política, em face da política da carta aberta, bem como uma análise lúcida sobre aquela nova conjuntura que havia se estabelecido. Assim, entre junho e julho de 1921, nos aposentos da antiga sede da embaixada alemã na Rússia, ocorrem as sessões do III congresso do Komintern, que reuniu algo em torno de 605 delegados de diversos países:
A delegação oficial do KPD chegou à reunião decidida a fazer aprovar a “teoria da ofensiva” e com a reivindicação de expulsar da Internacional os elementos “centristas” e “semicentristas”, considerando a este propósito a expulsão de Levi como um precedente. No congresso, representou o núcleo da corrente de esquerda, na qual se colocaram, entre outros, também os italianos, os austríacos, a maioria dos delegados húngaros e poloneses, os alemães da Tchecoslováquia. No lado oposto, achavam-se os franceses, todos temerosos de um possível “Livorno” francês, a delegação do Partido Comunista da Tchecoslováquia, que acabava de decidir sua adesão, e a delegação da oposição alemã, com Clara Zetkin à frente. A relação de forças entres os participantes não-russos beneficiava inteiramente a esquerda, cuja vitória só podia ser impedida pelos bolcheviques. Mas nem mesmo entre estes existia uma posição unívoca: Zinoviev e Bukhárin nutriam fortes simpatias pela corrente de esquerda, para a qual se inclinava também Radek (…). Assim, a Lênin terminava por caber — mais do que nos congressos anteriores — uma função decisiva. Ele não compartilhara nunca a atitude negativa da maioria da Internacional em relação à carta aberta, e a ação de março o convencera da grande periculosidade do putschismo (embora se tenha recusado a considerá-la um putsch). No juízo sobre a ação de março, estava de acordo com Levi sob muitos aspectos; além disto, tinha uma opinião bem desfavorável a respeito da capacidade de Béla Kun. O primeiro documento conhecido através do qual interveio na discussão congressual começava com as palavras: “O núcleo da questão é que Levi politicamente tem razão em muitíssimas coisas. Infelizmente, ele cometeu uma série de atos que violam a disciplina, em razão dos quais o partido o expulsou” (Hájek, 1985, pp. 185-186).
Nas reuniões do Comitê Executivo da III IC que ocorreram no intervalo de tempo compreendido entre a ação de março e o seu III Congresso, Lênin, que elogiava a tática de Paul Levi como “exemplar”, ao mesmo tempo não vinha poupando a utilização de adjetivos para se reportar a Bela Kun, a quem qualificava como “imbecil”, e ao conjunto da ala ultra esquerdista, cujas ideias e ações ridicularizava como “kunerias”.
Aliás, o líder bolchevique era bastante receoso diante das simpatias de parte da delegação russa (Zinoviev, Bukharin, Radek) pelas ideias ultra esquerdistas em voga e atuou intensamente para que a direção executiva do partido russo centralizasse a opinião dos delegados russos1.
Convicto da utilidade da carta aberta, Lênin chegou a propor, inclusive, a possibilidade de expulsão para aqueles que estivessem em desacordo com ela. Em uma correspondência endereçada a Zinoviev, Lênin argumentava:
“A Internacional Comunista deve basear sua tática no seguinte: conquistar incansável e sistematicamente a maioria da classe operária, em primeiro lugar dentro dos velhos sindicatos. Então venceremos sem dúvidas com qualquer viragem dos acontecimentos. Mas ‘vencer’ por um prazo breve, com uma viragem dos acontecimentos excepcionalmente feliz, fá-lo-á um mesmo tolo. Daí: a tática da carta aberta é obrigatória por toda parte. É preciso dizê-lo de forma direta, precisa e clara, pois as vacilações em relação à carta aberta são arquinocivas e arquivergonhosas e arquidifundidas. É preciso confessá-lo. Todos os que não compreenderam o caráter obrigatório da tática da carta aberta, expulsá-los da Internacional Comunista” (Apud Golin, 1989, p. 19)
Nesta mesma carta, Lênin também questiona a postura vacilante de Radek, que estava incumbido, em nome da delegação russa, da redação do projeto de teses sobre tática. Contudo, Radek incorpora neste projeto vários aspectos da tese alternativa, elaborada por Bela Kun e Thalheimer, concebidas sob o ponto de vista da teoria da ofensiva2. Para Lênin este gesto foi uma concessão apressada às ideias “radicalmente falsas politicamente” (Apud Golin, 1989, p. 19) de Kun e Thalheimer. Tal era a atmosfera política que havia entre os círculos comunistas ao longo daqueles meses.
Miloš Hájek, um dos principais estudiosos da história da III IC, considera que:
“A consciência da consolidação relativa da situação política no Ocidente levou Lênin e Trotsky a erguerem com vigor sua própria voz – pela primeira vez desde a fundação da Internacional – contra o perigo de investidas intempestivas. Seus discursos constituem a crítica mais dura ao extremismo pronunciada na história da Internacional” (Hájek, 1985, p. 187).
Para ambos, era necessário impedir que aquela reunião internacional de comunistas se encerrasse com uma vitória política da ala responsável por ter produzido, através da malfadada ação de março, e por detrás dela a teoria da ofensiva, a destruição do VKPD.
Trotsky e a situação mundial: abre-se o embate
Trotsky foi designado para abrir o congresso com uma análise sobre a situação mundial e aproveita o ensejo para abrir fogo contra os ofensivistas. Em seu informe Trotsky constata que, de fato, havia um processo de arrefecimento na dinâmica das lutas do proletariado, na medida em que também havia um processo de consolidação da social-democracia como força hegemônica entre a classe trabalhadora, em concorrência com os partidos comunistas. Quanto ao desenlace da onda de mobilizações de massas que havia irrompido logo na sequência da I guerra e da revolução russa, o informe de Trotsky foi categórico:
“Esta poderosa onda não conseguiu derrubar o capitalismo mundial, nem mesmo o capitalismo europeu. Durante o ano entre o Segundo e o Terceiro Congresso da Internacional Comunista, toda uma série de levantes e lutas da classe trabalhadora terminou, pelo menos parcialmente, em derrotas (Protokoll des III. Kongress, p. 90 apud Broué, 1997, p. 231).
Ademais, Trotsky também ponderava que a burguesia vinha se relocalizado politicamente na correlação de forças entre as classes, pois passava a assumir agora um papel ofensivo sobre as condições de vida do proletariado, em muitos países. Em uma passagem de seu informe, o chefe do exército vermelho apresentou uma síntese que representa uma rica lição de estratégia política:
“O desenvolvimento político tem também seus ciclos, seus altos e baixos. O inimigo não fica passivo; ele também combate. Se o ataque do proletariado não é coroado de sucesso, a burguesia passa imediatamente ao contra-ataque” (apud Golin, 1989, p. 74).
E, por fim, advertiu:
Hoje, pela primeira vez, nós vemos e sentimos que nós não estamos imediatamente próximos do objetivo, da conquista do poder, da revolução mundial. No ano de 1919 dizíamos: é somente uma questão de meses; agora dizemos que, possivelmente, seja uma questão de anos” (Protokoll des III. Kongress, p. 90 apud Broué, 1997, p. 231).
Sem dúvidas, tais palavras foram recebidas com hostilidade por uma parte dos delegados, que as consideravam de tom “excessivamente pessimistas”. Como contraponto, o delegado húngaro József Pogány, em uma das comissões de trabalho sobre o informe da situação mundial, propôs para encaminhamento que a definição de crise econômica fosse descrita como “a época do crescimento da ação proletária, da guerra civil” (Protokoll des III. Kongress apud HÁJEK, 1985, p. 187).
Lênin toma a palavra
Lênin subiu à tribuna disposto a “lançar uma ofensiva contra esses erros, contra essas idiotices ‘de esquerda’”, sem a qual, advertiu, “todo o movimento está condenado a perecer” (Apud Golin, 1989, p. 21). Em sua intervenção, o revolucionário russo endossa seu apoio à carta aberta, qualificando-a como uma iniciativa “exemplar” e como a primeira tentativa prática a serviço da conquista do apoio da maioria da classe operária.
Para Lênin, a chave de todo o debate estava na luta obstinada dos comunistas em torno desta tarefa. Assim, alertou:
“Quem não compreender que na Europa – onde quase todos os proletários estão organizados – devemos conquistar a maioria da classe operária, está perdido para o movimento comunista, nunca aprenderá nada se em três anos de revolução [russa] ainda não aprendeu isso.” (Apud Golin, 1989, p. 22)
Os esquerdistas abrem a contraofensiva
No período prévio ao congresso, Bela Kun redigiu um documento cujo título era Tática e organização da ofensiva revolucionária – Lições da ação de março. Neste texto Kun defende a ação de março apoiando-se na conclusão de que aquele evento serviu para, segundo o próprio Kun, revelar a incapacidade das lideranças reformistas de dirigir as massas, bem como para realizar uma “depuração orgânica” nas fileiras do VKPD com a saída de elementos reformistas e indisciplinados.
Maslow, que compunha a maioria alemã, incrementava o rosário de dogmas esquerdistas afirmando que “um partido na defensiva é um partido social democrata” (Apud Broué, 1997, p. 226).
Além de endossar a expulsão de Levi, mesmo sob os protestos da oposição alemã liderada por Clara Zetkin, no ponto sobre tática a delegação esquerdista consegue aprovar uma redação que, finalmente, reconhece alguns erros, sem contudo rechaçar o espírito da ação de março:
“A ação de março foi uma luta imposta pelo governo ao VKPD pelo ataque do governo contra o proletariado da Alemanha Central. Durante esse primeiro grande combate que o VKPD sustentou após sua formação, ele cometeu uma série de erros. O principal consistiu em que, sem destacar claramente o caráter defensivo dessa luta, forneceu aos inimigos sem escrúpulos do proletariado, à burguesia, ao SPD e ao USPD, um pretexto para denunciar o VKPD ao proletariado como um promotor de putsch. (…). O III Congresso da Internacional Comunista considera a ação de março do VKPD como um passo adiante” (III Internacional Comunista, Manifestos, Teses e Resoluções, 1989, p. 98).
Ainda no debate sobre tática, Umberto Terracini, em nome da delegação italiana, que emblocava com os húngaros e a maioria alemã, tentou suprimir a palavra maioria na proposta de texto que defendia conquistar a maioria da classe operária. Com essa manobra os esquerdistas queriam eliminar a possibilidade de táticas unitárias com os demais partidos operários, colocando de imediato e na ordem do dia dos partidos comunistas a luta pela ditadura do proletariado . Contudo, Lênin, que colocava a conquista da influência entre a maioria dos trabalhadores, no patamar de um princípio, protestou:
“Pois querem cortar a palavra ‘maioria’. Se não podemos pôr-nos de acordo sobre coisas tão simples, não compreendo como podemos trabalhar juntos e conduzir o proletariado à vitória. Então não é de estranhar que também não possamos chegar a acordo na questão de princípios. Indicai-me um partido que tenha ganho já a maioria da classe operária. Terracini não pensou sequer em citar qualquer exemplo. Semelhante exemplo não existe” (Apud Golin, 1989, p. 21).
Trotsky, na sequência, tomou a palavra mais uma vez e respondeu aquela manobra com uma sentença cortante: “Olhem ao vosso redor. Não existem apenas oportunistas no mundo. Existem também classes” (Protokoll des III. Kongress, p. 511, apud Broué, 1997, p. 233).
Ou seja. Diferente dos delegados esquerdistas, para Trotsky a luta revolucionária não se resume a uma disputa permanente entre comunistas contra oportunistas. Para todo revolucionário proletário, a luta contra a burguesia deve estar no primeiro patamar da hierarquia, ainda que no âmbito do proletariado os comunistas possam e até devam, se valendo das mais diversas táticas, subir o tom contra os oportunistas e desmascará-los quando estes atuam para frear a luta.
Conquistas do 3° Congresso3
O informe de Trotsky que fora apresentado na abertura do congresso finalmente foi aprovado depois de alguns dias de batalha contra os delegados esquerdistas e entra para os anais do comunismo sob o título Tese sobre a Situação Mundial e as Tarefas da Internacional Comunista como parte das resoluções daquele encontro. Nesta Tese se reconhece aquela nova situação política como marcada pela reestabilização capitalista e pela ofensiva sobre as condições de vida do proletariado, bem como pela consolidação da social democracia como força hegemônica. Assim, conquistou-se um ponto de partida fundamental para a elaboração e subsequente intervenção política dos comunistas, bem como para a luta contra os esquerdistas no período posterior ao Congresso. Assim, de maneira tácita, enterrava-se a concepção que relaciona de forma mecânica e determinista toda e qualquer ofensiva capitalista de um lado com reação simétrica e imediata por parte do proletariado, de outro.
No ponto das Teses sobre a tática, definiu-se, por unanimidade, que “A Tarefa mais importante do momento” seria:
“A conquista da influência preponderante sobre a maior parte da classe operária, a introdução no combate de frações determinantes desta classe é, no momento atual, o problema mais importante da Internacional Comunista” (III Internacional Comunista, Manifestos, Teses e Resoluções do 3° Congresso, 1989, p. 80)
Assim, admitiu-se a proposição de Lênin que consistia em definir a experiência da carta aberta como uma iniciativa “modelo”, sendo incorporada na resolução sobre tática:
“Ante o fato de que na Europa ocidental e na América do Norte, onde as massas operárias estão organizadas em sindicatos e em partidos políticos, onde em consequência não se pode contar no momento com movimentos espontâneos senão em pouquíssimos casos, os partidos comunistas têm o dever, usando toda sua influência nos sindicatos, aumentando sua pressão sobre os outros partidos que se apoiam nas massas operárias, devem buscar chegar a uma ação comum na luta pelos interesses imediatos do proletariado. E se os partidos não-comunistas se vêm obrigados a participar deste combate, a tarefa dos comunistas consiste em preparar de antemão as massas operárias para uma possível traição em uma fase posterior do combate; devem tensionar o máximo possível a situação e a agudiza-la com o objeto de poder continuar o combate, se necessário, autonomamente (ver a carta aberta do VKPD que pode servir de ponto de partida exemplar para outras ações). Se a pressão do partido comunista nos sindicatos e na imprensa não é suficiente para arrastar o proletariado ao combate em uma frente única, então o partido comunista deve tratar de mobilizar por si mesmo grandes frações das massas operárias. Esta política independente consiste em fazer defender os interesses vitais do proletariado por sua fração mais consciente e ativa não será coroada de êxito, não conseguirá mobilizar as massas atrasadas, a menos que los objetivos do combate derivados da situação concreta sejam compreensíveis para as amplas massas e que essas massas considerem esses objetivos como los seus próprios, mesmo quando no entanto não seja. capazes de lutar por eles.” (III Internacional Comunista, Manifestos, Teses e Resoluções do 3° Congresso, 1989, p. 96).
Tal ideia foi concretizada na fórmula genérica Às massas, agitada nas linhas do Manifesto do CE da Internacional Comunista, redigido por Trotsky, como um “grito de guerra lançado pelo III Congresso aos comunistas de todos os países” (III Internacional Comunista, Manifestos, Teses e Resoluções do 3° Congresso, 1989, p. 189).
No entanto, se o III Congresso não avançou em uma sistematização pronta e acabada sobre a nova tática, ele aplainou o caminho para que, no IV Congresso, esta fosse finalmente sistematizada na forma de teses e com a definição que conhecemos hoje, tema que será abordado no próximo artigo. Todavia já é possível afirmar que nascia aí a tática da Frente Única Operária já que a ideia central inerente a ela foi aprovada, ou seja, a necessidade de batalhar pela conquista da hegemonia comunista entre a maioria dos trabalhadores, admitindo-se sob certas condições a unidade com os demais partidos proletários.
Ao fim e ao cabo, além de dar o primeiro passo em direção à Frente Única Operária, o III Congresso enterrou a teoria da ofensiva, pelo menos ao longo de alguns anos. Conforme Trotsky sintetizou, não sem toque de brilhantismo marxista:
“O terceiro congresso disse aos comunistas de todos os países: a marcha da revolução russa é um exemplo histórico muito importante, todavia não é uma regra política, e mais ainda: só um traidor pode negar a necessidade de uma ofensiva revolucionária; porém, só um incauto pode reduzir toda a estratégia revolucionária à ofensiva” (Trotsky, 1974).
Lênin e Trotsky: estrategistas políticos do proletariado
Lênin e Trotsky não se deixaram tensionar diante de qualificativos como ‘ala direita’ ou ‘oportunistas’ que várias vezes lhes foram lançados. Ambos sabiam que estava em jogo o futuro do movimento comunista em todo o mundo, bem como o futuro da classe trabalhadora. Estava em jogo também a sorte da revolução para a qual ambos deram a vida, a russa. Tudo isso estava muito acima dos dogmas voluntaristas de parte das lideranças da IC.
De fato ambos tiveram que barganhar com os delegados da ala esquerdista, cedendo4 5 e fazendo-os ceder em alguns aspectos, sem no entanto impor-lhes uma derrota absoluta. Todavia, cabe reconhecer que, para todos os efeitos, a vitória coube a ambos.
A fortuna política deixada pelo III Congresso às posteriores gerações de revolucionários segue essencialmente atual e de indispensável serventia.
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