Nos dias 15 e 16 de maio, o Chile deu mais um passo em direção a sua nova Constituição. O adiamento das eleições para definir os nomes que vão compor a Convenção Constitucional, inicialmente previstas para 10 e 11 de abril, não diminuiu o peso histórico do evento. Afinal, esta é mais uma etapa de um longo e intenso processo de participação e mobilização popular iniciado pelas manifestações de outubro de 2019, que – ao custo de muito suor, sangue, lágrimas, olhos e vidas – vêm traçando o projeto de país para os próximos anos em substituição à herança ditatorial presente nas linhas da atual Carta Magna.
O que se observou nas ruas, entretanto, nos momentos que precederam a eleição foi um clima de campanha tímida com alguns cavaletes abandonados nas calçadas onde havia alguma circulação de pessoas – por exemplo, portas de hospitais. Mesmo em localidades com limitado sinal de internet, as candidaturas se concentraram nas propagandas através das redes sociais e tentaram explorar os meios digitais.
Antes de indicar que a abstenção seja um produto de uma suposta falta de interesse político por parte de eleitoras e eleitores, cabe considerar que a limitação das discussões em assembleias de bairros e comitês acabou imposta não somente pela necessidade imediata do distanciamento social como pela urgência da população em reinventar seus modos de subsistência e enfrentar os duros meses de diminuição brusca de renda e oportunidades de trabalho, em um cenário de alto índice de precarização laboral fruto das políticas neoliberais. Mesmo aquelas pessoas que não se viram afetadas economicamente vêm sentindo os efeitos da sobrecarga de trabalho e de tarefas do lar aliados à limitação da vida social plena.
O modo de contabilização dos votos causou dúvidas. O sistema D’Hondt exige um esforço para entender como é calculado o peso obtido por candidatura tendo como base o total computado por sua lista, que podia ser composta por partidos, independentes ou um pacto misto. Tal proporcionalidade criou uma dinâmica em que algumas legendas foram encabeçadas por personalidades famosas (não necessariamente políticas) com a finalidade de arrastar candidaturas com menos possibilidade de coletar votos por conta própria.
No total foram registrados mais de 16 mil candidatos, considerando que também estavam sendo preenchidos os cargos para prefeitura e vereança dos municípios, além do sufrágio inédito para o governo das regiões, que até o momento era indicado pela presidência. Na região metropolitana, a candidata do Partido Comunista, Karina Oliva, passou ao segundo turno, ressaltando em seu discurso a presença feminina no inédito pleito.
Não bastasse todo esse contexto, há também o uso de cédulas impressas, mais um fator que desafiou até mesmo o já desgastado presidente. Na hora de cumprir seu dever cívico, Sebastián Piñera protagonizou uma sequência de gafes ao retirar a máscara para votar, lamber o selo autoadesivo para lacrar a cédula e solicitar ajuda de um mesário para finalizar o protótipo de origami necessário para dobrar as quatro folhas que deveriam ser depositadas nas respectivas urnas.
Justiça seja feita, Piñera não foi o único a enfrentar dificuldades com o modelo de votação invejado por seu colega de posto Jair Bolsonaro. Principalmente pela divisão da jornada em dois dias definida a fim de evitar aglomerações, houve relatos de problemas logísticos com o modelo de voto impresso, os quais indicavam falta de material próprio para lacrar as urnas como medida de segurança durante a madrugada, conforme orientava o manual fornecido pelo Serviço Eleitoral. Parte da população chegou a demonstrar preocupação com a possibilidade de fraude no meio da noite e manifestou sua intenção de votar somente no domingo. De um universo de 14 milhões de pessoas habilitadas, 20% compareceram no primeiro dia, enquanto 23% preferiram o dia seguinte, somando aproximadamente 6,4 milhões de participantes. Uma cifra aproximada aos 51% de sufragistas do plebiscito de outubro de 2020.
A estratégia encampada pela direita de unificar partidos conservadores e ultraconservadores na lista “Vamos por Chile” se concretizou em um tentativa fracassada de somar, no mínimo, um terço das cadeiras, o que lhes daria poder de veto na escrita do novo texto. Mesmo com suas candidaturas milionárias, incluindo ex-integrantes do atual governo, financiadas por partidos conservadores e empresários, o pacto conseguiu apenas 39 nomes.
No espectro progressista, apesar do clima de otimismo dada a larga vantagem obtida pelo “aprovo” no plebiscito de outubro, havia o temor inicial de que as sete listas apresentadas pulverizassem os votos deste setor. Entretanto, os pactos de esquerda e centro-esquerda somaram uma importante representação se unirmos o desempenho da “Lista del Apruebo”, formada pela antiga Concertação – que governou a nação de 1990 a 2010 –, e da “Apruebo Dignidad”, coligação entre a Frente Ampla e o Partido Comunista, que elegeram 25 e 28 constituintes respectivamente. Este cenário ajuda a traçar alguns prognósticos para as eleições presidenciais, marcadas para novembro deste ano. Neste quadro, enfatiza-se a reeleição do comunista Daniel Jadue – que lidera as pesquisas sobre presidenciáveis –, com mais de 60% das preferências na comuna de Recoleta, e da força demonstrada pela Frente Ampla, que busca completar assinaturas necessárias para levar Gabriel Boric às primárias.
Para a escrita do texto, a balança das forças políticas se moverá, contudo, de acordo com a inclinação dos independentes, cuja expressiva representação se consolida com 47 assentos, e é composta principalmente de lideranças surgidas com as revoltas de outubro de 2019. Há certa tendência no discurso da mídia hegemônica de tratar esse número como uma derrota transversal dos partidos, mas com uma análise conjunta dos resultados para governos e prefeituras – a coligação “Chile Vamos” perdeu em disputas importantes como Santiago Centro e Viña del Mar –, é possível aprofundar o olhar e identificar uma derrota às forças políticas tradicionais, especialmente neoliberais. A diversidade de posicionamentos e o triunfo dos independentes refuta o duopólio que caracterizou os mandatos dos últimos anos e aponta um caráter plurinacional a ser buscado pela nova redação. Destaca-se, por exemplo, a expressiva votação da machi Francisca Linconao, líder e ativista mapuche perseguida pelo Estado que obteve 80% dos votos de seu distrito.
Estes resultados reforçam o relevo histórico e a dissonância entre anseios do povo e do governo, mas sobretudo destaca que este é um marco dentro de um panorama maior. A amplitude alcançada pela mobilização das ruas – iniciada pelas estudantes secundaristas, cabe sempre sublinhar – vai além do ato eleitoral em si e, portanto, impede que as estatísticas de comparecimento às urnas e estatísticas resumem a potência que estes novos movimentos vêm desenhando no horizonte do país andino. Após anos atuando como modelo latino-americano de implementação do neoliberalismo, o Chile começa a protagonizar, antagonicamente, a desconstrução deste projeto.
*Gabriela Ghetti é formada em Letras pela USP, docente da PUC-Chile e da Universidade de Santiago, onde também é mestranda em Arte, Pensamento e Cultura Latino-americanos.
Comentários