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MUNDO

Abril sem consensos

O episódio político – uma anedota, mais precisamente – protagonizado pelo novo partido ultra-liberal tem o mérito de fraturar um falso consenso que reinou nas últimas décadas em torno da data mais importante da História recente de Portugal: o 25 de Abril.

Manuel Afonso, do Semear ao Futuro (Portugal)

Uma provocação contra Abril

Tudo começou com uma provocação da Iniciativa Liberal, que anunciou querer participar na manifestação do 25 de Abril na Avenida da Liberdade. Tratou-se, evidentemente, de um provocação barata. A nova (e a velha) direita ultra-liberal odeia profundamente tudo o que o 25 de Abril significa. Dizer isto não se trata de especulação. Ao mesmo tempo que alegava querer descer a Avenida da Liberdade no dia 25 de Abril, a IL afixava um outdoor em que afirma que só no 25 de Novembro de 1975 se “cumpriu Abril” – ou seja, que só no golpe que destruiu o movimento que iniciou a Revolução esta se teria cumprido. Esta afirmação não é apenas uma reescrita da história, mas é igualmente uma demonstração da desvalorização que este partido faz da data que é hoje comemorada. Dúvidas houvesse, o líder da IL insinuou nas redes sociais que a “liberdade” – o que será para ele a liberdade, senão a do chamado livre mercado? – existiria não graças ao 25 de Abril, mas apesar dele. Como é evidente, a suposta intenção deste partido de participar na Manifestação do 25 de Abril foi só uma jogada oportunista, para conseguir visibilidade mediática e avançar na sua agenda ideológica contra as conquistas e a memória da Revolução de Abril. O mesmo é verdade quanto ao pretenso “desfile alternativo” que a IL anunciou.

Uma Revolução nada pacífica

A Revolução de 1974-75 não foi só a última revolução da Europa ocidental – até hoje – como foi uma profunda revolução social, cujo conteúdo foi muito mais radical do que a conquista de uma liberdade abstrata, na qual caberia quem defende as conquistas sociais da revolução, como aqueles que se empenham em destruí-las. A heroica madrugada de 25 de Abril de 1974, em que o Movimento dos Capitães retirou do poder o ditador Marcello Caetano e, ainda que inadvertidamente, abriu portas a uma erupção popular, foi precedida de uma outra revolução, nascida em África. A derrota do fascismo havia começado mais de uma década antes, na Guiné, Angola, Moçambique, Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe. Foi a mobilização de milhares de mulheres e homens, que pegaram em armas para acabar com 500 anos de opressão e colonialismo, que destruiu a espinha vertebral – militar, política, económica e ideológica – do Estado Novo. Foi a Guerra de Libertação dos povos africanos que permitiu que, a 25 de Abril de 74, o poder fosse deslocado de forma incruenta em Lisboa – Abril só foi pacífico por ser o resultado de uma guerra sangrenta que o antecedeu.

Derrubado o ditador Marcello Caetano, vagas sucessivas de uma mobilização popular inaudita arrasaram com os restos caquéticos do regime e conquistaram rapidamente liberdades democráticas que ultrapassavam largamente a transição controlada inicialmente prevista. Nos meses seguintes, milhões de trabalhadoras e trabalhadores derrotaram duas tentativas de golpes autoritários, a 28 de Setembro de 74 e a 11 de Março de 75; organizaram-se nos bairros, escolas, fábricas e campos, para gerir as suas vidas e os frutos do seu trabalho; impuseram a nacionalização da banca e das grandes empresas; e, nisto, conquistaram direitos sociais e a consciência da possibilidade de um Portugal Socialista. Os grandes capitalistas perderam não só a propriedade, mas também o controlo, tendo muitos deles fugido do país durante 1975. A descolonização e a independência das ex-colónias concretizou-se não pela vontade dos Governantes, mas pela mobilização das massas, tanto em Portugal como Angola, Moçambique, Guiné e Cabo-Verde. As massas trabalhadoras foram, durante 18 meses, o motor da história, arrastando atrás de si os Governos Provisórios, os partidos e o MFA.

Nada disto foi, nem poderia ser, consensual. Nada disto foi, nem poderia ser, pacífico. As elites do país, que nas décadas seguintes foram recuperando o controlo, pela mão dos Governos da direita e do PS, nunca perdoaram nem nunca esqueceram. Tentaram dois golpes contra a Revolução, que a serem vitoriosos, teriam imposto novos regimes autoritários assentes na repressão. Promoveram o terrorismo de extrema-direita, através de organizações como o MDLP, cujas sinistras lideranças começam hoje a regressar – é o caso de Diogo Pacheco Amorim, fascista e bombista, hoje dirigente do Chega. Foi ensaiada a “independência” dos Açores, pela mão destes “patriotas” que venderiam o arquipélago aos EUA, para servir de base a uma ofensiva contra o Portugal Revolucionário. O 25 de Novembro, que a Iniciativa Liberal reivindica, foi a forma particular, ardilosa e cirúrgica, de conseguir aquilo que estas iniciativas violentas da direita não conseguiram: tirar o poder ao povo e devolve-lo às elites políticas e económicas. Foi a partir daí, do golpe novembrista, que se construiu um falso consenso sobre Abril. Para elevar o 25 de Abril a uma efeméride nacional, representativa do regime nascido a 25 de novembro, o consenso pós-revolucionário tentou retirar a esta data o seu conteúdo radical. Abril foi assim embalsamado numa redoma ideológica assente na defesa abstrata da “liberdade” que hoje a nova direita que fazer confundir com liberalismo.

O consenso morreu

Este consenso novembrista sobre Abril não poderia durar para sempre. A direita, a velha e a que se finge de nova, sabem que sob o verniz do unanimismo, o povo trabalhador mantém viva a consciência das conquistas sociais de Abril e a memória de uma revolução dos debaixo contra os de cima. Quando, através de provocações como as dos últimos dias, a direita tentar quebrar o consenso, é para avançar numa agenda ideológica que quer obliterar essa consciência popular e revolucionária de Abril. É uma agenda contra os trabalhadores, contra os pobres, contra a educação e a saúde públicas, contra os direitos laborais, contra a esquerda e os sindicatos – uma agenda reacionária.

Ao contrário da velha direita – PSD e CDS – que, contrariada, finge aceitar a unanimidade de Abril, minando as suas conquistas pela calada, enquanto reivindica a Revolução nas datas oficial, a nova direita mostra ao que vem. Para tentar impor um retrocesso histórico no terreno das liberdades democráticas e dos direitos sociais, IL e Chega darão voz ao revanchismo anti-Abril que as elites deste país nunca abandonaram. Não tenhamos ilusões: o consenso morreu e, daqui em diante, a memória da Revolução será terreno de disputa aberta.

Não tenhamos medo, nós da esquerda, de romper também o consenso empoeirado que o 25 de novembro criou para esvaziar Abril. Afirmemos sem medo que, sim, os neoliberais, a direita, os neofascistas e os grandes interesses capitalistas e parasitários que eles defendem são inimigos de Abril. As Revoluções são e devem ser das maiorias – do povo trabalhador, das maiorias exploradas e oprimidas – contras minorias, que exploram e oprimem. Nas Revoluções não cabem todos e Abril não é exceção. Se a direita ganha coragem para carregar sobre o legado revolucionário das maiorias que fizeram Abril, não tenhamos nós medo de virar o bico ao prego e reafirmar, nas ruas, o projeto popular, proletário, revolucionário, logo socialista, da Revolução dos Cravos.

Publicado originalmente no blog Semear o Futuro.