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BRASIL

O Brasil intubado

Gibran Jordão*, do RIo de Janeiro, RJ
Duas mulheres usam saco de plástico na cabeça, em uma intervenção teatral
Lula Marques | Fotos Públicas

Ato em Brasília, no StopBolsonaro, denuncia falta de oxigênio nos hospitais

“… no dia seguinte fomos embarcados, sem direito a despedida, eu numa ambulância e meu marido num caminhão do exército, deixaram a entender que iam nos levar para outra cidade. Perdemos o contato com a família, mas lembro de poucos momentos antes de perder a consciência, sabia que fomos colocados um do lado do outro. Lembro dos gritos pedindo para não morrer, todos que estavam naquele pavilhão estavam sob tortura, clamavam contra as dores e muitos já sem ar não tinham mais voz, o terror só parava quando se perdia a consciência…”
(depoente anônimo)

Esse trecho de depoimento, que parece tirado de algum documento do Dops encontrado nos arquivos do terror e da tortura na ditadura militar, é na verdade um relato comum de pessoas que vivem hoje no Brasil, epicentro da pandemia mundial, em meio aos horrores e a negligência do poder público. O vírus não só impõe uma vida de maiores restrições a liberdade para quem quer evitar a morte, mas também muitas vezes isolam pessoas da família, torturam suas vítimas, e quando não mata, pode deixar sequelas para a vida toda.

Mas para entender tal comparação, que tem o elemento da tortura e sofrimento humano em destaque, é preciso olhar de perto o que se passa na vida de milhares de brasileiras e brasileiros quando precisam ser internados, isolados da família e entubados numa UTI por causa da covid-19. Mais grave ainda é quando verificamos que em muitos hospitais pelo país está faltando o kit-intubação, para evitar que a covid19 torture suas vítimas como em cenas de guerra ou de uma ditadura militar.

A decisão de intubar…

O momento correto de orientar uma intubação é uma decisão muito difícil para a equipe médica. Há casos de pacientes com forte estresse respiratório, na qual a decisão é fácil e categórica. Outros pacientes respondem bem, e não é preciso intubar, mas há pacientes onde a tomada de decisão não é tão simples, podendo haver uma decisão precipitada ou tardia. Isso significa que a maior parte da confiança no manejo da via aérea no caso de uma intubação depende da experiência e treino da equipe.

Quando um paciente está em estado grave, um respirador artificial substitui o trabalho de seus pulmões, bombeando oxigênio para o corpo e removendo dióxido de carbono. Um cateter é introduzido na boca ou através de um pequeno corte na garganta, sendo necessários o uso de analgésicos de alta potência, sedativos e relaxantes musculares durante todo o período que o paciente precisar da intubação. Esses medicamentos impedem a tortura física permanente provocada por esse procedimento invasivo.

Pensem em quantos aspectos desse procedimento médico é preciso que a equipe esteja segura para a tomada de decisão, que está relacionado ao manejo da intubação mecânica, no qual um erro pode ser fatal: a dosagem das drogas da sedação adequada para o conforto do paciente, o posicionamento dos pacientes, a maneira de comunicar na hora do procedimento, como fazer a pré-oxigenação, etc. Tudo isso é motivo de ansiedade nas equipes médicas, pois esses profissionais sabem que são a última barreira para proteger a vida na hora de uma intubação.

Agora imagine a realidade atual de um hospital público, no qual há poucas equipes mais experientes, ou simplesmente não há equipes treinadas, sofrendo a pressão de leitos de UTIs super lotados, da pressão de quem está sofrendo na fila por um respirador, num momento no qual o estoque de oxigênio e medicamentos vão acabar ou acabaram. Dos milhares de casos de pacientes que estão sendo amarrados para suportarem a intubação sem medicamentos sedativos e/ou analgésicos, com dores físicas insuportáveis durante dias. Qual o impacto dessas situações sobre a saúde física e mental de quem morreu ou sobreviveu, sobre os profissionais de saúde, dos familiares e amigos? Trata-se de uma desgraça incalculável!

Milhares de pessoas foram torturadas pelo vírus nos hospitais

O que podemos constatar é que durante todo esse período de pandemia no Brasil milhares de pessoas foram torturadas pelo vírus nos hospitais, milhares sobreviveram não sem sequelas, e até agora quase 400 mil morreram. O numero de pessoas que passaram por esse pesadelo e sofrimento radical poderia ser imensamente menor se não houvesse a negligência criminosa do poder publico. E a sensação de que esse terror de guerra não está perto de acabar, principalmente porque o dirigente máximo da nação além de cometer erros gravíssimos de avaliação do curso da pandemia no Brasil, foi negligente com as vacinas e estimulou a todo momento aglomerações que causam a circulação do vírus como a superlotação dos hospitais, leia-se: mais mortes e mais pessoas sob situação de tortura física permanente!

A CPI do genocídio!

O relatório finalizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em abril será uma das prioridades da CPI da Covid, instalada no Senado na semana passada. Segundo o TCU, seus fiscais relatam nesse documento que acompanharam os medicamentos utilizados para a intubação de pacientes internados em hospitais públicos. Em reportagem do UOL, o relatório diz que o Ministério deixou de levar em conta a necessidade de abastecimento de medicamentos das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimentos (UPA), que também estariam realizando procedimento de intubação em pacientes graves. E conclui: “Os trabalhos de controle e monitoramento do MS (Ministério da Saúde) para os medicamentos de IOT (Intubação Oro Traqueal) foram ineficazes por falta de controle em tempo real e de sistema apropriado e, principalmente, por desconsiderarem o agravamento da crise, as condições sanitárias do país e as reais necessidades das secretarias de saúde.”

No decreto 7616/2011, estão expressas as responsabilidades do ministro da Saúde designado para coordenar as medidas a serem executadas durante a Emergência em Saúde Publica: “planejar, organizar, coordenar e controlar.” Segundo o relatório do TCU: “Esse dever irrenunciável e a omissão configura abuso de poder, levando a consequente responsabilização da Administração e/ou o seu agente…” e ainda: “verificou-se que o Ministério da Saúde não tem liderado esse processo. Ao reverso, excluiu do Plano de Contingência Nacional a ação que lhe atribuía essa responsabilidade.”

Quase 400 cidades podem sofrer falta de oxigênio

Em reportagem da Agência Brasil de 16 de abril, a Confederação Nacional dos Municípios relata que quase mil cidades estão sob o risco de falta de remédios do Kit Intubação e quase 400 cidades podem sofrer falta de oxigênio. Dados gravíssimos que se somam ao relatório do TCU que acusa o governo Bolsonaro de não monitorar em tempo real os estoques e a distribuição proporcional dos medicamentos do Kit Intubação, responsabilidade direta do Ministério da Saúde. Essa situação acontece mesmo após termos no inicio do ano vivenciado a crise da falta de oxigênio em Manaus (AM), que matou tanto pacientes acometidos de covid, como de outras enfermidades que necessitavam desse insumo para que as pessoas pudessem ter o direito de respirar.

Em depoimentos ao portal G1, uma enfermeira que trabalha no Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro, afirmou que pacientes com quadros clínicos graves de Covid19 estão intubados, mas sem sedativos – o que significa, na prática, que os doentes acabam por ficar amarrados e despertos, conscientes. Na reportagem, a profissional de saúde diz: “ Na sala vermelha, os pacientes estão intubados e amarrados, estão vivenciando tudo acordado e sem sedativo, pois não tem nenhum sedativo, acabou tudo. Só para o CTI e mesmo assim estão sendo rediluídos e mesmo assim não dá para todos os pacientes. Eles ficam tudo acordado, sem sedativos, intubados, amarrados e pedindo para não morrer”. O médico intensivista Áureo do Carmo Filho diz nessa mesma reportagem: “A contenção mecânica usada sem sedativo é realmente uma forma de tortura porque o paciente está ali incomodado e está se vendo numa situação em que ele não pode nem mesmo chamar ajuda pela equipe multiprofissional”.

O governo de São Paulo publicou semana passada vários ofícios sem resposta do ministério da saúde sobre o abastecimento de medicamentos do Kit Intubação, segundo o secretario de saúde do estado de São Paulo, o ministério da saúde ainda sob o comando do general Pazzuelo requisitou a centralização desses medicamentos para todos os distribuidores que atuam no mercado nacional. Ficando impossível aos estados adquiri-los. Como essa medida não foi alterada por parte do atual ministro, fica evidente que é o governo federal que precisa garantir o abastecimento desses medicamentos.

Ainda segundo o governo de São Paulo, nesse final de semana, o quantitativo desses medicamentos enviado pelo Ministério só conseguirá atender as necessidades dos hospitais por três dias. Nota-se nessa situação que o mês de abril não vai se intensificar somente as mortes por covid19, mas também teremos mais cenas de tortura física expressando o caráter desumano que principalmente o governo federal vem tratando a pandemia no Brasil. Lembrando que o Ministério da Saúde, em um ano de pandemia, teve quatro ministros e troca também de equipes, gerando descontinuidade nos trabalhos. Vimos o presidente da República (que até hoje não se vacinou), desautorizar publicamente o Ministério da Saúde em relação a compra de vacinas, a incentivar aglomerações em visitas a cidades, jogar desconfiança no uso de máscaras e ser um critico sistemático de medidas restritivas, fundamentais para desafogar o sistema publico de saúde.

Caso haja um trabalho sério e profundo, não será difícil que a CPI da Covid19, conclua que o governo federal e o Ministério da Saúde sob o comando de um general da ativa tenha cometido crimes contra a humanidade. Destacamos novamente, não se trata somente de centenas de milhares de vidas que se foram por pura negligencia, mas também é preciso considerar as centenas de milhares de pessoas que passaram por situações análogas a tortura em hospitais públicos. Ocasionando sequelas graves na saúde física e mental de pacientes, profissionais de saúde, familiares e amigos.

Ironicamente, nesse mês de abril, lembramos que cinco anos atrás, o atual presidente da República, na condição de deputado federal, foi defender o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, dedicando o seu voto a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos símbolos da tortura de várias pessoas na ditadura militar. Foi um ato sádico, covarde e cruel, assim como eram as sessões de torturas em centenas de pessoas que aconteceram sob o comando do coronel Ustra durante a ditadura militar, período em que foram contabilizadas 434 mortes e desaparecimentos no país, segundo a Comissão da Verdade.

“Do quinto dos infernos”, o coronel Ustra deve estar orgulhoso de seu pupilo, afinal, os números de pessoas assassinadas, torturadas e sequeladas pela negligência do governo Bolsonaro na maior crise sanitária do Brasil são de dar inveja aos maiores genocidas da história da humanidade.

Impeachment já!

A catástrofe brasileira tem muitos responsáveis. Com certeza é preciso investigar não só o governo federal, mas também erros que podem ter acontecido em gestões estaduais e municipais. Que sejam inclusive motivo de CPIs nas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais pelo país. Mas não resta nenhuma duvida que Bolsonaro cometeu gravíssimos crimes de responsabilidade diante da pandemia, com decisões, posturas e comportamentos completamente diferentes da maioria absoluta dos líderes mundiais. Os números trágicos da pandemia no Brasil, relatórios de investigações e o vasto material audiovisual já disponível nas redes sociais e muito mais que está por vir já são provas suficientes de crimes lesa humanidade cometidos pelo capitão cloroquina.

Mas provar não é suficiente, é preciso pressão e mobilização social para exigir que os senadores façam uma CPI pra valer e que o Congresso Nacional abra definitivamente um processo de impeachment de Jair Bolsonaro. Por motivos infinitamente menores, outros presidentes sofreram processo de impedimento pelo congresso. Seria um erro trágico aguardarmos que se interrompa um governo genocida somente em 2022 através da eleição presidencial. Bolsonaro e muita gente no seu governo, por toda desgraça e humilhação que estão submetendo milhares de brasileiras e brasileiros, já demonstraram que não possuem condições de governar, precisam ser impedidos, ter os seus direitos políticos suspensos e cumprir pena na cadeia.

*da Coordenação Nacional da Travessia Coletivo Sindical e Popular.

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