A aprovação da PEC 186 e o plano do liberalismo autoritário para o Brasil


Publicado em: 19 de março de 2021

Brasil

Rafael Rabelo, de Fortaleza, CE

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Brasil

Rafael Rabelo, de Fortaleza, CE

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Compartilhe:

Ouça agora a Notícia:

A aprovação da PEC 186 pela Câmara dos Deputados, no dia 12 de março, representa o maior ataque às carreiras dos trabalhadores do serviço público nos últimos 20 anos. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), não se via tamanho desmonte. Portanto, torna-se necessário entender quais as mudanças trazidas pela PEC e o contexto em que ela foi aprovada, no intuito de qualificar nossa análise e nos preparar para os embates futuros.

Neofascismo e ultraliberalismo

A ascensão do neofascismo no Brasil e em outras regiões do mundo não é algo aleatório, ela representa uma articulação geopolítica no sentido de lidar com algumas questões cruciais, como a crise econômica mundial, o papel da China como superpotência e, mais recentemente, a pandemia do novo coronavírus.

Não seria a primeira vez que o capital buscaria uma saída autoritária para as suas crises. Exemplos existiram de sobra durante o século XX: desde o nazifascismo italiano e alemão, passando pelas guerras no leste asiático e as ditaduras militares na América Latina, cabendo destacar a chamada “ditadura liberal” no Chile de Pinochet, de onde saiu o atual ministro da Economia, Paulo Guedes.

Nesse sentido, o neofascista Jair Bolsonaro chegou ao poder com a perspectiva de impor uma agenda ultraliberal, que os governo de Lula e Dilma não conseguiram cumprir e executar. O papel geopolítico de uma economia dependente e produtora de commodities como o Brasil não permite que se concretize um projeto de desenvolvimento nacional, sem grandes rupturas políticas. Como é possível verificar no caso dos governos do PT, que tentaram conciliar este projeto com a agenda do mercado durante 13 anos. Exatamente, por isso, vieram a sofrer um golpe institucional em 2016.

Destruição das conquistas sociais da Constituição de 1988

Assim sendo, destruir as conquistas de “bem-estar social” da Constituição de 1988 é essencial para o mercado. Collor e FHC iniciaram esse processo, Lula e Dilma o colocaram em marcha lenta, enquanto Temer e Bolsonaro “cantaram pneu” e o aceleraram como nunca.

Collor acusou os funcionários públicos de “marajás”, FHC de “privilegiados”, mas nenhum deles teve uma conjuntura tão favorável para atacá-los como Bolsonaro durante a atual pandemia.

Numa economia com 14 milhões de desempregados, 68 milhões dependentes de um auxílio emergencial para sobreviver e composta majoritariamente pelo setor de serviços, o mais precarizado e afetado pelas medidas de isolamento social; a maioria das pessoas tem muita dificuldade em entender, por exemplo, a necessidade da estabilidade no emprego do servidor público.

A PEC 186 como peça da engenharia ultraliberal

Antes de tocar nos pontos da PEC propriamente dita, é preciso deixar nítidas duas questões. Uma delas foi tratada acima: Bolsonaro joga com a hecatombe econômica, social e sanitária que afeta todas e todos os brasileiros.

A EC 95, que congelou os investimentos públicos por 20 anos, é de 2016. Já PEC 186 é de 2019, consequência direta da EC 95. Aqui cabe a pergunta: por que a regulamentação desta parte da EC 95, que afeta as carreiras do serviço público, demorou três anos para ser apresentada e mais dois anos para ser votada?

A segunda questão é que as medidas autoritárias do governo Bolsonaro vêm causando uma guinada na forma como a União lida com o chamado Pacto Federativo.

Os governos do PT inauguraram a era das “parcerias” e dos “pactos”, quase todas as propostas de políticas públicas do período foram fruto de um contrato entre o governo federal e as administrações locais. O Programa Cisternas, o Pacto Pelo Fortalecimento do Ensino Médio, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, são apenas alguns exemplos dessas parcerias. A União propunha a política, enquanto estados e municípios tinham autonomia de aderir ou não aos programas. A rigor, os repasses de outros recursos não vinculados ao programa específico não dependiam desta adesão aos projetos de parcerias ou pactos com o governo federal.

A partir de Temer, e mais diretamente com Bolsonaro, o sistema de parcerias foi substituído pela chantagem pura e simples. A reforma da previdência, o auxílio financeiro aos estados e municípios na primeira onda da pandemia e, agora, a PEC 186 são bons exemplos disso. A União condiciona o repasse de recursos, auxílios financeiros, autorização para a concessão de empréstimos, negociação das dívidas dos estados e municípios, dentre outras coisas, à adesão automática aos projetos e leis determinadas pelo Poder Executivo.

O ponto anterior limita, inclusive, a capacidade de negociação dos já enfraquecidos e muitas vezes burocratizados sindicatos, principalmente nos estados e municípios mais pobres, exatamente aqueles que mais dependem de repasses federais.

É disto que se trata, dentre outras coisas, a imposição de uma agenda ultraliberal pela via autoritária. Paulo Guedes aprendeu muito bem durante o seu estágio no Chile de Pinochet.

Entender a PEC 186 para organizar a luta contra seus efeitos

O caso específico da PEC 186 é emblemático. Sendo um projeto de 2019, em nada se referia à pandemia do novo coronavírus, mas dizia respeito a uma política contínua de arrocho fiscal e ataque aos direitos dos servidores públicos, na esteira da EC 95. Atrelar esta PEC à concessão do tão necessário Auxílio Emergencial, não passa de sadismo, uma chantagem desumana com a vida e a sobrevivência dos mais pobres.

Seguindo esta lógica, ela faculta aos entes federativos uma série de medidas de contenção de gastos para o caso da relação entre receitas e despesas correntes líquidas ultrapassar 95%, como, por exemplo, a proibição da concessão de reajustes salariais e a realização de concursos públicos.

Aqui ocorre o “pulo do gato”. Apesar de facultativa, esta medida cria uma série de dificuldades para estados e municípios que não aderirem ao atingimento do teto de 95% de gastos, entre elas a não concessão de garantias da União na celebração de empréstimos a partir das administrações locais e a impossibilidade do refinanciamento de dívidas. Ou seja, a adesão ao teto de gastos não é obrigatória, nem poderia ser por conta do Pacto Federativo, mas, na prática, coloca uma faca no pescoço de estados e municípios, na medida em que nenhum estado ou município investe atualmente em infraestrutura ou saneamento básico, por exemplo, sem contrair empréstimos privados ou de organismos internacionais.

Por outro lado, cabe explicar que o congelamento dos salários dos servidores por 15 anos, não é automático. Este prazo representa uma estimativa da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, em que o limite de 95% será atingido a partir de 2025 e poderá cair abaixo desse patamar apenas em 2036. A estimativa é otimista, visto que estamos em uma crise econômica de proporções ainda não definidas, por conta dos efeitos da pandemia. O mais provável é que o teto de 95% seja atingido antes de 2025 e demorará muito mais de dez anos para cair abaixo desse patamar.

Diante de tudo isso, os trabalhadores dos serviços públicos não podem resignar-se e ter como um fato consumado o congelamento de seus salários por 15 anos. Precisamos delimitar nosso discurso e preparar nossas ações futuras com aquilo que inflama para a resistência, sem deixar que medidas draconianas como a PEC 186 enterre mais profundamente nossas perspectivas.

Mais do que nunca, é necessário ter paciência para explicar as consequências e meandros da PEC 186, analisar suas possíveis brechas políticas e jurídicas e ir pavimentando o caminho para a organização das futuras lutas contra o desmonte dos serviços públicos pela agenda neofacista e ultraliberal de Bolsonaro e Paulo Guedes.


Contribua com a Esquerda Online

Faça a sua contribuição