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A luta das mulheres e o legado de Marianna Crioula

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

“Morrer sim, se entregar não”
(Marianna Crioula,1838)

Neste mês em que se comemora o Dia Internacional de Luta das Mulheres, o 8M, com forte presença das discussões não só de gênero, mas racial, torna-se cada vez mais oportuno retomar a memória desta luta, que se reporta a um passado muito longínquo. Em 1984, ainda que não tenha sido motivado pela questão de gênero, o Departamento de Pesquisa e documentação da OAB-RJ, do Centro de Documentação e Pesquisa, iniciou um projeto com vistas a preservação da memória cartorária, em parceria com o TJ-RJ, com grande empenho dos ex-presidentes Helio Saboya e Nilo Baptista, e que teve seus trabalhos endereçados primeiramente para uma das principais cidades de origem escravagista e cafeeira do Estado do Rio de Janeiro: Vassouras. Esta fabulosa pesquisa encontrou fortes elementos indicadores da presença feminina nas lutas contra a escravidão, como é sabido que também ocorreu em outros quilombos, como o de Palmares, o que é um traço infelizmente ofuscado na história. 

Este magnífico esforço de estudo de memória produziu muita documentação, registros minuciosos sobre a escravidão no Estado do Rio de Janeiro e sobretudo da luta dos escravizados, suas fugas e heroicos quilombos, com base nos exame dos antigos autos de processos judiciais tendo como réus negros, sendo o livro Insurreição Negra e Justiça, editado pela OAB-RJ (Editora Expressão e Cultura, 1987), de autoria de João Luiz Pinaud, Carlos Otavio de Andrade, Salete Neme, Maria Cândida Gomes de Souza e Jeannette Garcia e prefácio de Antonio Houaiss, um dos resultados mais belos e frutíferos deste trabalho de pesquisa feito há mais de três décadas, sendo, infelizmente, muito raro encontrar hoje um de seus exemplares, além do que está arquivado na OAB-RJ. 

Fiz questão desta breve introdução para, neste mês dedicado a luta emancipatória feminina, rememorar a figura de Marianna Crioula, cujo nome foi objeto da referida pesquisa, e foi a segunda Ré de um grupo de 16 homens e mulheres insurretos, negros e negras, que foram presos com base no Código Criminal do Império, por liderarem revolta escrava na região em que se encontravam cativos em 1838, uma das maiores do Estado. Ficou gravado na história como Quilombo de Manoel Congo, o principal líder e companheiro de Marianna Crioula, e ambos figuram nos depoimentos  das  testemunhas oculares lavrados nos autos do processo de captura, prisão e julgamento como sendo, respectivamente, reconhecidos como o Rei e a Rainha daquele Quilombo, também denominado de Santa Catarina. E consta nestes autos que a frase “morrer sim, se entregar não” foi o grito de Marianna no momento em que foi presa pelos soldados da Guarda Nacional e milícias dos fazendeiros locais, com comentário sobre a dificuldade de imobilizá-la. 

Marianna Crioula, ex-escrava evadida da fazenda do Capitão-mor Manoel Francisco Xavier, portanto, é uma heroína do Estado do Rio de Janeiro, região de vasta influência da cultura negra, desde que os primeiros africanos escravizados aqui pisaram pela primeira vez, entrando pelas portas do Cais do Valongo, local de recepção comercial dos africanos recém-chegados. Fiz questão de escolher o nome de Marianna Crioula para falar do 8M, além da influência que me causou a leitura de referido livro, porque tenho a compreensão que, sem desmerecer nenhum das milhares de anônimos heróis e heroínas que lutaram contra a escravidão (incluindo também brancos que apoiaram esta causa), o nome de Marianna é um símbolo pelo qual se é possível comunicar com o passado escravagista na celebração e discussões em torno do 8M, dedicado a luta das mulheres, pois Marianna era mulher, negra e escravizada. Aprendi que é dentro desta perspectiva que deve ser enxergada a questão a luta feminina, como de gênero, de raça e de classe, assim como ensina a ativista e filósofa norte-americana Angela Davis, outra grande liderança negra, como Marianna ao seu tempo e modo. 

Sobre a luta quilombola em Vassouras, aproveito a oportunidade para anunciar que no dia 29 de março haverá um seminário no Conselho Federal da OAB sobre o tema racial e, no Rio de Janeiro, em 30 de março teremos um seminário sobre a rebelião quilombola liderada por Manoel Congo e Marianna Crioula, promovidos pela Comissão  da Verdade sobre a Escravidão Negra nacional e estadual.

Em verdade, as mulheres seguem discriminadas no sistema econômico atual, superada o regime jurídico de  escravidão negra do tempo de Marianna Crioula, como vítimas da moderno modelo  do trabalho assalariado, em tempos de capitalismo neoliberal, que sequer contrato exige para grande parte das  mulheres exploradas e o próprio salário é cada vez menor e por vezes sequer o salário mínimo legal! São trabalhadoras informais, domésticas, fazedoras de “bicos”, camelôs, cozinheiras, faxineiras, empregadas de supermercados, cuidadoras, cortadoras de cana, enfim, uma enorme quantidade de  trabalhos  precaríssimos nos quais as mulheres recebem os menores rendimentos e ainda são obrigadas a uma dupla jornada como mães e, parte expressiva destas são as únicas responsáveis pela família, cuidando sozinhas dos filhos. As mulheres, além da histórica opressão patriarcal e assédios sexuais, convivem – parte da mesma opressão – com diferenças de tratamento no chamado mundo do trabalho que lhes convertem em mais oprimidas. E se a mulher é negra? Aí então convergem para a cor da pele outros tantos grilhões. 

O Direito e a luta das mulheres

É fato que temos muitos avanços na luta das mulheres e, do ponto de vista legal, é importante citar aqui o advento da legislação trabalhista no mundo e no Brasil com o objetivo de coibir a discriminação da mulher, assim como combater o machismo e o feminicídio, este último o mais grave e horrendo crime contra a mulher. Historicamente, o tema teve também presença na revolução francesa, sendo que a constituição da França de 1791 passou a admitir a rescisão do contrato do casamento civil, ainda que com limitações. Dando um outro “pulo histórico”, sendo desta vez mais  contemporâneo, é importante destacar a   constituição da ex-URSS, de 1920, (o primeiro pais do mundo a assegurar o aborto legal, além do fato de que  desde 1918 garantiu plenamente o divórcio aos homens e mulheres); a constituição de Weimar, na Alemanha de 1919, que estabeleceu a regra da igualdade jurídica entre marido e mulher, equiparou os filhos ilegítimos aos legitimamente havidos durante o matrimônio; as primeiras convenções sobre o trabalho da mulher elaboradas pela OIT em 1919, de índole protetivas,  e a Declaração Universal dos Direitos  do Homem, em 1948, que com sua ênfase no conceito de  igualdade entre os indivíduos acabou por fortalecer também as questões de gênero.

Todas estas constituições e normas internacionais representaram realmente  grande progresso na proteção da mulher, mas foi somente  recentemente, em 1993, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em Viena, que as mulheres conseguiram especificar melhor a questão de gênero, a inclusão do seguinte dispositivo: “os direitos dos homens, das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais”, ou seja cunharam a questão de gênero não somente como uma questão de igualdade, mas com o destaque merecido, tendo em vista a opressão da mulher. É evidente que em nosso país a Constituição de 1988 e leis como a denominada Maria da Penha são de suma importância no enfrentamento cotidiano da opressão contra baseada em fator de gênero, mas, sem a luta direta das mulheres, sem tomarem as ruas, todos estes valiosos instrumentos jurídicos – conquistados com lutas anteriores – se convertem em letras mortas.

Mas é importante aqui citar também duas Convenções internacionais, que são, ambas, particularmente  valiosíssimas para o movimento das mulheres, sendo uma a denominada Convenção Pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher(Convenção da Mulher ou CEDAW)  e outra a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Enfim, tem sido dados passos á frente, felizmente,  apesar de toda a reação  promovida por  governos como o brasileiro, turco e  saudita,  sendo que em relação ao Brasil, por exemplo,  Bolsonaro e sua Ministra dos Direitos Humanos (e das Mulheres) se posicionaram constantemente contra todas as proposições progressistas colocadas  em votação na ONU sobre o temas de gênero,  as vezes até mesmo  simples recomendações, incluindo sua ferrenha oposição a  descriminalização do aborto, educação sobre gênero, combate ao feminicídio e tantas outras questões relevantes, em um país que é tristemente conhecido por bater  recordes mundiais em violência contra as mulheres. 

Caminhando para o final deste texto e longe de pretender esgotar o assunto, seja por minha confessa incapacidade, seja principalmente pela sua amplitude, quero novamente chamar atenção para a figura histórica de Marianna Crioula e dizer que precisamos valorizar a luta destas heroínas, especialmente das negras, que como acima disse, foram oprimidas como escravizadas e também como mulheres. A luta feminista tem muito a ganhar e se nutrir com a história de suas antepassadas, suas lutadoras, para que possamos no presente, tanto homens como mulheres, combater o machismo, o patriarcado, tudo isto que integra o “DNA” cultural, político e ideológico do universo masculino (e confesso me incluir nesta mesma herança, embora tentando combater). Precisamos das lutas presentes, de jornadas vitoriosas como tiveram recentemente as mulheres argentinas, mas precisamos igualmente ter os olhos no retrovisor pelo qual enxergamos as mulheres que antes lutaram antes de nós, que resistiram ao longo dos séculos em condições, inclusive, muito mais precárias e difíceis que as atuais. 

E Viva Marianna Crioula. Ela é 8M!
E morrer sim, se entregar não!