O Brasil ultrapassou 300 mil mortos pela pandemia do coronavírus, mesmo pelos dados oficiais subnotificados, com média de vidas perdidas diárias acima das 3.000. Se deixarmos fora da conta o genocídio dos povos indígenas desde a chegada do colonizador europeu e os três séculos e meio de escravização dos povos africanos – por serem processos de longa duração e impacto incomparável ao de um evento mais localizado no tempo –, como evento, esta pandemia já é a maior tragédia humanitária da história do país. Até aqui, já morreram seis vezes mais brasileiras e brasileiros do que na Guerra do Paraguai, na década de 1860 (e cerca de o dobro dos mortos totais da Guerra, incluídos argentinos, uruguaios e o genocídio de paraguaios, que perderam 150 mil vidas). A “gripe espanhola”, maior tragédia humanitária da história da humanidade, matou no Brasil, entre 1918 e 1920, cerca de 35 mil pessoas. Não apenas em números absolutos, mas também em termos relativos ao total da população brasileira em cada época, a covid-19 já matou mais que a “gripe espanhola” e caminha para matar muito mais. Apesar de todos os avanços da ciência e da saúde pública, que se evidenciam em termos mundiais, pois a covid-19, até agora, ainda não atingiu três milhões de mortes, enquanto a “espanhola”, mesmo nas estimativas mais conservadoras, matou pelo menos dez vezes mais, com uma população planetária quatro vezes menos numerosa que a atual.
Com a taxa de desemprego acima de 14%, o mercado informal de trabalho em retração, mais da metade da população em idade de trabalhar fora do mercado de trabalho e a interrupção do pagamento do auxílio emergencial (que voltará agora em valores pífios e para menos gente), um outro cavaleiro do apocalipse ombreia a peste: é a fome.
Os dados do IBGE identificaram o crescimento do número de famílias e pessoas em insegurança alimentar nos últimos anos (em 2017-18, 85 milhões de pessoas habitavam domicílios com algum grau de insegurança alimentar, mais de 10 milhões entre elas em insegurança grave, ou seja, fome). As estimativas recentes apontam para um agravamento desse quadro. Pesquisa recente estimou que 36% da população brasileira (mais de 76 milhões de pessoas) está atravessando restrições alimentares significativas na pandemia, dos quais quase 15 milhões afirmam ter passado ou estar passando fome. Nas favelas das grandes cidades brasileiras, outra pesquisa recente avaliou que mais de 80% dos moradores e moradoras depende de doações para se alimentar e cerca de 70% tem vivido restrições alimentares nos últimos meses.
A causa dessa tragédia social, sanitária e humanitária não é o vírus, pois dispomos de recursos científicos e estrutura de saúde pública que poderiam ter sido efetivamente mobilizados, desde o início de 2020, para reduzir a níveis infinitamente mais baixos essas perdas. O Estado dispõe de recursos para garantir renda para a maioria. A responsabilidade é da política consciente e planejada do governo federal para manter as atividades públicas funcionando “normalmente”, evitar e/ou boicotar as medidas de quarentena e estimular o contágio, apostando no espalhamento da pandemia até que a imunidade coletiva seja atingida custe o que custar (nossas vidas!). Nunca é demais repetir: não é incompetência, nem ignorância; é projeto!
Bolsonaro é um (neo)fascista. Não deveria surpreender a ninguém que ele veja a situação atual com um olhar eugenista: vão morrer os “mais fracos”. Mesmo que os cientistas desmintam a possibilidade da imunidade coletiva ser alcançada sem vacinas, na fria análise de alguém movido pela pulsão de morte, os eliminados no paredão da doença serão: brasileiros e brasileiras velhos; doentes crônicos com “comorbidades”; e as parcelas mais empobrecidas da população trabalhadora, que possuem marcadores raciais e territoriais conhecidos. Nos salões do Alvorada, o aspirante a ditador deve bailar todas as noites, em êxtase, com o fato de que o vírus esteja sendo muito mais eficiente do que a ditadura, como evidenciou em sua antiga e conhecida evocação de uma guerra civil para compensar a decepção com o regime militar, por não ter matado 30 mil pessoas. Levemos a sério a caracterização de que o fascismo é uma ideologia de extrema direita que possui, entre seus marcadores distintivos, a lógica do extermínio de “inimigos” forjados e do sacrifício das vidas humanas no altar patriótico dos conflitos armados. Na ausência de guerras reais, é ao vírus que o aspirante a führer glicerence quer que enfrentemos “como homens”, não “como maricas”. Para ampliar, sabe-se lá até onde, o bailado macabro dos números de vítimas que, entabulados, mapeados e normalizados pelos meios de comunicação, parece não ter mais fim.
Diante dessa barbárie planejada, só resta um caminho: levar adiante de imediato a batalha pela vida no próximo período, para garantir vacinação em massa e mais rápida, auxílio emergencial e garantias de emprego que permitam um lockdown nacional de algumas semanas, para travar a progressão exponencial das contaminações e mortes. Sabemos, entretanto, de que para garantir isso e ir além só há uma saída: a saída do presidente genocida.
Não é possível terceirizar a derrubada de Bolsonaro para o andar de cima
Nos últimos dias, o anúncio de uma carta de setores do grande empresariado, representantes em especial do capital financeiro – chamada de “Carta dos economistas” – acendeu o sinal de alerta para um descolamento de parcela expressiva do grande capital em relação às políticas do executivo federal. As declarações quase diárias de Paulo Guedes de que a retomada da economia depende da vacinação em massa reforçam o sinal. A interlocução de “líderes empresariais” com os presidentes das casas legislativas, transformando o “centrão” em porta-voz do capital nas ameaças de Lira a Bolsonaro, teve direção semelhante.
Até aqui, porém, as demarcações em relação ao negacionismo presidencial por parte da grande burguesia foram sempre amenizadas pela expectativa e pressão para arrancar mais reformas que reduzam direitos da classe trabalhadora e mais transferências do fundo público para garantia do lucro privado (na forma de privatizações a preço de banana, ou de mais “bolsas banqueiro”). A burguesia não desenvolveu um sentimento humanitário e não abrirá mão do seu programa radicalmente neoliberal, mas parece ter feito as contas e passou a avisar que o custo da crise sanitária e social pode ser insuportável. É mais barato tomar medidas de prevenção para tentar sair do caos sanitário e viabilizar uma retomada sustentável da atividade econômica. E é mais seguro estancar a crise antes que ela escale para uma revolta dos espoliados, ao estilo da que ocorreu no Paraguai. Afinal, a classe dominante aqui instalada sempre alimentou o barril de pólvora da convulsão social com a superexploração ascendente da força de trabalho, mas é hábil em apagar os pavios que poderiam acendê-lo, com estratégias repressivas e manobras ideológicas combinadas.
A “carta dos economistas”, reforçamos, ainda não é uma indicação de que o grande capital queira por fim ao mandato de Bolsonaro, o que poderia gerar uma instabilidade política sobre a qual pode-se perder o controle. Por enquanto, o preço cobrado do governo pelos empresários e pelo Centrão foi a troca nos ministérios da Saúde e das Relações Exteriores, com a previsão de novas mudanças no primeiro escalão, especialmente na pasta do Meio-Ambiente.
Por outro lado, a troca do Ministério da Defesa, comandos militares e Advogado Geral da União revelou outra crise no andar de cima. O ocupante da cadeira presidencial é coerente em seu objetivo de fechamento político. Em maio do ano passado, parece ter testado o apoio militar para interferir no STF e não foi bem-sucedido. Agora, a intenção antidemocrática foi mais limitada, mirando os governadores e suas medidas de quarentena limitadas, mas nem o AGU aceitou assinar a demanda ao STF de interferência federal na política sanitária dos estados, nem os chefes militares parecem ter concordado em respaldar avanços intervencionistas nessa direção. Restou ao presidente e aos seus mais próximos apoiadores agitarem seus arroubos golpistas nas redes sociais com o caso do policial militar baiano e no congresso nacional com o natimorto projeto de “mobilização nacional”.
Do episódio restam muitas incertezas quanto ao grau de comprometimento da cúpula dos militares da ativa com o governo. Dos oficiais generais que cercam Bolsonaro desde sua campanha, não resta mais muita dúvida – vide o livro-depoimento do general Villas Boas – de que tomam parte no consenso ideológico neofascista que sustenta o núcleo duro ao redor do presidente e defendem uma intervenção militar crescente na vida pública. Do alto comando da ativa, temos poucos elementos para afirmar o que pesa mais no apoio ao governo: a defesa corporativa de orçamento crescente, blindagem contra a reforma previdenciária e o congelamento de salário do funcionalismo, somadas ao número recorde de cargos nos três primeiros escalões da administração direta e nas estatais; ou um acordo ideológico mais amplo com os valores e projetos de Villas Boas, Heleno, Braga Netto e Bolsonaro. Mas, as duas coisas estão presentes e o limite desse acordo parece se dar apenas pelo cálculo de que mais vale continuar ocupando o governo pela via eleitoral do que desgastar a imagem da corporação militar com a marca da incompetência de Pazuello, a verborragia neofascista e a ânsia golpista do presidente. De qualquer forma, nada indica que, apesar da crise, haja um desembarque das tropas da nau capitânia política do governo do capitão.
Qualquer que sejam os desdobramentos dessas crises do andar de cima com o governo, algumas linhas de interpretação são possíveis. Primeiro, Bolsonaro não é um presidente típico do regime democrático limitado instalado no Brasil pós-ditadura, daqueles que coloca em primeiro lugar a “governabilidade”. Ele se equilibra entre crises muitas vezes criadas por ele, para instilar sua base social, que precisa ser permanentemente mobilizada, ou para testar os limites do regime político, mantendo sempre a tensão pelas medidas de exceção, ainda que recue ao esbarrar na resistência. No momento e no horizonte de médio prazo, não há condições objetivas para um autogolpe, mas ele continuará gerando situações críticas para manter esse objetivo vivo. Segundo, o Centrão quer cargos e verbas, militares querem manter seu espaço no governo e o capital exige mais (contra)reformas ao mesmo tempo que pressiona por um “ambiente de estabilidade” favorável aos negócios, que Bolsonaro não quer e não pode gerar. Terceiro, até aqui, nada indica que esses conflitos levem tais forças a optar pelo impeachment. Mesmo que imaginemos um cenário no médio prazo em que a escalada da crise sanitária e social gere ameaças de convulsão social, quadro ao qual pode se somar à pressão do imperialismo estadunidense (agora sob nova direção) e dos organismos multilaterais pela deposição de Bolsonaro, uma saída pelo alto, que o substitua por Mourão, sem interferência significativa da pressão de baixo (dos setores organizados ou não da classe trabalhadora), não significará uma alteração qualitativa da situação política profundamente reacionária e do quadro ultradefensivo em que se encontram as forças do trabalho.
É certo que as rusgas palacianas e as críticas abertas dos magnatas enfraquecem o capitão. Além disso, ante a tragédia em curso, tudo e qualquer coisa pode ser preferível a Bolsonaro. Mas não podemos terceirizar a luta para nos livrarmos dele, confiando na saída do andar de cima.
Não há um atalho no tempo que nos leve diretamente a outubro de 2022
A recuperação dos direitos políticos de Lula – que esperamos seja mantida – foi uma enorme conquista democrática. O desmanche da operação lava-jato – o braço judiciário do golpe de 2016 e da eleição de Bolsonaro, decidida em grande medida pelo impedimento do líder petista –, ainda que tardia, é um alento para quem continua a defender as poucas garantias democráticas que restam de pé, todas fruto de longas batalhas da classe trabalhadora.
É natural que a volta de Lula ao cenário político alimente esperanças. Trata-se de uma figura nascida nas lutas da classe trabalhadora, perseguida politicamente nos últimos anos, que encarna um potencial eleitoral capaz de fazer frente a Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022.
Mas, outubro de 2022 é uma miragem distante no Brasil de hoje. Quantas mais centenas de milhares de pessoas morrerão desta peste, se Bolsonaro não for detido o mais breve possível? Quantas sucumbirão à fome? Quantas vezes, nos últimos tempos, Lula e o PT apostaram em canalizar o impulso da luta imediata para a próxima estação do calendário eleitoral? E quantas vezes, nestes tempos sombrios, as forças da classe trabalhadora amargaram derrotas significativas por conta disso?
Um cenário eleitoral em 2022 com uma Frente Única das forças da classe, reunindo partidos e movimentos de base trabalhadora, em torno a um programa que aponte para uma mudança de rumo estrutural, seria de fato um potente instrumento para derrotar Bolsonaro no plano institucional (ainda que saibamos que o bolsonarismo não sumirá do mapa por uma derrota eleitoral). Um cenário desse tipo, entretanto, não é o que desenha Lula em seus movimentos em busca de uma aliança ao centro, com o filho de José Alencar de vice, nem o que projeta em seus discursos, reivindicando ex-votos da burguesia nos altares de Aparecida, procurando por um “posto Ipiranga” pra chamar de seu e acenando com mais abertura de capital dos bancos e demais empresas estatais.
Uma frente única eleitoral, ou frente exclusivamente de partidos de esquerda, não surgirá por conversas entre capas-pretas e acordos de cúpulas partidárias, simplesmente porque o principal objeto do desejo desse tipo de articulação, o personagem principal dos scripts rascunhados alhures, não seguirá voluntariamente por esse caminho. Só um forte movimento de lutas sociais desde baixo poderia gerar, desde agora até lá, a pressão política necessária para que uma frente de esquerda seja construída em 2022.
Não há atalhos eleitorais fáceis em um quadro de acúmulo de derrotas no terreno das lutas vivas da classe, muito menos face a derrota galopante da luta pela vida. De Lula, agora, cabe cobrar que use sua influência de massas e seu espaço político para ser um porta-voz do Fora Bolsonaro já!, para salvar vidas. E que mobilize efetivamente toda a influência petista no parlamento, nos governos estaduais e nos movimentos sociais que dirige, para transformar em ação esse discurso.
Continua sendo Nós por Nós
Após um ano de pandemia, com o chamado às mobilizações nas ruas bloqueado pela fase de descontrole total da pandemia, a impressão inicial, que desperta nossa ansiedade, é de que não há luta visível ou possível do andar de baixo. É uma impressão falsa.
A luta mais importante nestes últimos doze meses, a luta pela vida, contra o genocídio planejado desde o Planalto e contra o avanço da miséria e da fome está sendo cotidiana e organizadamente conduzida por uma enorme rede de movimentos nos territórios periféricos do país. Educação sanitária através da comunicação popular e comunitária; arrecadação e distribuição de alimentos e material de limpeza e higiene pessoal; esforços comunitários de saúde pública, e muito mais, vêm sendo tocados, desde o início da pandemia, por uma série de ativistas e entidades.
Eles não são fruto de algum tipo de geração espontânea, mas refletem o acúmulo de lutas dos últimos tempos. Se Junho de 2013 levou às ruas pela primeira vez toda uma nova geração; nos anos seguintes, as ondas de greves, ocupações de escolas e manifestações feministas formaram uma ampla camada de ativistas daquela geração. Mesmo quando a conjuntura virou, com a onda conservadora que desaguou no golpe de 2016 e nas eleições de 2018, essa geração de ativismo se fez presente em lutas de massa, com mais ocupações, a greve geral de 2017, o “Ele Não!” e, mesmo já com Bolsonaro na presidência, com o Tsunami da Educação.
São ativistas jovens, com forte protagonismo negro, feminino, da população LGBTQIA+ e presença efetiva nas favelas e periferias das grandes cidades. Estiveram à frente das manifestações antirracistas e antifascistas de meados do ano passado e estarão presentes com destaque em todas as lutas do próximo período. É com elas que as gerações mais velhas de militantes e os movimentos mais tradicionais devem buscar se articular para produzir a frente única da classe trabalhadora desde baixo. O exemplo do MTST e do MST articulando-se a esses movimentos e ativistas nos territórios periféricos para contribuir, com alimentos da reforma agrária e cozinhas solidárias, para o combate à fome na pandemia, deve inspirar muitos mais.
A potência da solidariedade de classe contrasta com o que a mídia e a burguesia tentam capturar com a filantropia empresarial. Porque essa solidariedade salva vidas no imediato, mas dela também surgem os laços de confiança política mútua, abalados por décadas de aprisionamento dos movimentos a calendários eleitorais e programas de conciliação construídos muito longe desses territórios. E esses laços potencializam um salto necessário na construção de formas organizativas essenciais para efetivar, emergencialmente, um programa que estanque a tragédia imposta por Bolsonaro: um lockdown nacional sério, para conter o espalhamento da doença e as milhares de vidas perdidas diariamente, com auxílio emergencial de no mínimo R$ 600,00, ajuda aos pequenos negócios, garantia de emprego e pressão por mais vacinas.
Essa pauta imediata não parece coisa de outro mundo, seus pontos são decorrências óbvias de qualquer análise sensata da realidade. Mas, no Brasil de 2021, em que a sensatez parece ser artigo raro, sabemos que o andar de cima não a prioriza e o Planalto a bloqueia. Para efetivá-la é preciso travar, concomitantemente, uma luta feroz para afastar Bolsonaro.
Não há atalhos para essa luta, não há para quem terceirizá-la. Os caminhos, construímos nós, que caminhamos.
*Historiador, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), integrante do NIEP/Marx, militante da Resistência/PSOL, autor do livro “Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil” (Usina Editorial, 2020)
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