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BRASIL

Movimentos sociais ocupam e reabrem cozinha comunitária em Campina Grande

Movimento criou o Comitê sindical e popular contra a fome, que ocupou equipamento desativado pela Prefeitura desde 2013 e passou a oferecer refeições diariamente, para famílias do bairro Jeremias. Iniciativa já sofreu ataque e ameaça de retomada do terreno

José Luciano de Queiroz Aires*, de Campina Grande, PB

O quadro atual do nosso capitalismo periférico e dependente impõe ainda mais superexploração e precarização da força de trabalho, desemprego estrutural e a volta do país ao mapa da fome. Uma conjuntura que se torna ainda mais grave para o conjunto da classe trabalhadora em função de vivermos a pandemia da Covid-19 com um governo negacionista e genocida responsável, em grande medida, pelas mais de 370 mil mortes, muitas das quais poderiam ter sido evitadas se tivéssemos um governo articulado com as orientações da ciência e realizado planejamento prévio no sentido de garantir vacina para todos, lockdown nacional e auxílio emergencial de qualidade. Mas o que temos é um governo que incentiva e defende abertamente a normalidade das atividades presenciais, colocando o lucro e a reeleição acima da vida do povo.

Esse Brasil de Bolsonaro tem seus fiéis escudeiros em âmbito local, como no caso do governo municipal de Campina Grande, onde o prefeito fez questão de recebê-lo e tirar foto, sem máscara, e em aglomeração no Aeroporto João Suassuna, na passagem do presidente por essa cidade. Prefeito que faz parte da oligarquia Cunha Lima, cujas raízes de dominação política se encontram no século XIX e que transformaram a cidade de Campina em uma espécie de capitania hereditária. Essa mesma oligarquia que, desde 2013, a partir da gestão do prefeito Romero Rodrigues (PSDB), suspendeu as atividades dos dois restaurantes populares e das nove cozinhas comunitárias de Campina Grande, deixando de oferecer cerca de sete mil refeições diárias, sobretudo, nos bairros periféricos. 

Comida no prato

Por essas razões, o conjunto das forças políticas e sociais de Campina Grande decidiu fundar o Comitê Sindical e Popular Contra a Fome, atendendo uma iniciativa relevante que veio do ANDES-SN. A partir daí, realizamos duas reuniões e entendemos que precisávamos ampliar o leque de forças políticas e sociais e construímos uma frente, composta pelas seguintes instituições: ANDES-SN, ADUFCG, ADUEPB, SINTEFPB, SINTAB, SINTECT, CSP/CONLUTAS, MST, MAB, UNE, DCE/UFCG, Levante Popular da Juventude, Correnteza, CEBI, MLB, com o apoio dos mandatos dos vereadores Anderson Pila e Jô Oliveira. 

Como Campina Grande se encontra com as cozinhas comunitárias e os restaurantes populares desativados, o comitê resolveu criar um fato político e ocupou uma cozinha desativada, localizada no Bairro do Jeremias, na região norte e um dos mais pobres da cidade, formado por migrações de populações rurais. Segundo o censo do IBGE, em 2010, a população tinha cerca de 10 mil moradores, a maioria mulheres (52%) e negros e negras (60,8%).

Entendeu-se que a linha das cozinhas comunitárias é bem mais interessante politicamente do que a entrega de cestas básicas, pois além de criar o fato politico, denunciando a prefeitura do município pelo fechamento da cozinha, a manutenção dos trabalhos na comunidade e a inserção das próprias pessoas no fazer cotidiano da produção da comida mantém uma organicidade fundamental para o trabalho de base. 

O custeio para a manutenção do comitê tem sido feito pelo conjunto das entidades, inclusive com o ANDES-SN arcando com o maior valor a fim de manter as atividades, inicialmente, por um período de quatro meses, além das seções sindicais de sua base e de outras categorias, a exemplo dos trabalhadores dos Correios e servidores municipais de Campina Grande e região. A maior parte dos alimentos foi comprada de assentamentos do MST, da agricultura familiar e de comunidades quilombolas. Dessa forma, gera-se renda ao povo trabalhador do campo e proporciona alimentação saudável e nutritiva ao povo da cidade. E, ainda, o trabalho político do enfrentamento ao agronegócio e a valorização dos movimentos sociais do campo, tantas vezes criminalizados e desqualificados pelo Estado burguês e seus aparelhos ideológicos de classe, a tentar construir um consenso em torno de que o “agro é pop”. 

Além da entrega da comida para saciar um pouco da fome de 200 famílias, o papel do comitê tem se orientado na linha de fazer o trabalho político que compete ao conjunto da esquerda brasileira nessa quadra histórica de crise profunda. Levamos carro de som, distribuímos panfletos, puxamos palavras de ordem, fizemos falas denunciando o governo Bolsonaro/Bruno Cunha Lima, exigimos vacina para todos e todas, auxílio emergencial de R$ 600,00, a defesa do SUS, a reabertura das cozinhas comunitárias por parte do poder público e o Fora Bolsonaro. 

O mais interessante é que, já no primeiro dia da ocupação, moradores da comunidade também falaram ao microfone e agradeceram o trabalho do comitê, ao mesmo tempo em que denunciaram o fechamento da cozinha e narraram o drama social da fome e miséria no qual se veem mergulhados. No segundo dia, algumas mulheres da própria comunidade chegaram para auxiliar na manutenção do trabalho coletivo, se juntando às lideranças dos movimentos sociais e sindicais.

Acredito que a manutenção permanente desse tipo de atividade política tende a estabelecer um laço orgânico classista entre o conjunto das forças políticas e sociais que compõem o comitê e as famílias pobres que residem no bairro do Jeremias.

Por um lado, se alimenta o estômago, por outro, se alimenta a cabeça, pois a experiência da luta de classes condiciona a construção da consciência de classe. Em uma mão, se entrega um prato de comida, na outra mão, se entrega um panfleto político e, assim, podemos começar iniciativas políticas nas quais possamos sair das nossas bolhas e penetrar no mundo periférico onde pulsa a vida e no qual o povo trabalhador produz e reproduz a sua existência em condições precárias.

Reação

Na noite desta terça-feira, 20, um grupo autodenominado “apoiadores do prefeito” passou na ocupação da cozinha comunitária do Jeremias e arrancou todas as faixas que havíamos colocado no local. Também temos informações de que o governo municipal acionou a justiça no sentido de reintegração de posse. O braço coercitivo da sociedade política não dorme em serviço quando o que está em jogo é a propriedade privada e a “ordem social”. Contudo, continuaremos resistindo. As faixas foram recolocadas no lugar e vamos continuar compartilhando alimento e fazendo trabalho político, pois ocupar e resistir é o lema do comitê.  

Convivendo com a fome

“Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paíz dos políticos açambarcadores”.
(Carolina Maria de Jesus, 21 de maio de 1958)

Carolina Maria de Jesus, mulher negra, empregada doméstica e catadora de lixo na Favela do Canindé, em São Paulo, soube colocar no papel as contradições e o drama social vividos na periferia paulista em tempos de propalado desenvolvimentismo. Do alto de sua segunda série primária esboçou em um diário o avesso do Brasil moderno, aquele Brasil que não se encontrava na sala de visita, na sala de jantar ou nos jardins, mas no quarto de despejo, na favela, “o quintal onde se jogam os lixos”. A miséria, a fome, a morte, a carestia, o alcoolismo, a falta de água nas torneiras, o aumento do preço das passagens, o suicídio, são problemas sociais percebidos e relatados nos cadernos de Carolina, indignando a autora que, amarela de fome, chegou a desejar até matar Jânio Quadros, enforcar Adhemar de Barros e queimar Juscelino Kubitschek. 

A fome, considerada por ela uma “segunda escravatura”, continua a assolar o nosso tempo. Um levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e Nutricional realizado entre outubro e dezembro de 2020, revelou que mais de 116 milhões de pessoas no Brasil atual vivem com algum grau de insegurança alimentar. O contexto atual é bem diferente daquele no qual Carolina vivenciou e denunciou a fome, mas o Modo de Produção Capitalista continua determinando quem não pode comer três vezes ao dia e quem pode esbanjar riqueza e concentrar capital. 

muitos brasileiros continuam enxergando o dia a dia com a retina amarelada da cor da fome

Essa experiência de Campina Grande deve ser abraçada em nível nacional, de tal maneira que possamos construir uma coordenação nacional que organize esses comitês de norte a sul do Brasil. Afinal, não estamos mais nos tempos desenvolvimentistas em que Carolina Maria de Jesus via o mundo amarelo e descarregava sua ira e revolta em Juscelino, Jânio e Adhemar, mas muitos brasileiros continuam enxergando o dia a dia com a retina amarelada da cor da fome e certamente devem pedir o Fora Bolsonaro e seu projeto genocida, neofascista/neoliberal e potencialmente golpista.

 

*Professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e militante da Resistência/PSOL