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CULTURA

O Messias Negro, para além do Oscar

Filme dirigido por Shaka King e premiado no Oscar conseguiu ser um retrato muito rico do Partido dos Panteras Negras

Elber Almeida, do ABC Paulista
Reprodução

Fred Hampton, interpretado por Daniel Kaluuya

(Contém spoilers)

O Partido dos Panteras Negras (BPP) foi pintado pela mídia e pela polícia política dos EUA como uma gangue ou organização terrorista. Seus membros foram transformados em inimigos públicos, com alguns aprisionados até hoje, ao passo que sua estética icônica permaneceu presente, tanto nos movimentos de libertação subsequentes, quanto em obras cinematográficas que tentaram se apropriar desta para esvaziar todo seu sentido político.

Ao pensar em um filme produzido por um estúdio de Hollywood, as expectativas sobre o retrato que este fará de uma organização de militantes comunistas, antirracistas e revolucionários, não são nada animadoras. Porém, Judas e o Messias Negro, dirigido por Shaka King, não só conseguiu indicações e premiação no Oscar, como também conseguiu ser um retrato muito rico desta organização histórica.

A primeira e talvez a maior conquista do filme é conseguir mostrar o caráter de polícia política da inteligência estadunidense, representada pelo FBI e o programa COINTELPRO. Ao contrário do filme da Marvel, “Pantera Negra”, no qual um agente da CIA é um dos salvadores da pátria, aqui são escancaradas as táticas assassinas do FBI: infiltração de agentes provocadores, assassinatos, instigação de conflito entre grupos armados. A agência federal tem o seu racismo desnudado nas falas e ações de seus agentes.

Outra qualidade é o retrato da política do Partido dos Panteras Negras, apresentada nos discursos de Fred Hampton, um dos protagonistas – representado por Daniel Kaluuya – que não foram podados. Discursos que falam de revolução, socialismo, denunciam o capitalismo, e são radicais, não apenas belos em sua forma, apesar de o retrato da fenomenal oratória de Fred Hampton ser emocionante. São marcantes as cenas da formação da Coalizão Arco-Íris, que reunia organizações negras, de jovens porto-riquenhos, os Jovens Senhores, e brancos pobres, os Jovens Patriotas, no enfrentamento à opressão do Estado capitalista, o que gerava um grande temor nas autoridades governamentais frente a possibilidade de enfrentarem um ascenso das forças revolucionárias quando a campanha contra a guerra no Vietnã aumentava a instabilidade para a classe dominante. 

Dominique Fishback representa Deborah Johnson, hoje Akua Njeri, que é central na história. Ela traz a Fred Hampton questionamentos sobre sua prática política que foram determinantes para transformar certos aspectos desta. Johnson enaltece a dimensão da coletividade ao lembrar a Hampton que o povo e o partido são seus pontos de apoio e que sua vida tem uma importância não apenas política, mas também para quem convive com ele. Apesar de o roteiro parecer insinuar um fatalismo através de sua imagem, como quando foca em sua expressão de preocupação enquanto Hampton discursava, quando chega o desfecho terrível desta história real, que é o assassinato deste que é seu companheiro e pai de seu futuro filho, sua expressão traduz a crueza de uma realidade na qual aqueles que lutam por emancipação humana são esmagados pelo racismo e pelo capitalismo, vítimas de prisões, torturas e assassinatos, sejam pacifistas como Martin Luther King Jr. ou revolucionários dos Panteras Negras.

O judas Bill O’Neal, interpretado por Lakeith Stanfield, não parece protagonizar o filme, apesar do título. O indivíduo que foi um dos responsáveis pela morte de Hampton fica marcado como alguém com pequeneza de espírito e manipulável, embora por vezes parecendo enfrentar um dilema. Essa que é uma imagem lamentável também parece ser inevitável, já que não é incoerente que ele seja ofuscado pela liderança histórica em ascensão contra a qual agiu. Dessa forma, sem isentar O’Neal de sua culpa, o filme consegue mostrar que os arquitetos e principais responsáveis pelo assassinato do futuro “Messias Negro” foram os agentes do serviço de inteligência dos EUA, impulsionados pela política de Estado focada no combate ao comunismo, e promovedores do racismo enraizado no país em questão. 

Daniel Kaluuya ganhou o prêmio de melhor ator coadjuvante no Oscar, o que parece contraditório com o exposto acima. Além disso, o filme teve indicação em outras quatro categorias. Produzido inteiramente por negros, não recai em clichês e não apela a cenas de ação para ganhar audiência. Seus tiroteios são cenas dramáticas, evitando a romantização da militância revolucionária do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa. 

Trailer do filme

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