1 – Chegou o dia 31 de março e a esquerda está “à beira de um ataque de nervos”. Temos, na esquerda, os que preveem a iminência real e imediata de um autogolpe de Bolsonaro. Temos os que preveem, com não menos veemência, a sua queda. Às vezes, os mesmos, o que é perturbador, mas não é engraçado. Ambos se enganam. O que aconteceu com a reforma ministerial não é a antessala de um autogolpe em preparação. O Brasil não é a Bolívia. Não há golpe no Brasil sem luz verde da embaixada norte-americana. Não há golpe no Brasil sem apoio do grande capital, sem mobilização de massas da pequena burguesia, sem a intensa articulação da alta oficialidade das Forças Armadas, sem um clima político-social incendiado pela grande mídia. Tampouco estão maduras as condições para um impeachment de Bolsonaro. Não há disposição de luta para uma greve geral entre os trabalhadores, nenhuma fração burguesa desistiu, definitivamente, de pressionar o governo para tentar enquadrá-lo, além de que, também, a catástrofe sanitária não permite, por enquanto, iniciar os trâmites constitucionais, etc, etc.
2. O Brasil é um país muito complexo, complicado, difícil e peculiar, por variados motivos, mas não tão imprevisível. A “astrologia”, mesmo quando é de esquerda e divertida, ou seja, o mundo subjetivo das intuições, não é um método superior ao marxismo. Inteligências intuitivas são brilhantes. Mas estudar as relações sociais e políticas de força não é um exercício vão. Os três fatores mais importantes que explicam a reforma ministerial são o ápice apocalíptico da pandemia, o impacto espetacular da recuperação dos direitos políticos de Lula, e a repercussão avassaladora do manifesto dos 500 como expressão da brecha do núcleo mais poderoso da burguesia com Bolsonaro. Todos sinalizam o enfraquecimento, ainda que lento, do governo de extrema-direita. Eles precipitaram uma disputa pública entre as quatro alas do governo. O centrão contra a ala neofascista liderada pelo clã presidencial, a ala ultraliberal contra o centrão, e o movimento de Bolsonaro contra a cúpula militar. O rearranjo foi uma consequência, para tentar ganhar tempo, recuperar estabilidade, e se preparar para as eleições de 2022, contra a provável presença de Lula em um segundo turno. A reforma ministerial revela que Bolsonaro foi empurrado, mas, também, evidentemente, que pode fazê-lo. Bolsonaro tem ambições bonapartistas, mas o grande capital não apoia uma subversão do regime.
3. A reforma ministerial foi expressão de um rearranjo de forças dentro de um governo de coalizão de quatro alas de extrema-direita em dinâmica de enfraquecimento. Nem mais, nem menos do que isso. Bolsonaro sacrificou Pazzuelo e Araújo, e nomeou Flávia Arruda para tranquilizar o centrão, responder ao manifesto dos 500, e apaguizar, também, as relações com Paulo Guedes e a ala ultraliberal, tencionada pelas emendas adicionadas ao orçamento. Deslocou Braga Netto para o Ministério da Defesa para conseguir maior alinhamento da ala militar. O resto foi uma dança de cadeiras, ou rotina administrativa. Não foi um contra-ataque. Foi, essencialmente, um recuo, com rearranjos. Essa iniciativa emergencial não é contraditória com a estratégia que orienta o governo de extrema-direita, desde a posse, de buscar um reposicionamento do Brasil no mercado mundial de forma atrair mais investimentos. Uma localização privilegiada na relação com o imperialismo norte-americano exige uma nivelação das condições de superexploração da força de trabalho mais próxima daquelas que prevalecem na Ásia, uma especialização primário-exportadora, uma redução dos custos fiscais dos serviços sociais do Estado, e muito mais. Essa estratégia tem o apoio da classe dominante. Mas as circunstâncias da pandemia trouxeram turbulência política, porque Bolsonaro é um negacionista delirante. A “massa da burguesia”, no sentido marxista, apoia a linha extremista contra os lockdowns, mas o núcleo duro do grande capital, não. E prioridade é prioridade. O desastre da pandemia ameaça a estabilidade do regime. E isso é mais importante que o destino de Bolsonaro.
4. Em momentos como os destes dias podemos constatar como as discussões teóricas são imprescindíveis. Duas posições equivocadas sobre o que aconteceu desde 2013 estão sempre presentes diante dos novos acontecimentos, trazem nuvens e dificultam a visão. De um lado os que interpretam que o regime mudou, qualitativamente, e seria bonapartista. Alguns descrevem o governo Bolsonaro até como um governo militar. Se fosse assim, seria inescapável concluir que teria acontecido uma derrota histórica, depois de 2016. De outro lado, estão aqueles que consideram que o regime democrático-presidencialista estaria intacto, e interpretam o governo Bolsonaro como uma derrota eleitoral, sem que uma inversão da relação social de forças tivesse aberto uma situação reacionária. Ambos estão equivocados. Houve um golpe institucional no Brasil em 2016, mas o regime democrático-liberal não foi derrubado. Não aconteceu uma derrota histórica, ou seja, um novo 1964. Não serão necessários quinze anos para derrotar Bolsonaro.
5. O debate sobre a tática volta ao centro. Nas terríveis condições sanitárias imediatas não é possível responder ao perigo que Bolsonaro representa com mobilizações massivas nas ruas. A hora de convocar as massas populares às ruas para derrubar o governo virá. Mas podemos ter iniciativas simbólicas com atos por representação, faixas e, sobretudo, na organização da solidariedade militante com as classes populares através de iniciativas de distribuição de donativos. Mas isso não diminui a importância da campanha política implacável das organizações de esquerda, dos sindicatos e centrais, dos movimentos populares e de mulheres, negros e juventude, de denúncia do governo para ganhar a consciência de milhões de que a culpa pelo desastre na gestão da peste, do desemprego, da ausência de uma auxilio emergencial é de Bolsonaro. Esse deve ser o lugar, também, de Lula. Dizem alguns entre os moderados de esquerda que, sem um giro para o centro, Lula não poderia vencer em 2022. Estão errados. A questão central da tática é outra. A história não se repete. 2022 não será como 2002. O governo Bolsonaro é um perigo diferente, e muito maior, do que foi o governo de Fernando Henrique. O grande desafio é alcançar as amplas massas populares, inclusive, aqueles setores sobre influência de aparelhos religiosos neopentecostais. Lula deve girar para perto dos trabalhadores e do povo. Sem eles, não é possível vencer. E nem vale a pena.
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