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O Brasil não “explodiu” ainda como a Colômbia. Por quê?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Não desespere em meio as sombrias aflições de sua vida,

                                              pois das nuvens mais escuras cai água límpida e fecunda.

                                                                                                 Sabedoria popular chinesa

     A explosão de imensas mobilizações de massas na Colômbia, realmente, gigantescas, unindo nas ruas a juventude, setores populares e setores das camadas médias provocou um impacto na esquerda brasileira. Por que não aqui?

      A pergunta é legítima. Talvez não haja pergunta mais importante. Afinal a Colômbia está também sofrendo, dolorosamente, com a pandemia. A resposta nos remete às peculiaridades da situação reacionária que estamos sofrendo no Brasil e suas tendências de evolução.

     A chacina na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro, a mais mortífera operação policial registrada, em uma cidade em que as milícias mantém, historicamente, vínculos com o bolsonarismo desperta o horror. A morte de Paulo Gustavo pelo coronavírus, um dos mais populares comediantes do país, foi um choque na consciência de milhões de pessoas, e emocionou o país.

    Desde março há um novo momento na conjuntura do país, com um enfraquecimento do governo Bolsonaro. O ápice da pandemia, o atraso na vacinação, a suspensão do aumento emergencial em dezembro, a anulação das condenações de Lula, a aprovação da suspeição de Moro, a permanência da contração econômica, o agravamento da crise social com uma escalada da miséria popular, entre outros acontecimentos, incidiram na mente de milhões, e estão deslocando as placas tectônicas das relações sociais e políticas de força entre as classes. Mas ainda não o bastante para que o Fora Bolsonaro possa levar milhões às ruas. Sim, o Brasil sempre foi complicado, mas está difícil.

    O destino do governo Bolsonaro é, evidentemente, indivisível da evolução da pandemia, e suas sequelas econômicas e sociais. Acossado pela CPI no Senado, vigiado pelo Supremo Tribunal Federal, pressionado pelas frações mais poderosas entre os capitalistas, desgastado na juventude, debilitado nas camadas médias, e vendo que se avoluma na maioria dos trabalhadores e do povo a rejeição, o governo da extrema-direita vai enfraquecendo a cada semana, desde março.

     A maioria dos mais de quatrocentos mil óbitos causados pela calamidade sanitária poderia ter sido evitada, e têm um responsável. A dinâmica da luta de classes está condicionada por mudanças que vêm se acumulando, lenta e crescentemente, na percepção de dezenas de milhões trabalhadores e jovens. Mas ainda não deu um salto.

     Bolsonaro e Pazzuelo merecem, evidentemente, prisão. Bolsonaro precisa ser derrotado, deve ser julgado e preso junto com o general Pazzuelo. Mas nenhuma sociedade derruba o governo quando é necessário. Não há revoluções prematuras. O que prevalece na história não é a flexibilidade, plasticidade, ou mobilidade da mente humana, mas a rigidez psíquica e conservadorismo ideológico que perpetua expectativas diminuídas, esperanças reduzidas e perspectivas pequenas.

     Há sempre um atraso, que pode ser maior ou menor, entre o apodrecimento das condições objetivas que exigem a queda do governo, e o despertar na consciência das classes populares de uma incontível paixão política. Um atraso terrível.

     O Brasil ainda não explodiu como a Colômbia. Há várias hipóteses,e, provavelmente, elas se complementam. Em primeiro lugar não há sequer um setor da classe dominante que se posicione pelo impeachment. O manifesto dos quinhentos, uma expressão da fração mais rica dos capitalistas, sinalizou uma crítica pública à postura de Bolsonaro diante da pandemia, mas nada além disso. Mantém apoio à orientação econômica. Não há na burguesia brasileira ninguém que defenda a derrubada do governo. Não há, tampouco, uma maioria nos setores médios pela derrubada do governo. Os protestos de panelas nas janelas arrefeceram.

      A luta pelo Fora Bolsonaro repousa, portanto, somente, na classe trabalhadora. Há quem sublinhe que as condições impostas pela peste inibem a disposição de mobilizações de massas, mesmo entre a juventude, pelo perigo do contágio. É um argumento, realmente, forte, porque os riscos não são irrelevantes. Ainda que tenha acontecido nas últimas duas semanas uma estabilização com ligeiro viés de queda, o patamar da pandemia é ainda o de um cataclismo sanitário. A peste é devastadora, e estamos cercados por muito medo.

    Há quem valorize o peso da confusão, dúvida, insegurança na consciência dos setores organizados da classe trabalhadora, depois de cinco anos de acumulação de derrotas. O passado pesa e muito. Desde o impeachment em 2016, no auge da ofensiva da operação Lava-Jato, passando pelo início das contrarreformas, como a trabalhista e a lei de terceirizações, em 2017, com Michel Temer, até a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro, apoiado em uma corrente de extrema-direita com peso de massas, foram anos e anos de situação reacionária. E a destruição de direitos operada em quase dois anos e meio, com a reforma trabalhista e as privatizações, além do processo desmoralizador da pandemia à deriva. É um argumento forte, também.

    Há quem ressalte que a percepção de eleições presidenciais em 2022 possa estar alimentando a ideia de que esse será o momento de medição de forças com o bolsonarismo, o que merece ser considerado.

    Há, também, quem coloque a ênfase na ausência de convocação de mobilizações para as ruas por parte dos partidos de esquerda, sindicatos, Frentes e organizações populares, que desenvolvem intensa agitação e propaganda, mas somente no mundo virtual das redes sociais. É um argumento plausível, embora tentativas exploratórias tenham sido feitas, inclusive no recente 1º de maio, sem maior ressonância. Atos de vanguarda simbólicos têm sido o limite da capacidade de mobilização da esquerda sindical e popular. Ajudam a elevar a moral e poderão, em algum momento, cumprir o papel de centelha, faísca, chispa que incendeia a esperança de milhões.

    Todos nos perguntamos, portanto: até quando? O que sugere a história do nosso país é que não há atalhos. Foi lento o desgaste do governo Figueiredo entre 1978 e 1983. Até que explodiram as Diretas Já em 1984. Foi lento o desgaste do governo Sarney entre 1985 e 1988, até que explodiu a greve geral em 1989, e a campanha eleitoral de Lula. Foi lento o desgaste do governo de FHC entre 1994 e 2002. Com Collor entre 1990/92 foi muito mais rápido, mas uma fração da burguesia apoiou o impeachment.

     Até quando? Até o momento em que a experiência com o pesadelo se esgota, e o peso da catástrofe desmorona sobre a cabeça de milhões e impulsiona intensos saltos nas ideias e sentimentos. A esquerda não deve desesperar. O desespero não pode ser uma bússola. Nossa aposta é que a classe trabalhadora, a juventude e as camadas populares irão se levantar.

*Texto publicado originalmente no portal A Terra é Plana e no perfil de facebook do autor.

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