“Vindos de todas as partes da capital, eles afluíram para a Catedral de Santa Sofia; no espaço de uma hora, o santuário, o coro, a nave, as galerias superior e inferior se encheram […] A confiança deles se alicerçava na profecia de um entusiasta ou impostor de que um dia os turcos entrariam em Constantinopla e perseguiriam os romanos até a coluna de Constantino […]esse, seria, porém, o termo de suas calamidades, pois um anjo desceria do céu com uma espada na mão […] os turcos fugiriam instantaneamente e os romanos vitoriosos os expulsariam”
Este é o relato de quando a capital do Império Romano do Oriente foi tomada pelos turcos no livro “Declínio e queda do Império Romano”, de Edward Gibbon. Ele mostra que não é novidade que, diante de uma desgraça generalizada, as pessoas podem se agarrar a uma falsa esperança sem nenhum resquício de racionalidade. Não é inédita a situação de parte dos brasileiros, que acredita em cloroquina, em “histórico de atleta”, no spray israelense ou na teoria de que a Covid-19 é só uma “gripezinha”.
A psicologia ainda deve estudar mais profundamente o que aconteceu com a população de Constantinopla em 1453 e com parte da população do Brasil em 2020 e 2021. Mas a História já mostrou que quando um povo é tomado por esperanças falsas, o resultado é sempre desastroso. Como escreveu Edward Gibbon:
“Enquanto aguardavam a descida desse anjo moroso, as portas foram arrebentadas a machado e, como os turcos não encontraram resistência, suas mãos sem sangue se ocuparam em selecionar e atar a multidão de seus prisioneiros”.
Hoje Constantinopla se chama Istambul e pertence à nação turca. O anjo até hoje não apareceu.
É possível que um país inteiro entre em colapso e ainda sim a população seguir acreditando em soluções fantasiosas. Afinal, o negacionismo é atraente. Não seria bom criar um mundo fictício onde não existe a pandemia? Se nada acontecer, tudo bem. Se algo acontecer, aí sim, só quando a doença bater na porta, será necessário viver no mundo real.
Parte do Brasil já fez sua escolha. E quem escolheu viver na realidade paralela só vai aceitar a existência da pandemia quando o ferro do laringoscópio entrar na traqueia. A boa notícia é que os negacionistas estão em minoria. A má notícia é que eles existem em número suficiente para colocar em risco o esforço pelo distanciamento social.
Qual é a força do negacionismo hoje?
Nos dá esperança uma pesquisa recente da Folha de São Paulo mostrando que 71% da população brasileira apoia alguma restrição no comércio. 59% dos entrevistados responderam que é mais importante deixar as pessoas em casa para conter o vírus. Enquanto 30% responderam que é mais importante acabar com o isolamento para estimular a economia.
Foram feitas perguntas sobre o apoio ao fechamento de cada atividade. Apenas 23% defendem que os jogos de futebol devem continuar. Mas 40% acham que as instituições religiosas devem permanecer abertas. O que se nota é que, entre a defesa da abertura total e do fechamento total, existem várias nuances.
Muitos estão na zona cinzenta entre aceitar ou negar a gravidade da situação. Em geral, as pessoas sabem que algo deve ser feito. Mas nota-se alguma dúvida quanto à necessidade de uma medida drástica. Esta parcela dos brasileiros pode ser ganha para um negacionismo mais “light”, que reconhece a existência da pandemia, mas subestima os riscos.
No ano passado a maioria queria o lockdown, mas mesmo assim fomos derrotados
Pesquisa recente feita a pedido da revista Exame mostra que 53% da população é favorável a um lockdown, fechamento total das atividades que podem gerar aglomeração. No entanto, o governo de São Paulo verificou que 44% da população do estado realmente está fazendo algum tipo de isolamento. Muitos querem se isolar, mas isto não é possível por questões econômicas.
A situação é parecida com a do ano passado, quando no mês de maio 60% da população era favorável ao lockdown, mas algumas semanas depois apenas 12% do povo estava em isolamento. É importante notar que a pesquisa de 2020 mostrava um apoio maior às medidas duras de contenção do vírus do que neste ano.
Fomos derrotados em 2020. O resultado foi o surgimento da nova variante do Corona Vírus e a situação em que vivemos hoje, com recorde diário de mortes. Quanto à 2021, ainda não sabemos qual será resultado da guerra contra o negacionismo. O auxílio emergencial será concedido em menor valor e para menos pessoas, o desespero por uma fonte de sustento familiar é maior e muitos já normalizaram os riscos do vírus.
Não existe uma avenida aberta rumo a um consenso nacional em torno da necessidade do lockdown. A será difícil, tensa e dura. A conquista de cada mente e de cada coração pode decidir a disputa.
Mas porque ainda tem tanto negacionismo no Brasil?
Muito já foi escrito nesta coluna sobre o fenômeno. O fato é que cerca de um terço dos brasileiros negam a pandemia. Em resumo, existem fatores econômicos, políticos, culturais e psicológicos que um profissional da área de biológicas, como o Átila Iamarino, talvez não perceba. A relação das pessoas diante de uma desgraça tão grande como a pandemia é algo muito complexo. Não podemos achar que é simplesmente uma questão de entender os gráficos, ler os textos, assistir a live do Átila e ser ganho para a política de lockdown. Não é tão simples.
Como já foi dito acima, alguns já foram ganhos para a ideia de viver em uma realidade paralela onde não é necessário se preocupar com a Covid-19. Essa parte da população já está em um estado tão grande de anestesia que não adianta tentar convencê-la.
Em outros casos, pode ser simplesmente falta de solidariedade. Muitos não são de fato negacionistas. Apenas não querem assumir publicamente que aceitam a morte de pessoas idosas e de saúde frágil para que a vida possa voltar ao normal. No impeachment de 2016, a parte mais rasteira da classe média foi às ruas com a bandeira do “combate à corrupção”. A verdade é que eles eram machistas, racistas, homofóbicos e elitistas. Pode estar acontecendo algo parecido agora. A ideia eugenista de que os fracos têm que morrer para os fortes saírem de casa é dissimulada no discurso “em defesa da economia do país”.
De qualquer forma, existe uma parte do Brasil que não vai abrir mão do negacionismo. Mesmo que morram 5, 10, 20 mil pessoas por dia. Eles já se comprometeram de tal forma com a mentira que não podem mais aceitar a verdade.
O que não sabemos é, entre os negacionistas, quantos são realmente incuráveis e quantos ainda podem ser ganhos para a defesa do distanciamento. Mas uma coisa é certa: o negacionismo não vai acabar com o colapso no sistema de saúde e é uma força social capaz de piorar muito a situação.
O que fazer para defender o lockdown nacional?
Em primeiro lugar, reconhecer o tamanho do desafio. Não basta convencer as pessoas de que o vírus é grave. É necessário convencê-las de que vale a pena se preocupar. Não basta dizer que milhares estão morrendo. É necessário defender a importância da solidariedade social. Se comover com a morte de pessoas desconhecidas e fora do círculo afetivo não é algo instintivo. É fruto de convencimento político.
Também é necessário levar em conta o nível de consciência de casa pessoa. O quanto ela aceita a necessidade do distanciamento social. Não podemos ter um discurso de que “ou você apoia o lockdown ou você é culpado pelas mortes”. Devemos ter muito tato para convencer quem ainda tem dúvidas.
Ajuda muito no processo de aproximação com a população as campanhas de solidariedade. Doar uma cesta básica não é assistencialismo. Durante a pandemia, é um exemplo de preocupação com a vida alheia. A palavra convence, mas o exemplo arrasta. As pessoas tendem a ouvir quem se preocupa com elas.
A defesa do lockdown nacional será uma grande batalha. Nunca é demais repetir que a vitória está muito longe de ser certa. A derrota também não está garantida. Milhões de vidas estão em jogo.
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