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A Lei de Segurança Nacional e a perseguição a adversários políticos 

Nesta terça-feira, 04/05, o Congresso Nacional aprovou um Projeto de Lei revogando a Lei de Segurança Nacional. Em seu artigo de estreia como colunista do EOL, Luciana Boiteux analisa como a LSN, criada na ditadura militar, era utilizada para perseguir e criminalizar opositores, e mostra que a quantidade de Inquéritos Policiais que utilizam a lei cresceu assustadoramente no governo Bolsonaro.

luciana boiteux

Luciana Boiteux

Luciana Boiteux é advogada feminista e militante do PSOL do Rio de Janeiro, nas pautas dos direitos humanos, antiproibicionismo e antipunitivismo. Professora de direito penal e criminologia da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, está atualmente como primeira suplente de deputada federal e de vereadora no RJ pelo PSOL.

O debate sobre a Lei de Segurança Nacional (LSN) está no centro do interesse público a partir de seu uso cotidiano pelo Governo Bolsonaro contra adversários políticos. Muitas questões têm sido colocadas, com destaque para as críticas sobre sua validade democrática à luz da Constituição Federal de 1988 e a necessidade urgente de sua revogação ou reforma. Recentemente, soubemos de mais um inquérito com base na LSN instaurado, desta vez contra Guilherme Boulos, do PSOL, que foi candidato a presidente contra Bolsonaro em 2018.

As contradições estão postas, o Governo Bolsonaro, que mais colocou militares em cargos de poder desde o fim da ditatura empresarial militar, cotidianamente ameaça as instituições democráticas com medidas de exceção e tem retomado práticas de instrumentalização da LSN (n. 7.170 de 1983, portanto anterior à Constituição) para tentar silenciar críticas contra si e seu governo. Essa escalada autoritária se dá em meio a um cenário de agravamento da crise social, com mais de 400 mil mortos no país pela pandemia do Covid-19. A postura de Jair Bolsonaro perante a crise humanitária jamais vista e as tentativas de ataque às conquistas democráticas revelam um governo de extrema-direita que se sustenta no tripé política de morte, arroubos autoritários e fakenews. A vida da população e seus direitos sociais e políticos são, assim, submetidos aos interesses políticos e econômicos de uma elite reacionária que ainda o apoia.

O fato que é o recurso à Lei n. 7.170/83 tem sido cada vez mais frequente, trazendo à tona os limites democráticos do pacto institucional vigente, em especial por se tratar de legislação anterior à Constituição, que resistiu a muitas propostas de alteração. Isso em um contexto de um governo cujo líder apresenta orientação publicamente autoritária, com tentativas de insuflar movimentos que clamam por intervenção militar.

Segundo cobertura da imprensa, hoje existem 37 projetos de lei na Câmara Federal com o tema da Lei de Segurança Nacional (LSN), sendo o mais recente deles o PL n. 2469/91, que foi votado nesta terça-feira, 04 de maio.(1) Ressalta-se que a LSN em vigor é uma reedição de legislações anteriores.(2) Baseada na Doutrina de Segurança Nacional, essas legislações sempre foram utilizadas como respaldo para a perseguição a opositores do regime. Apesar da centralidade desse eixo como arcabouço do último período autoritário, é importante salientar ainda que sua origem vem da Era Vargas, adotada pela primeira vez em 1935, no contexto da Intentona Comunista e de avanço de mobilizações por direitos em todo o país.

Assim, apesar de anterior, a LSN foi um eixo de consolidação do regime ditatorial de 1964. A Escola Superior de Guerra foi a instituição latino-americana que mais se destacou na reelaboração da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), desenvolvida pelos EUA como estratégia para a América Latina no contexto da Guerra Fria. Apesar de integrar a geopolítica estadunidense para a região, por meio do treinamento de soldados na Escola do Caribe do Exército dos Estados Unidos, a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, como será denominada a partir de 1967, acrescentou no eixo da “contra-insurreição” defendida pelos EUA elementos já presentes no autoritarismo militar brasileiro, desde o início do século XX.

Golbery do Couto e Silva foi o principal teórico da segurança nacional do país e o grande responsável pela reelaboração da Doutrina de Segurança Nacional para o caso brasileiro. Golbery, no Brasil, e Augusto Pinochet, no Chile, estão entre os maiores geopolíticos do Cone Sul no período da Guerra Fria. Ambos ocuparam cargos centrais nas ditaduras sustentadas ideologicamente pela doutrina defendidas por eles. Desse modo, os militares latino-americanos, particularmente os brasileiros, atuaram com a vinculação entre desenvolvimento econômico e segurança interna e externa, reformulando o conceito de soberania. Este não se basearia mais em limites e fronteiras geográficas, mas, sim, no caráter político e ideológico dos governos contra a ameaça vermelha, com a formulação das “fronteiras ideológicas”. A ditadura empresarial militar brasileira utilizou-se amplamente desse conceito para legitimar suas ações intervencionistas e expansionistas, internamente e nos demais países da América Latina. Foi o caso da Operação Condor, em 1975, quando as Forças Armadas do Cone Sul montaram um aparato repressivo de controle, espionagem e cooperação regional.

O conceito de “inimigo interno” é fundamental na concepção das “fronteiras ideológicas”. Assim como na sua matriz estadunidense, na variante brasileira da DSN ele também pode atingir qualquer pessoa, sendo flexibilizado constantemente para poder enquadrar qualquer um que possa questionar, se opor e, de alguma forma, questionar o regime político ou o governo. Assim, toda a população vira suspeita, podendo ser controlada, perseguida e eliminada, e a luta por direitos pode ser tangenciada em todo o território nacional.

A LSN em vigor atualmente no país é a de n. 7.170, de 14 de dezembro de 1983, e mantém viva, portanto, a lógica de um “inimigo interno”, que tem em sua origem o papel de um ator político de oposição ao regime e que permite uma lógica de legislação de exceção de suspensão de garantias constitucionais. A sua eficácia se relaciona com a indefinição das categorias utilizadas, como “segurança nacional” e “ordem social”, permitindo aos agentes estatais fazerem uso de forma arbitrária da normativa, de modo a atacar adversários políticos.

Fruto da Doutrina da Segurança Nacional, sobre a qual se sustentou a ditadura empresarial-militar de 1964, nota-se como tal lei é uma permanência do período autoritário até os dias de hoje. Entre suas indicações, destaca-se por exemplo o artigo 23, como eixo de supressão das liberdades políticas da população, quando tipifica a incitação da “I – à subversão da ordem política ou social; (…) III – à luta com violência entre as classes sociais”.

O uso da legislação tem sido cada vez mais frequente no país, acompanhando o período de inúmeros ataques democráticos em curso. Um levantamento realizado pela organização de Direitos Humanos Conectas (3) deixa nítido como está em curso um fortalecimento do seu uso nos Inquéritos Policiais (IPL), baseado em uma concepção arbitrária e reacionária de exercício do poder:

Recentemente, foi utilizada para reprimir manifestantes com uma faixa acusando Bolsonaro de genocida, contra a atividade de jornalistas, pelo patrocínio de um outdoor criticando o governo, além de usada como justificativa para levar Guilherme Boulos para prestar depoimento na Polícia Federal, entre diversos outros casos de legítima oposição política. Seu uso fere, assim, a democracia, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e pluralismo político no país. Além disso, como já consolidado internacionalmente, um governante tem mais chances de ser alvo de críticas do que um cidadão comum, e isso é fator positivo para o avanço democrático nas distintas realidades. A ampliação do seu uso pelo governo Bolsonaro, inclusive com atuação direta do Ministro da Justiça, André Mendonça, revela a intenção de censura e perseguição política contra opositores.

Ainda que tenha sido utilizada em alguns casos contra a extrema-direita, como no famoso caso do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e também contra manifestantes que pediam intervenção militar, alertamos aqui para o significado político dessa legislação e seu fortalecimento. A sua base legal se baseia em conceitos incompatíveis com as conquistas democráticas. Não à toa, é sob o governo de Jair Bolsonaro que vemos a intensificação de inquéritos policiais com sua base legal.

A LSN é uma das muitas heranças de nosso passado autoritário. Reflete a lógica de governança de uma República fundada por um golpe militar, e que alternou em sua história golpes, ditaduras, e generais no poder. Longe de ser uma novidade, o governo Bolsonaro se baseia no que há de mais atrasado na realidade brasileira. Reafirma e aprofunda as ideias de Florestan Fernandes do caráter de contra-insurreição permanente das elites nacionais, em uma lógica de sufocar qualquer tentativa de reformas democráticas. A legislação, como outros mecanismos institucionais, sustenta a ideia de um aparto institucional que teme seu próprio povo, na manutenção de uma estrutura econômica baseada em uma desigualdade brutal e em um dos maiores aparatos punitivos do mundo. A extrema-direita no poder quer fortalecer ainda mais esses mecanismos de arbitrariedade estatal. Precisamos estar atentas e firmes no combate às muitas expressões autoritárias que emergem no contexto de crise social intensificada pelo golpe de 2016, com a vitória de Bolsonaro e atualmente agravados pela dramática pandemia em curso. Nossa luta é por mais direitos e mais liberdade, pelas nossas vidas!  

*Com Veronica Freitas, do Rio de Janeiro, RJ.

 

NOTAS

1 – Estão apensados a este os PLs nº 6764/2002, 3064/2015, 5480/2019, 6165/2019, 2464/2020, 3550/2020, 3430/2020, 3864/2020, 954/2021, 3054/2000, 3163/2000, 3381/2020, 3697/2020 e 506/2021.
2 – A Lei de 1983 revogou a Lei de Segurança Nacional anterior, de n. 6620, de 17.12.78, a qual havia substituído o Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1969. Este, por sua vez, revogara o Decreto-Lei n° 314, de 13 de março de 1967 – a primeira Lei de Segurança Nacional da ditadura empresarial-militar
3 – Utilizada na petição de Amicus Curiae protocolada em conjunto com outras entidades em ação de Habeas Corpus Coletivo da Defensoria Pública da União em face do uso da LSN, n. 19.938.

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