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BRASIL

Cúpula climática de líderes: novidades, velhas novidades e a mesma marcha para o abismo

Eduardo Sá Barreto*, de Niterói, RJ
Reprodução

Quem vive em busca de motivos para ter esperança, certamente teve um prato cheio assistindo à Cúpula Climática de Líderes, no dia 22 de abril de 2021. Os dois discursos que abriram a Cúpula, de Kamala Harris e Joe Biden, trouxeram alguns elementos de contundência incomum para o tipo de envolvimento que costumamos ver dos EUA nesse tipo de ambiente.

Harris usou o termo “crise climática” ao menos duas vezes. Enumerou uma série de impactos devastadores, não apenas como previsões para um futuro relativamente distante, mas como realidades já presentes no momento atual. Biden chegou a usar uma expressão ainda mais dura, que já vem figurando há alguns anos nos discursos do secretário geral da ONU, António Guterres: crise existencial, i.e. uma crise que nos ameaça de extinção. E logo em seguida, enfileirou outras afirmações aparentemente compatíveis com o que vem sendo preconizado pelo IPCC. Disse que estamos em uma década decisiva, que é imperativo agir agora, que uma concertação internacional é incontornável, que as maiores economias devem fazer os maiores esforços. Em linha com os discursos de abertura, várias lideranças afirmaram compromissos de alcançar a neutralidade de carbono entre 2050 e 2060.

Tudo isso, claro, é música para ouvidos em busca de esperança. No entanto, apesar de reconhecer alguns elementos novos no tom dos discursos, precisamos ir além desse mero verniz superficial se quisermos saber qual é o conteúdo real de tudo que foi dito na Cúpula. Comecemos com a celebrada nova meta ambiciosa dos EUA, a redução de 50% do nível de emissões anuais até 2030, em comparação com o nível de emissões de 2005. 

A nova meta estadunidense apresenta diferenças sutis com a trajetória de mitigação proposta pelo IPCC

A nova meta estadunidense apresenta diferenças sutis com a trajetória de mitigação proposta pelo IPCC, compatível com o objetivo de limitar a elevação da temperatura média do planeta a 1,5oC acima da temperatura de meados do século XIX. O IPCC propõe que se obtenha uma redução de 45% das emissões globais até 2030, relativa ao nível de 2010. De imediato, portanto, a meta recém anunciada por Biden parece mais ambiciosa. Ela exigiria cortes maiores (50% ao invés de 45%) e tomaria uma base menor, e portanto mais exigente, para realizar os cortes (2005 ao invés de 2010). Trata-se, contudo, de mera aparência. O nível de emissões do EUA em 2005 foi, na verdade, maior do que em 2010. Ao cortar 50% sobre a base de 2005, os EUA poderiam chegar em 2030 ainda emitindo 3,065 bilhões de toneladas de CO2. Caso esse corte fosse realizado sobre a base de 2010, o nível de emissões de 2030 compatível com a nova meta de corte seria de “apenas” 2,85 bilhões de toneladas de CO2. O ano-base de 2005, aparentemente mais exigente, é, na verdade, menos exigente. (1)

Há outro exercício que também podemos fazer. Acabamos de ver que, alcançando a meta proposta, os EUA chegariam a 2030 emitindo 3,065 bilhões de toneladas de CO2. E se eles tivessem proposto, ao invés disso, realizar a mitigação tal como proposta pelo IPCC? Bem, se a proposta tivesse sido cortar as emissões em 45% até 2030, relativo ao nível de 2010, o nível estadunidense de emissões em 2030 seria de 3,135 bilhões de toneladas de CO2. Em outras palavras, a nação com o maior volume de emissões acumuladas (segundo estimativas para o período entre 1751 e 2017) propõe fazer um esforço de mitigação apenas 2% maior do que será necessário, em média, segundo o IPCC. 

Não é difícil perceber que isso está em claro descompasso com o princípio das responsabilidades comuns porém diferenciadas, muito alardeado na diplomacia climática, mas nunca posto em prática. Evidentemente, não nos deve surpreender que ele não seja colocado em prática, já que sua efetivação exigiria dos principais centros de poder no mundo (as maiores potências militares e/ou econômicas) trajetórias de mitigação incompatíveis com a manutenção desse poder.

Entre essas grandes potências, líderes do Reino Unido, Alemanha, Rússia, União Europeia e Japão relataram sucessos no esforço de redução das emissões ao longo das últimas décadas. Tomando o período entre 1992 e 2019, o Reino Unido obteve uma redução acumulada de 37,6% nas emissões de CO2. A Alemanha, de 27,3%. A Rússia, de 14,3%. A União Europeia (EU-28), de 22,9%. O Japão, finalmente, de 5,9%. Tomados isoladamente, não deixam de ser resultados expressivos. Mas apenas se tomados isoladamente. 

Reduções teriam sido possíveis sem a exportação massiva de atividades emissoras para a China?

Do ponto de vista da crise climática, a variável realmente decisiva é o nível de emissões globais. E nesse mesmo período, as emissões globais de CO2 aumentaram 62,4%. O que esse dado mostra é que, por trás da pirotecnia dos números dos casos de “sucesso”, a pergunta a ser formulada é: aquelas reduções teriam sido possíveis sem a exportação massiva de atividades emissoras para a China? Em outras palavras, os sucessos localizados não estão irremediavelmente ligados ao retumbante fracasso geral? Quando vemos que as emissões chinesas cresceram impressionantes 283,7% no mesmo período, temos no mínimo uma pista muito forte de que os sucessos só foram possíveis às custas do fracasso. Uma pista adicional é que a China de Xi Jinping comprometeu-se a começar a reduzir suas emissões apenas a partir de 2030.

Para além do teatro das metas e das grandes conquistas, os discursos também trouxeram muitas velhas novidades. Muito se falou sobre eficiência energética, estímulo às fontes renováveis e precificação do carbono. Analisemos rapidamente cada um desses temas. O estímulo à eficiência energética tem sido uma das grandes apostas da política climática (internacional, nacional e regional) ao menos nos últimos 20 e poucos anos. O raciocínio que o legitima é simples. Quando aumenta a eficiência energética, torna-se possível obter um mesmo resultado útil (em termos de produção ou de consumo) consumindo menos energia. Ao consumir menos energia, consome-se menos combustíveis fósseis. E, ao consumir menos combustíveis fósseis, emite-se menos CO2. Diante do já mencionado fracasso em conter a tendência de rápida elevação das emissões globais, um sujeito desavisado poderia vir a concluir que não fomos bem sucedidos no objetivo de aumentar o nível geral de eficiência energética. 

O mesmo melhoramento técnico que permite poupar energia, libera capital. Em outras palavras, a energia poupada não é apenas energia. É também capital

Mas não foi isso que aconteceu. E não podemos nos dar ao luxo da ingenuidade de supor que as lideranças das mais poderosas nações do mundo simplesmente não sabem que os persistentes sucessos em ganhos de eficiência energética têm vindo acompanhados de persistentes aumentos das emissões relacionadas à energia. Existe, inclusive, uma vasta literatura de perspectiva liberal que discute exatamente esse “efeito rebote”. Do nosso ponto de vista, a explicação é fácil. O mesmo melhoramento técnico que permite poupar energia, libera capital. Em outras palavras, a energia poupada não é apenas energia. É também capital, que antes precisava ser dispendido com aquele consumo que passa a poder ser evitado com a elevação da eficiência energética. Muito bem, esse capital liberado não pode simplesmente se acomodar em sua recém “conquistada” liberdade. Ele precisa encontrar outras aplicações para executar sua lógica expansiva. Em outros termos, ele precisa encontrar alternativas para seguir seu curso de acumulação via expansão de sua escala e/ou via ampliação de seu escopo. A economia relativa de energia (e emissões) necessariamente se traduz em demanda aumentada por energia e emissão aumentada de resíduos, inclusive o CO2 e outros gases de efeito estufa.

Quanto ao estímulo às fontes renováveis, mais uma vez esbarramos em um longo histórico de “sucessos” convertidos em fracasso. Entre 1992 e 2017, a oferta primária global de energia a partir de fontes renováveis foi expandida em 67%. (2) É um resultado expressivo. No entanto, ele não foi capaz de viabilizar uma efetiva substituição do consumo de combustíveis fósseis. Isto é, não foi capaz de disparar uma efetiva transição energética. Mais uma vez, os motivos são claros. No mesmo período, as ofertas primárias de energia a partir do Gás Natural, do Carvão e do Petróleo aumentaram, respetivamente, 80%, 78% e 38%. Em termos de acréscimos absolutos da oferta primária de energia, as fontes renováveis figuram em quarto lugar, com um acréscimo cerca de dez vezes inferior ao do terceiro lugar, o petróleo. Em primeiro e segundo lugar, respectivamente, encontramos o carvão e o gás natural.

Nada disso é por acaso. Esse modo de produção insano e febril que chamamos de capitalismo é absolutamente dependente de energia barata e abundante. Sem ela, as engrenagens da produção pela produção emperram e a dinâmica da acumulação engasga. Quando as lideranças presentes na Cúpula insistem em colocar muitas fichas nas energias renováveis, esquecem de nos informar que toda a oferta de energia renovável de hoje – incluindo aquela proveniente das centenas de centrais nucleares espalhadas pelo mundo – seria suficiente para atender apenas a demanda de energia do início da década de 1950.

Ainda entre as velhas novidades, mais uma vez fomos apresentados à renovação da fé nos mecanismos de mercado. Assim como nos dois casos anteriores, trata-se de uma via que já demonstrou flagrantemente seus limites. Os mercados de carbono, que já precisaram ser resgatados do colapso iminente algumas vezes, têm servido tão-somente como mais uma arena para a atividade especulativa e como plataforma para um imperialismo ecológico (não muito) disfarçado. 

É impossível deixar de comentar o cinismo latente em todos os principais discursos das lideranças presentes

Para fechar esse texto, é impossível deixar de comentar o cinismo latente em todos os principais discursos das lideranças presentes. O tom geral do encontro, dado logo no início pelos anfitriões, foi de que ali se demarcava um ponto de virada. Um ponto de elevação das ambições. Um ponto em que as ambições finalmente seriam colocadas à altura dos desafios, à altura do que é preciso fazer. É claro que vimos, de fato, algumas metas mais ambiciosas. Mas elas são ambiciosas apenas em relação às metas anteriores, patentemente débeis. Por outro lado, pelo que discutimos aqui, fica claro que elas são insuficientemente ambiciosas. Elas não estão sequer próximas de estarem à altura dos desafios. 

E mesmo assim, mesmo sendo insuficientes, são irrealizáveis nesta sociedade. A sociedade do capital é estruturalmente e cronicamente incapaz de moderar suas tendências destrutivas. A possibilidade real de perseguirmos as metas realmente ambiciosas e necessárias só se abre a partir do momento em que a humanidade tomar do capital o controle do modo como produzimos e reproduzimos nossa vida em sociedade. Isto é, o enfrentamento real da crise climática pressupõe a superação do capitalismo. As figuras nas principais posições de poder sabem disso e, por isso, precisam prometer pouco dizendo que é muito; e prometer aquilo que sabem que não podem cumprir. Já passa da hora de desafiar esse poder.

*Professor de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas (Consequência Editora, 2018).

NOTAS

1 – Os dados utilizados ao longo do texto podem ser encontrados em <https://ourworldindata.org/>.

2 – Excepcionalmente, os dados desse parágrafo são da Agência Internacional de Energia (IEA) <https://www.iea.org/data-and-statistics?country=WORLD&fuel=Energy%20supply&indicator=TPESbySource>. 

 

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