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BRASIL

Memória, verdade, justiça e resiliência: o ‘caso Volkswagem’

Carlos Nicodemos e Aderson Bussinger Carvalho*
DW

Recente relatório lançado por Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) dá conta do cumprimento em fases e etapas do acordo celebrado com a multinacional Volkswagen, no âmbito do Inquérito Civil nº 00031614/2021, no qual a mesma reconhece sua conivência e participação no regime ditatorial instalado no Brasil em 1964, através de forças institucionais militares, empresariais e midiáticas.

Para uma análise pormenorizada de importante documento lançado pelo trio de órgãos ministeriais, é preciso dar um passo atrás para seguirmos com dois à frente.

Nesse signo, indiscutivelmente, o acordo celebrado institui um importante paradigma no campo da memória, da verdade e da justiça, propriamente na responsabilização das forças institucionais empresariais no golpe de Estado perpetrado na década de 60, e que precisa ser investigado para além da perspectiva acadêmica, mas, sim, na lógica da reparação dos danos individuais e coletivos causados aos brasileiros(as) e à sociedade como um todo no seu sentido civilizatório.

Assim, fato é que o termo de ajustamento de conduta (TAC) celebrado pelos órgãos ministeriais com a empresa Volkswagen ganha contornos de estabelecer uma pedra fundamental que impõe na modernidade, ao Estado e à sociedade como um todo, o desafio de dar luz a tantos outros casos que foram forjados por forças econômicas no processo ditatorial e que violaram muitos direitos dos trabalhadores(as), suas famílias e a sociedade.

Mas o que se espera com essa ação? Uma indenização? Não! O momento é de luta e reivindicação para que se estabeleça uma lógica de reparação no sentido amplo do campo do Direito internacional dos direitos humanos.

Nessa toada, incialmente, é preciso considerar que a Resolução nº 60/147, de 16 de dezembro de 2005, da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), consolidou os “Princípios e Diretrizes Básicas sobre o Direito a Recurso e Reparação para Vítimas de Violações Flagrantes das Normas Internacionais de Direitos Humanos e de Violações Graves do Direito Internacional Humanitário”, atestando ser direito das vítimas buscar a reparação de seus direitos fundamentais violados.

Por outro giro, a Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, em seu artigo 25 estabelece que “todas as pessoas têm o direito a um recurso simples, rápido e efetivo, não somente em decorrência de violações de seus dispositivos, mas, também, por violações da legislação interna”.

Nas palavras de Antônio Cançado de Trindade, referência no campo do Direito internacional dos direitos humanos, “dever de reparação constitui uma obrigação nova e adicional, que se soma à obrigação primária (de respeito aos direitos humanos), cuja violação constitui o ato ilícito internacional”.

Assim, no mosaico do conceito de reparação, no campo internacional dos direitos humanos, temos a premissa da restituição, da reabilitação, da indenização, da satisfação e a garantia de não repetição das violações.

Ancorados nessa regra internacionalista do conceito de reparação, que, na condição de advogados do Instituto de Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisa, noticiante do fato que gerou a instauração do Inquérito Civil Público (ICC) — Procuradoria Regional do Cidadão, nº 00031614/2021 —, apresentamos, em nome da entidade, o pedido de reconsideração quanto à homologação do termo de ajustamento de conduta ao Conselho Superior do Ministério Público Federal.

Tal hipótese de recurso interno administrativo encontra guarita na Resolução 23 do Conselho Nacional do Ministério Público, senão vejamos: “Artigo 10  Esgotadas todas as possibilidades de diligências, o membro do Ministério Público, caso se convença da inexistência de fundamento para a propositura de ação civil pública, promoverá, fundamentadamente, o arquivamento do inquérito civil ou do procedimento preparatório”.

Em boa hora, o Conselho Superior do Ministério Público recebeu o pedido de reconsideração formulado pela entidade noticiante do fato, legítima interessada no resultado alcançado no termo de ajustamento de conduta, e deu à mesma o nº PA-OUT-1.00.000.004076/2021-91 naquele órgão superior da Procuradoria-Geral do Ministério Público Federal no Estado de São Paulo.

A persistência dos recorrentes não tem como objetivo obstaculizar os recebimentos das indenizações individuais que devem ser pagas imediatamente por questões humanitárias, considerando o estado de vulnerabilidade social e pessoal dos trabalhadores e trabalhadoras que foram perseguidos politicamente pela empresa denunciada.

Sobre essa condição de vulnerabilidade das vítimas, além do que o inquérito civil, in casu, da Volkswagen, contém, o vasto material probatório recolhido pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei 15.528/2011, através de seu grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e Trabalhadoras e ao Movimento Sindical, coordenado pela advogada Rosa Cardoso — que é também uma das subscritoras do recurso em comento —, demonstra cabalmente a dimensão de toda repressão implementada nas empresas durante esse período, cabendo doravante aprofundar e responsabilizar em cada caso concreto.

O escopo da luta de trazer o debate internacionalista de direitos humanos para esse caso, agora no âmbito do Conselho Superior do Ministério Público Federal, na esteira do conceito (restituição, reabilitação, indenização, satisfação de garantia de não repetição das violações) que aqui traçamos, está na imperiosa necessidade de que ocorra um aprofundamento das investigações civis, quiçá criminais, quanto à responsabilidade da empresa multinacional Volkswagen.

Investigações essas que possam resultar em outros rumos quanto à satisfação da memória das vítimas do processo político persecutório, a não repetição de tais práticas do arbítrio que deveriam estar vinculadas a uma ação pedagógica da empresa no campo da memória, verdade e Justiça etc.

Somos sabedores de que a apreciação do pedido de reconsideração aqui anunciado pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal não encerra esse debate nem sepulta a responsabilidade do Estado brasileiro e da própria empresa no âmbito internacional dos direitos humanos.

A bem da verdade, a título ilustrativo, firmarmos certeza do concurso de responsabilidades internacionais do Estado brasileiro e da empresa multinacional Volkswagem.

Para esse norte, nos socorremos mais uma vez da obra “Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos do Século XXI”, do ilustre Professor Antônio Cançado Trindade, que apontou: Resulta hoje claríssimo que nada há de intrínseco ao Direito Internacional que impeça ou impossibilite a atores não estatais desfrutar da personalidade e capacidade jurídicas internacionais. Ninguém em sã consciência ousaria hoje negar que os indivíduos efetivamente possuem direitos e obrigações que emanam diretamente do Direito Internacional, com o qual se encontram, portanto, em contato direto. E é perfeitamente possível conceituar — inclusive com maior precisão — como sujeito do Direito Internacional qualquer pessoa ou entidade, titular de direitos e portadora de obrigações que emanam diretamente de normas do Direito Internacional. É o caso dos indivíduos, que têm, assim, estreitados e fortalecidos seus contatos diretos — sem intermediários — com o ordenamento jurídico internacional”.

É igualmente possível, dentro de referida conceituação e identificação dos diversos sujeitos que podem demandar o cumprimento dessas normas internacionais, encontrar, para além dos ex-empregados da Volkswagen no caso concreto desse inquérito civil público, uma enorme quantidade de outras coletividades de trabalhadores e seus descendentes, que foram objeto de lesões de direitos humanos no âmbito do regime militar instalado a partir de 1964, como é sabido em relação aos trabalhadores da Embraer e da General Motors, no município de São José dos Campos (SP), conforme centenas de decisões da Comissão Nacional de Anistia que atestam as perseguições patrocinadas pelo regime militar nessas empresas.

E também lembrar a repressão havida na empresa Docas, em Santos, no Arsenal de Marinha e Reduc, no Rio de Janeiro, para citar aqui alguns casos mais famosos, todos a demandar respostas plano de uma efetiva justiça de transição, que, conforme acima destacado, não se circunscreve às indenizações individuais, embora também necessárias, mas possuem escopo muito mais amplo no sentido educativo da necessária rejeição às práticas contrárias aos direitos humanos.

Dentro dessa visão, é possível dizer que o universo de investigação sobre o que de fato ocorreu durante a ditadura na empresa Volkswagen, em que o inquérito em comento é pioneiro, se trata de uma amostra do que aconteceu em todo país, guardadas as dimensões de cada caso, assim como, no plano internacional, se comunica e dialoga como o que ocorreu nas empresas em toda a América Latina, cabendo aqui louvar os avanços de que se tem notícia da Argentina, no que diz respeito não somente à condenação dos próceres dos regimes militares neste país, mas, também, das empresas e empresários que financiaram a ditadura argentina.

Está, portanto, uma das razões pelas quais se questionou, através do recurso proposto, o desfecho do TAC em relação a Volkswagen: o compromisso com os direitos humanos em escala internacional, não sendo plausível que o Brasil, um dos países mais atrasados na responsabilização dos torturadores, adote a mesma linha de omissão no tema da responsabilização empresarial, pois, afinal, é notório que o golpe e a ditadura foram de natureza civil-militar.

Nesse passo, os subscritores do recurso endereçado ao Conselho Nacional do Ministério Público, sem jamais deixar de se reconhecer o avanço promovido pela abertura da investigação contida no inquérito civil público em tela, entendem que há muito o que se aprofundar nesse campo, pelo que o precedente de uma conclusão precipitada — sem concluir pela responsabilização dos dirigentes e prepostos da empresa que atuaram direta ou indiretamente nos fatos que são relatados nos autos do inquérito —, é grave precedente, que, exatamente por deixar de avançar, pode servir para proteger, pela impunidade, tudo aquilo que urge que seja revelado sobre o capítulo da associação e conluio de parte do empresariado com os militares.

Assim, como se vê, daquilo que não se contemplou no mencionado termo de ajustamento de conduta liderado pelos órgãos ministeriais, arquivado tacitamente pelos ilustres procuradores, seguirá aberto para uma submissão de revisão ao Conselho Superior do Ministério Público Federal, inicialmente.

Não havendo rendição aos argumentos reparatórios internacionalistas de proteção aos direitos fundamentais no campo da memória, verdade e justiça, resilientes na Justiça interna, esgotando-se os caminhos institucionais do Estado brasileiro, seguiremos rumo aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos na perspectiva da defesa intransigente da democracia e dos direitos humanos.

*Texto publicado originalmente em Conjur.com.br
**Aderson Bussinger Carvalho é advogado, conselheiro seccional da OAB/RJ e diretor do Centro de Pesquisa e Documentação da OAB-RJ. Militante da Resistência.

Carlos Nicodemos é advogado, membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB, membro do MNDH, do Projeto Legal e presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB/RJ.