No país dos tribunais de rua, presunção de inocência x presunção de culpa

Por Jean Montezuma, de Salvador, BA

A viatura foi chegando devagar
E de repente, de repente resolveu me parar
Um dos caras saiu de lá de dentro
Já dizendo, aí compadre, você perdeu
Se eu tiver que procurar você ‘tá fudido
Acho melhor você ir deixando esse flagrante comigo
No início eram três, depois vieram mais quatro
Agora eram sete samurais da extorsão
Vasculhando meu carro
Metendo a mão no meu bolso
Cheirando a minha mão

De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição

(Tribunal de rua, o Rappa. 1999)

Nas últimas semanas, a decisão do Ministro do STF Edson Fachin, que anulou as condenações de Lula resultantes da operação Lava-jato; e agora a recente decisão da 2° turma do STF pela Suspeição do então Juiz Sérgio Moro, trouxeram à tona um debate truncado difundido por parte da imprensa que sempre patrocinou a operação lava-jato e pasmem, também por juristas e outros operadores do direito. Que debate é esse? O debate de que a anulação da condenação e mesmo a suspeição de Moro não significam automaticamente a inocência de Lula. E que o ex-presidente ainda precisaria provar sua inocência num novo julgamento.

Como bem escreveu o filósofo e advogado Sílvio Almeida em recente coluna ao jornal Folha de São Paulo: Ora, aprende-se ainda nos primórdios da faculdade de direito que o réu não precisa ser inocentado, pois sua inocência é “presumida” e é disso que se trata o princípio da presunção de inocência.”.

No mesmo artigo, Sílvio arremata com a seguinte conclusão: “No processo ocorre a avaliação de provas que, ao final e na forma da lei, autorizem a retirada ou concluam pela manutenção da condição jurídica de inocência que já pertencia ao réu. Assim, se o juiz é suspeito ou incompetente estamos diante de ilegalidades que inutilizam o processo, e o réu, por consequência, permanece inocente.”

Ou seja, partindo do próprio consenso jurídico burguês há séculos estabelecido, se não há condenação e se o juiz foi considerando suspeito – o que anula todo processo – não há inocência a ser comprovada. Porque a inocência é presumida, uma garantia legal resguardada pela Constituição. Mas todo esse debate lançou luz sobre outra discussão, sempre sustentada no meio jurídico por quem tem uma visão crítica sobre a justiça criminal, e de modo geral na sociedade, pelos movimentos sociais, com o movimento negro à frente. A saber, a subversão da presunção da inocência em favor da presunção de culpa.

Como diz a letra do saudoso Marcelo Yuka, nas favelas, periferias, e comunidades de todo o Brasil, “de geração em geração” todos nós conhecemos bem essa lição. A lição que nos diz que mais de três séculos de um regime de escravização, legaram sequelas estruturais que até hoje dão forma e conteúdo as profundas desigualdades raciais e sociais do Brasil.

No país dos tribunais de rua, geração após geração, as elites dominantes com uma mão exercem uma implacável violência contra aqueles e aquelas que desde sempre foram considerados como classes perigosas, nós negros e negras em especial. E com a outra mão, recorrem aos aparelhos de hegemonia de modo a estabelecer um consenso que naturalize a violência. É essa combinação violência + naturalização por meio de um consenso racista, que ajuda-nos a entender porque ano após ano em média 70 mil pessoas são assassinadas – 75% dessas pessoas são negras – e mesmo assim a sociedade segue em frente, sem que haja nenhum acerto de contas com esse verdadeiro genocídio.

Parte componente desse consenso racista é justamente a presunção de culpa, que tem raízes no racismo estrutural, conceito tão bem difundido recentemente a partir da obra do professor Sílvio Almeida. Contrariando a norma, que é a presunção de inocência, o que ocorre na prática é que nós negros e negras somos, aos olhos do Estado, culpados até que provemos o contrário. E daí se desdobram dois fenômenos combinados: O genocídio e o encarceramento em massa.

Retomando a referência a canção da banda o Rappa, o primeiro tribunal a que nós negros somos submetidos é o tribunal de rua, onde o agente policial exerce muitas vezes o papel de promotor, juiz e carrasco. E onde a sentença, também muitas vezes, é a morte. Por isso, durante anos o movimento negro esteve à frente da luta contra os “autos de resistência”, dispositivo criado em 1969, no auge do terror da Ditadura militar. Em 2016, as Policias federal e civil mudaram a definição para “lesão corporal decorrente de oposição a ação policial” ou “homicídio decorrente de oposição a ação policial”. O que na prática não mudou seu conteúdo. E para piorar, por muito pouco esse dispositivo que da cobertura a altíssima letalidade das policias no Brasil não foi consagrado em lei, através do projeto anticrime de Sérgio Moro e Bolsonaro.

Mas, quando se sobrevive a jurisprudência racista do tribunal de rua, a presunção de culpa continua a se impor, pois mesmo não sendo consagrado na norma jurídica, é o mecanismo que rege o sistema judiciário e penitenciário brasileiro.  Não por a caso o Brasil possui a terceira população carcerária do mundo, com um total de 773 mil pessoas em privação de liberdade. Dessas, cerca de 66,7% são negras. E mais, segundo o Banco Nacional de monitoramento de presos, em 2018, 40% dos submetidos a regime de privação de liberdade eram presos provisórios, sequer condenados em primeira instância. O que configura flagrante inobservância do devido processo legal.

Lula está livre, uma imensa vitória democrática. Porém, outras centenas de milhares de “Silvas” anônimos, homens e mulheres, não. E é justamente esse mesmo recurso à presunção de culpa, agora mobilizado pelas elites reacionárias contra Lula,  o modus operandi que rege o funcionamento do Estado Brasileiro forjado com base no racismo estrutural. Aproveitar cada oportunidade para enfrentar, desnudar perante a opinião pública, e descontruir esse mecanismo racista, é crucial para fazer avançar também a agenda de luta antirracista.