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TEORIA

Essa é para os fundamentalistas: de que Bíblia estamos falando?

Frederico Costa*, de Fortaleza, CE
John-Mark Smith / Pexels

A religião desempenha importante função na vida de bilhões de seres humanos. Oriundas de diversas partes do globo, as religiões são tão diversas quanto as culturas existentes. A fé em deuses ou forças cósmicas dá aos crentes um senso de propósito e significação. Doutrinas e textos sagrados dão orientação moral. Líderes religiosos oferecem instrução, padrões de comportamento e tornam-se, inúmeras vezes, modelos.

O marxismo, enquanto humanismo radical, é materialista e ateu, portanto, não é imparcial diante de um fenômeno tão rico e complexo. Filosoficamente, o materialismo histórico identifica na religião características alienantes e possibilidades emancipatórias. Do ponto de vista político, é tradição do movimento operário a afirmação da II Internacional Socialista (1889-1916): a religião é assunto privado. Daí decorre a intransigente defesa pela esquerda revolucionária do caráter laico das políticas públicas. 

Marx (1) afirmou acertadamente que os seres humanos, sob formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, formas ideológicas, tomam consciência do conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e o entrave das relações de produção, levando-o até o fim. Independentemente da veracidade das afirmações religiosas, elas cumprem uma função social, são formas ideológicas que explicam e tornam coerentes a práxis de indivíduos imersos numa teia de contradições.

Atualmente, o fundamentalismo de perfil cristão cumpre um papel reacionário no contexto da luta de classes no Brasil. Uma parcela do clero, católico e protestante, alia-se na defesa das formas mais grotescas de exploração, opressão e dominação política. Para isso, agitam a Bíblia como algo definido e fechado. Será? 

A Bíblia, nas mãos dos fundamentalistas, tornou-se um “ídolo de papel” opressor na vida dos fiéis das classes trabalhadoras. É comum, nas igrejas e correntes fundamentalistas, a omissão de dados históricos importantes. O conhecimento da história do texto bíblico tornaria os fiéis mais críticos e menos manipuláveis. É sabido, que a Bíblia, ou seja, a unidade entre Antigo Testamento e Novo Testamento, é uma criação cristã. Neste texto, vamos nos ater apenas, de forma aproximativa, ao Antigo Testamento presente nas escrituras judaicas e nas bíblias cristãs.

Primeiro, o que conhecemos do Antigo Testamento é aquilo que as classes dominantes de cada época decidiram transmitir, desde os sacerdotes hebreus, que deram início à elaboração da doutrina monoteísta, até as estruturas religiosas atuais. Isso no contexto de profundas contradições e disputas. 

Segundo, há diversas versões do Antigo Testamento que espelham a confusa realidade de textos considerados inspirados e reconhecidos. Por exemplo, católicos acreditam que são verdadeiros os 46 livros do Antigo Testamento. Já o Cânone Hebraico aceita somente 39, não reconhecendo como de inspiração divina textos como: Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiastes, o primeiro e o segundo livro dos Macabeus e mais algumas passagens de Ester e de Daniel. As igrejas protestantes aderem fundamentalmente ao Cânone Hebraico. Enquanto cristãos coptas consideram canônicos livros que católicos romanos, protestantes e judeus não aceitam, como o Livro de Enoque e o Livro do Jubileu.

Para complicar mais, boa parte do Antigo Testamento encontrado nas bíblias que possuímos foi redigido, fundamentalmente, baseando-se na Bíblia Stuttgartensia, versão impressa do Códice Massorético de Leningrado. Porém, a Igreja Ortodoxa Grega utiliza o Texto dos Setenta (Septuaginta), escrito em Alexandria no Egito, em grego, entre os séculos III e I a. C. Esse Antigo Testamento grego apresenta variações em relação à versão Massorética, algumas muito importantes, porque contêm diferenças consideráveis no significado do texto. Ela representou a base para os “pais da Igreja” nos primeiros séculos, até a Igreja Católica Romana ter decidido o Cânone Hebraico. Os rabinos negam o Texto dos Setenta, só reconhecendo os livros considerados de acordo com a Lei: escritos na Palestina, em hebraico e no período anterior a Esdras (século V a. C.). 

Ainda tem mais. Se formos ao território dos samaritanos, na Palestina, veremos que a inspiração divina não está nos códices redigidos pelos massoretas, mas na Torá (Pentateuco) Samaritana, que apresenta inúmeras variações em relação à versão Massorética. Para completar, há a Peshitta, a Bíblia Síria – reconhecida por cristãos maronitas, nestorianos, jacobitas e melquitas –, que, por sua vez, também é diferente da versão Massorética. 

Diante disso, é fácil perceber que, antes mesmo das traduções, existem inúmeras  bíblias (Antigo Testamento) e que todas elas, em sua riqueza de variações, são declaradas indiscutivelmente verdadeiras por comunidades que vivenciam suas tradições. Isso demonstra a diversidade do mundo cristão que levanta um dedo acusador contra os fariseus do fundamentalismo que procuram utilizar politicamente uma experiência religiosa alienada à serviço da dominação do imperialismo e da burguesia interna. Daí seu ódio à ciência, ao sistema educacional público, aos oprimidos e explorados, ao mesmo tempo que apoiam o governo Bolsonaro e defendem um regime político obscurantista-ditatorial. Por isso, o clero fundamentalista de extrema direita é contra o reconhecimento da diversidade religiosa (ecumenismo) e a unidade dos trabalhadores/trabalhadoras religiosos na luta pela superação do capitalismo. Na verdade, somente o socialismo garantirá ampla liberdade de crença e consciência na construção de um mundo novo.

 

* Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE e coordenador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário – IMO.

NOTAS

1 – MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

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Religião