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BRASIL

Um ano de pandemia e o sofrimento desigual

Caetano Branco, de Porto Alegre, RS
Agência DF / Fotos públicas

Profissionais de enfermagem se abraçam, no fechamento do hospital de campanha montado em Brasília, para pacientes com Covid-19

O mês de março marca um ano da chegada da pandemia de covid-19 no Brasil. O que em princípio parecia ser um desafio temporário e que seria superado em alguns meses se mostrou o maior desafio do século até então. Como se já não fosse um desafio grande o suficiente ter de passar por uma pandemia com as gigantes desigualdades estruturais pelas quais o Brasil convive diariamente, ainda tivemos um agravante ainda maior oriundo da conjuntura política na qual vivemos. O vírus, que já era letal e perigoso, ganhou um grande aliado que senta na cadeira de presidente da República.

Em abril de 2020, escrevi um texto¹ no qual tentava através de uma análise geográfica identificar quais seriam os efeitos desta crise sanitária, bem qual as “facilidades” que teria para penetrar nos diferentes territórios brasileiros. Nele iniciei abordando o fato desta pandemia ser fruto do mundo urbano, globalizado e capitalista, onde: urbano devido as grandes aglomerações urbanas do mundo facilitarem o contágio comunitário, globalizado pois os mesmos fatores que tornam nossa vida mais fácil também facilitaram para a propagação do vírus, como velocidade de transportes e informações, e capitalista pois mesmo que o vírus não seja uma criação direta do sistema, ele indiretamente foi culpado não apenas pelo surgimento da doença como também pela intensificação do número de mortes. Apontamentos esses que se confirmaram com o desenrolar do ano de 2020. A relação do capital com o vírus pode ser vista no cotidiano, em discursos não incomuns de “precisamos salvar a economia”. Esses discursos fazem uma inversão dos valores incitando a população a exigir o direito de se expor ao vírus ao invés do direito de se resguardar. A culpa da perda do emprego e da quebra da economia recai única e exclusivamente sobre os próprios indivíduos. O Estado em nenhum momento propôs políticas públicas de assistência e que colocasse no foco o que realmente importa: a vida. E isso tudo é reflexo de uma política neoliberal que socializa as crises e individualiza os lucros. Para além disso, na pandemia, o neoliberalismo mostrou suas faces mais reais, não se limitando apenas como uma teoria econômica e política, mas também como uma doutrina social. Através destes discursos, utilizando de outras táticas imorais como o uso das fake news e aproveitando-se da velocidade comunicacional proporcionada pelas redes sociais deste mundo globalizado, a política genocida que dá prioridade ao dinheiro dos patrões ao invés da vida do povo foi sendo instaurada. Os grandes centros urbanos nunca fecharam, no máximo reduziram seu ritmo de maneira irrisória, causando assim aglomerações cotidianas fatais. Desta forma, infelizmente a teoria de meu texto de abril de 2020 se comprovou tragicamente: o capital não permite-se parar, é valor em movimento, que por sua vez é trabalho social, portanto o urbano como espaço privilegiado de produção, reprodução e circulação do capital não podia parar, nem que pra isso fosse necessário convencer as pessoas a arriscarem-se pelo sistema.

No mesmo texto, ao apresentar as realidades da China e da Itália, onde houve o primeiro surto da doença e à época o país que passava pela maior crise, respectivamente, e comparar com a realidade brasileira, escrevi o seguinte: 

A nossa problemática será outra em relação à pandemia. Aqui, voltamos às contribuições de Milton Santos quanto as categorias de análise do território e suas diferenciações. Apesar de não termos um território tão fluido quanto o europeu, possuímos uma desigualdade social muito mais grave do que a italiana. Essa desigualdade social nos leva à identificação de inúmeros espaços opacos em nosso território, e é partir destes espaços que devemos pensar a proliferação do vírus como preocupante. Estes espaços concentram grande parte da classe trabalhadora, negra e pobre. Estes espaços não contam com nenhum tipo de assistência estatal e tampouco possuem condições sanitárias satisfatórias para o enfrentamento de uma pandemia. Muitos moram em barracos insalubres e amontoados. A relação comunitária forte entre os moradores destas regiões agrava ainda mais a disseminação do vírus, dificultando o combate.

Portanto, nesta análise inicial apresentava-se que mesmo que o Brasil fosse um país com menor densidade demográfica que a China e com uma população menos envelhecida que a Itália, nossos desafios estariam localizados nas desigualdade sociais. Mais do que o investimento em hospitais e equipamentos, era necessário investimento em políticas públicas de assistência. Evitar o contágio é muito mais barato e humano do que remediar pós um colapso. Mas como vivemos tempos sombrios, a política adotada foi totalmente contrária: negação do vírus, retirada do auxílio emergencial após alguns meses, negligência na compra de vacinas, enfrentamento a opositores políticos que tentavam minimamente combater a pandemia… De fato uma catástrofe anunciada e ainda não interrompida.

Quando relacionamos esta análise de abril de 2020 com os dados apresentados pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre² quanto a distribuição do número de casos e mortes por bairro, ela torna-se assustadoramente real. Bairros pobres como Sarandi apresentam taxa de 65 casos a cada mil habitantes, e cerca de 70 mortes, enquanto bairros ricos como Moinhos de Vento com uma taxa de casos tão alta quanto, em 76 casos por mil habitantes, não figura nem entre os 10 bairros com maior número de óbitos³. Isso indica que os habitantes do Moinhos de Vento, bairro de alto poder aquisitivo, tem acesso a melhores equipamentos de saúde, em grande parte privados, e provavelmente conseguem dispor de um tempo de recuperação maior. Portanto, mais uma vez, o vírus se mostra democrático quanto ao fator biológico de contágio, mas não quanto as possibilidades de ser evitado e tratado. Quando se fala que a economia não pode parar basicamente diz-se que enquanto houver população pobre precisando lutar pela sobrevivência diária, o vírus será crônico no país. E essa população está concentrada nos bairros periféricos e pobres das grandes cidades. Portanto o número maior de mortes nestes bairros não corresponde apenas a “desinformação” ou “má estrutura” das residências no que se refere a condições sanitárias. Esse índice elevado corresponde sobretudo a negação do direito de se preservar. A tal da “economia que não pode parar” só não parou porque a classe trabalhadora residente nesses bairros foi forçada a trabalhar. É importante salientar também que os mais afetados são as mulheres, os negros e sobretudo as mulheres negras dessas regiões, não apenas com a contaminação em si como também com as tarefas domésticas cada vez mais intensas relacionadas, por exemplo, ao estudo à distância dos filhos (quando existem condições para tal). A preocupação em perder o emprego e passar fome sempre será maior que o medo de contrair o vírus. É com esse sentimento de medo e coação que jogam conjuntamente os empresários da cidade e o poder público corrompido. É verdade que as pequenas e médias empresas também precisam de suporte, afinal, não há como manter-se por longos períodos de prejuízo, é matemática simples. A chave da questão é que o fator classe sempre grita mais alto e o empresário nunca lutará ao lado do empregado. Não existirá um movimento de patrões, por exemplo, interessados em exigir isenção de impostos de sua empresa como redução de custos para que possam ficar fechados e preservar a vida dos seus funcionários. O que há mobilizado deste o princípio, é um movimento onde todas as vezes que foi ensaiado um lockdown ou exigências mais rígidas, bradou pela reabertura dos comércios. Em tempos de crise há um enorme exército reserva, se puder abrir, funcionários não faltarão. Quem não estiver afim de arriscar sua vida para manter um CNPJ funcionado pode pegar suas coisas, cumprir quarentena em casa e sofrer com a falta de dinheiro, afinal, haverá outro trabalhador desesperado à espera desta vaga. 

Resolvi escrever esse texto como uma forma de revisitar os apontamentos feitos no princípio de 2020. Infelizmente boa parte daquelas proposições se confirmaram. Digo infelizmente de maneira paradoxal, afinal fiz a análise correta, mas preferia estar errado. Praticamente um ano depois ainda não vemos saída e parece que piora a cada dia. Já temos uma luz no fim do túnel com a vacina, que inclusive é motivo de orgulho para toda classe científica o desenvolvimento em tempo recorde da única coisa que pode nos salvar. Ao mesmo tempo existem aqueles que insistem em ofuscar a luz no fim do túnel e tentam a todo custo vender curas milagrosas que apenas curam a sangria de seus próprios interesses e deixam os trabalhadores à própria sorte. Resta para nós a união para resistir. É hora de preservar nossas vidas pois se não fizermos por nós ninguém fará. Fique em casa se possível, evite aglomerações desnecessárias e lembre-se que nesse momento a responsabilidade individual também é uma forma de responsabilidade com o coletivo.

Notas:

[1] https://esquerdaonline.com.br/2020/04/10/coronavirus-e-desigualdades-territoriais-uma-contribuicao-geografica/

[2] https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1qiPpoBPWcEeiEAAVWRxr68oPetUngmV3&ll=-30.06572080347784%2C-51.18270382642449&z=12

[3] https://drive.google.com/file/d/1y2OcgbPRc_2gDsfmMC-TkdCzARrwZcmc/view

[4] https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2020/12/bairros-pobres-de-porto-alegre-lideram-casos-e-mortes-por-coronavirus-ckj0gusmi0003019w5qh2g79h.html

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