Vamos supor que Dr. Jairinho seja condenado com trânsito em julgado – termo jurídico para a palavra final do Poder Judiciário brasileiro quando não cabem mais recursos – pela tortura e pelo assassinato do garoto Henry Borel. O inquérito aponta o enquadramento do crime como homicídio duplamente qualificado, devido à tortura e à impossibilidade de defesa da vítima.
Digo “vamos supor” porque, até a data de escrita deste artigo, o processo judicial sequer havia sido instaurado, permanecendo a fase de inquérito, que em termos gerais é o recolhimento de informações e um parecer da polícia e/ou do Ministério Público sobre o processo que será aberto. Pode parecer um disparate a uma mente mais fechada, mas Dr. Jairinho, que pode ter torturado diversas crianças e matado Henry, goza da mesma presunção de inocência que a de um ladrão de galinhas, a de Flávio Bolsonaro, a do ex-presidente Lula e, ainda bem, a nossa, que podemos algum dia ser acusados de algum crime e precisar nos defender.
Vamos supor também que há outras cinco pessoas que participaram de alguma forma do cenário do homicídio que supostamente foi cometido pelo vereador: a mãe do garoto, a babá, a empregada doméstica, a cabeleireira da mãe e a irmã de Dr. Jairinho. Composto o cenário, digo por que o fazemos: no Brasil, existe um sistema de justiça oficial, verdadeiro poder de Estado, que condena ou absolve pessoas e, por vezes, arquiva os processos. Esse sistema está organizado pelo Poder Judiciário. Somente este Poder, oficial e teoricamente, poderia dizer se Dr. Jairinho é culpado.
Entretanto, o Poder Judiciário – ou, popularmente, ” a justiça” brasileira, segundo os termos marxistas de entendimento – é uma instituição oriunda de determinadas relações sociais. A justiça como a conhecemos, da forma que conduz processos e os julga, é uma espécie de espelho distorcido do que as pessoas pensam. É distorcido, mas antes de tudo é espelho. E se o é, reflete um modo de julgar que existe no tipo humano brasileiro contemporâneo: a parcialidade, o olhar condenatório, o julgamento moral, o sentimento de vingança e mesmo – como diriam alguns estudiosos da psicanálise – uma espécie de prazer em fazer o outro sentir sofrimento.
Obviamente, como tudo que existe no capitalismo, o julgamento particular dos indivíduos pode ser transformado em algum tipo de mercadoria, de opressão, de ataque à classe trabalhadora, de segregação dessa classe, de fonte de lucro. Sobre esses julgamentos particulares, que passam por fora da Justiça, mas que possuem fortes reflexos sociais e psicológicos, trabalham os meios de comunicação induzindo, julgando e condenando pessoas antes da declaração oficial do Poder Judiciário.
Por isso, vamos tratar o que chamaremos de “o caso Dr. Jairinho” como uma grande suposição, tendo em vista que o vereador carioca tem direito a não ser taxado de criminoso antes do trânsito em julgado dessa justiça do nosso país, assim como as outras pessoas que possam ter colaborado para o suposto homicídio ou para atrapalhar sua investigação.
A superexposição do caso na mídia
O caso de Dr. Jairinho difere do que seria o de um particular, pois se trata de um vereador eleito para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Sendo assim, é do interesse da sociedade que, quando há fortes indícios de que um representante político tenha cometido algum crime, esse seja publicizado e investigado. Não haveria como suspender de seu mandato um membro da Câmara Municipal sem a justificativa de sua investigação, ou seja, torna-se impossível manter um evento desse tipo em âmbito privado.
Esse tema é importante porque, geralmente, nossa mentalidade funciona sob a lógica de entender a exposição como uma pena adicional. Publicizar a identidade serviria, assim, para infligir um sofrimento psíquico ao autor do crime, baseado em reprovação, isolamento, ruptura de círculos sociais, redução de poder de influência, privação de afeto e muitas outras pequenas punições anexas ao cárcere propriamente dito.
Mas a superexposição do acusado, nestas circunstâncias, não causa danos exclusivos à sua imagem. O julgamento social prévio do vereador suspenso se estende às outras pessoas que, por qualquer via, participaram do cenário do suposto crime, especialmente Monique, mãe do garoto, as trabalhadoras domésticas contratadas pelo casal e, por extensão, suas famílias.
Portanto, a primeira reflexão que proponho é sobre a aplicação dos limites do segredo de justiça a processos desse tipo, que envolvem figuras públicas oficiais e outros indivíduos que, direta ou indiretamente, relacionam-se com o cenário do crime sem qualquer autoria. Foi justo explorar na mídia o caso dessa forma desenfreada para punir socialmente um acusado às custas do julgamento midiático da mãe do garoto, de uma babá e de uma empregada doméstica que talvez pouco poderiam fazer para evitar o crime? A imprensa atuou eticamente fazendo plantões na porta da delegacia para divulgar o rosto das pessoas envolvidas? Está correta a exploração midiática de fases de inquérito? Haveria a possibilidade de um meio termo entre o dever de divulgar a investigação de um possível crime hediondo de um parlamentar e a preservação da identidade de testemunhas? A sociedade ganha algo com essa superexposição? São todas questões às quais podemos nos debruçar.
Monique, a mãe de Henry, é cúmplice do crime?
A partir de conclusões do inquérito de que ambos, Jairinho e Monique, seriam autores do homicídio duplamente qualificado, a narrativa construída pelos meios de comunicação ganhou um contorno que parece ser difícil de crer. Monique teria feito vista grossa às torturas do marido contra o filho, de modo que poderia ter evitado o crime. A mãe teria recebido evidências das agressões pela babá e pelo próprio comportamento da criança e pouco teria feito para salvar Henry.
Mais além, a narrativa da mídia se desdobra em revelar idas ao cabeleireiro durante as sessões de tortura e dois dias após a morte do filho como indícios de que Monique não se importava com os fatos. Entretanto, não é desenvolvido nenhum elemento de ligação entre tais posturas e o depoimento da mãe com o surgimento dos relatos de outras três ex-namoradas que reportaram torturas sofridas por seus filhos quando namoravam o vereador suspenso.
É de estranhar que a mídia não tenha relacionado a ausência de denúncias à polícia dessas ex-namoradas com a conduta de Monique. Não seriam, pela lógica aplicada a este caso, todas as outras umas mães relapsas, que não se importavam com a tortura contra seus filhos perpetrada por Jairinho?
Os meios de comunicação seguiram a linha interpretativa do delegado, Henrique Damasceno, que em entrevista após o interrogatório de Monique pontuou que ela “não procurou a polícia, não afastou a vítima do agressor, do convívio de uma criança de 4 anos, filho dela. É bom que se diga que ela tem obrigação legal”. Aqui o delegado se apoia na primeira parte do artigo 13, parágrafo segundo, do Código Penal brasileiro que diz que “(…) o dever de agir incumbe a quem: (…) a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância (…)”, mas não recorda a primeira parte do artigo que diz que “(…) a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. (…)”. A pergunta a se fazer, então, é: quais eram as condições de Monique para evitar o resultado da morte de Henry?
O jornal Folha de S.Paulo fez um levantamento publicado em matéria de 17 de abril que revela 37 telefonemas ao Disque-denúncia desde 2004 apontando que Dr. Jairinho estava relacionado com crimes diversos. Quinze dessas ligações denunciavam o envolvimento do vereador suspenso com as milícias, o jogo do bicho e o tráfico de drogas; quatro por ameaças a moradores de comunidades pobres; e uma por assassinato. Jairinho e seu pai, o deputado estadual Coronel Jairo, são acusados de chefiar a milícia no bairro de Bangu, reduto eleitoral da família.
A milícia se caracteriza por ser uma organização criminosa formada por policiais que controlam áreas do Rio de Janeiro extorquindo moradores com taxas de gás, água e segurança. É conhecida por agir com extrema violência, torturando opositores, chacinando famílias de grupos inimigos e exigindo votos nas eleições por meio de ameaças aos residentes das comunidades que dominam. Parece ser difícil que Monique, moradora de Bangu, não soubesse das supostas atividades criminosas do namorado e de sua família, e é bem fácil concluir que, confirmado o envolvimento de Dr. Jairinho com a milícia, ela poderia estar com dificuldades para lidar com a situação.
Num exercício rápido de alteridade, que consiste em se colocar no lugar do próximo, pode ser que Monique temesse por sua vida, de seu filho e do restante de sua família ao se dirigir à delegacia para denunciar um vereador torturador de crianças e homicida que chefiava junto ao pai – deputado estadual e coronel da PM – um grupo criminoso armado de policiais no bairro onde vivem sua família e seus amigos. É bem provável que as ex-namoradas, a babá e a empregada tenham pensado da mesma forma. Vale lembrar que a mãe de dois dos três filhos do vereador registrou em uma delegacia – e depois anulou – uma ocorrência policial na qual se queixava de ter sido agredida por ele. Por fim, é bom destacar que o Brasil possui um dos maiores índices de violência doméstica subnotificada do mundo, sendo bastante corriqueiro encontrar lares em que mães não denunciam agressões do marido contra os filhos e contra si próprias.
Em 16 de abril, os novos advogados de Monique solicitaram outro depoimento da mãe à polícia. Em entrevista, disseram que ela contará a verdade sobre o caso e que sua prisão pode ter significado, na verdade, a sua libertação, o que pode corroborar nossa tese de que ela não teria denunciado Jairinho por estar com medo ou por estar sofrendo ameaças explícitas. Também durante a semana do dia 22 de abril, surgiram as primeiras declarações da defesa de Monique de que ela sofria agressões rotineiras de Dr. Jairinho. De cúmplice, passaria, portanto, a ser vítima. Até o momento (22/04), o delegado Henrique Damasceno se negava a ouvi-la novamente em depoimento.
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