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BRASIL

A morte como projeto: o bolsonarismo, a burguesia brasileira e o exemplo alagoano

Aruã Silva de Lima* e Elita  Morais Dorvillé**, de Maceió, AL
Bruno Kelly/Amazônia Real/Fotos Públicas

Imagem do Cemitério público Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, em 30 de dezembro de 2020

A pandemia entrou num novo estágio. Já em meados de dezembro de 2020, especialistas pontuavam a tragédia que adviria do laissez-faire que tomou conta de parcela substantiva da população brasileira. Os argumentos foram variados para justificar a mudança de opinião de governantes, outrora críticos do plano do Governo Federal. Desde dezembro ficou mais que evidente a complacência irresponsável com que tais críticos resolveram tratar o governo federal durante a pandemia. Supostamente, ora “as condições políticas não permitem lockdown”, ora a “economia não aguenta” ou, ainda, “o povo está cansado”, foram alguns dos argumentos utilizados. A expressão disso em Maceió foi nos re-acostumarmos a ver, como em outros verões, carros com placas de cidades longínquas a exemplo de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo circulando pela cidade. A presença de turistas, importante vetor de circulação de capital no estado, foi massiva entre os meses de dezembro e janeiro. Com as pessoas, certamente circulou o vírus.

Nesses últimos dias, o país bateu recorde de mortes. Em um único dia, cerca de 2.000 pessoas morreram. E contando. Tais óbitos foram contados por órgãos de imprensa e Secretarias Estaduais porque nem isso o Ministério da Saúde, e seu ministro especialista em logística, faz de forma satisfativa. O governo federal, ao negar sistematicamente a ciência, insistir em um tal de protocolo preventivo com uma penca de medicações que, comprovadamente, não tem efeito nenhum e, ainda, negar até mesmo o uso de máscaras, parece determinado em promover o contágio massivo de toda a população para que prevaleçam os mais aptos e que morram os “fracos”. Pode parecer uma simples ironia, mas em se tratando de bolsonarismo, tudo é possível. Tais fatos passam incólumes aos olhares indulgentes do fanatismo bolsonarista e, na verdade, foram incentivados pela agenda genocida presidencial que obedece a um misto de perversão sádica neo-eugênica com um propósito racional de afastar as oposições das ruas. Em Alagoas, o conflito se expressa a partir de uma configuração política tal que impõe ao prefeito de Maceió e ao Governador de Alagoas terem que negociar com seus apoiadores ultraliberais e proto-fascistas a quantidade de mortes aceitáveis diariamente em uma pandemia.

Com o sucesso da abordagem bolsonarista da pandemia, esta nova onda, com cepas novas, algumas mais transmissíveis e, outras, além de mais transmissíveis, mais letais, nos levará, enquanto nação, ao pior mês da história. O Imperial College de Londres estima que na terceira semana de março haverá colapso total do sistema de saúde brasileiro. Avaliação parecida faz a Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ). Diferentemente da primeira onda e de todo o ano passado quando, em nenhum momento, houve colapso concomitante em todos os estados, agora, praticamente todo o país vive a iminência de derretimento da capacidade de oferta de serviços de saúde. A promessa é de êxito total da solução final bolsonarista. O que nos resta saber é: com quem o bolsonarismo anda para tamanho êxito trágico?

Vamos lembrar que, no caso específico de Maceió, 2 ou 3 grupos empresariais dominam uma fatia desproporcional do mercado de restaurantes numa cadeia que inclui fornecedores monopolistas, grandes conglomerados hoteleiros e, por fim, monopolistas conhecidos de locadoras de veículos e de aplicativos de transporte. Ainda em Alagoas, os grupos de pressão (a exemplo da Associação Comercial de Maceió e das Federações do Comércio, da Indústria, da Agricultura e Pecuária) e, muito importante, a burguesia sucroalcooleira, possuem poderes gigantescos nos processos decisórios do Estado e da prefeitura, como podemos aferir pelas doações ofertadas às candidaturas do establishment durante as eleições. Outros grupos empresariais, como aqueles ligados à educação, têm demonstrado muito poder na pressão pela retomada do cotidiano, como se fosse possível encerrar a pandemia por decreto. 

A frase que melhor exprime a posição pela derrubada do decreto que instaurou a pandemia no Brasil é do representante da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL) em Alagoas que sugeriu ao governo do estado, antes de cogitar lockdown, aumentar os leitos para COVID-19 e vacinação para a população. Passa longe do raciocínio da ABRASEL, por exemplo, que os profissionais da saúde estão no seu limite e que criar leitos hospitalares e hospitais de campanha requer equipes de saúde especializadas e aptas o que, portanto, não se faz da noite para o dia, pelo menos não na mesma velocidade que milhares de pessoas provavelmente irão se infectar sentadas a mesa de um bar. O representante da ABRASEL também não entendeu ainda que a vacinação, negada sistematicamente pelo governo federal, segue a passos lentos e que, portanto, não há vacinas suficientes. É difícil na verdade acreditar em falta de compreensão, trata-se na verdade do lucro acima de tudo. 

Nesse sentido, a ABRASEL não tem problema algum que pessoas se infectem, adoeçam e precisem de leito hospitalar, desde que eles estejam disponíveis. Sabemos que independentemente de disponibilidade de leito, uma fração de pessoas que se contaminar por COVID-19 morrerá. Isto é um “preço” aceitável, para a ABRASEL. Essa é a conclusão do representante da ABRASEL completamente desvinculada da situação crítica da saúde pública em Maceió e no país inteiro. A mesma ABRASEL que elogiou “a sensibilidade e rapidez na tomada de decisão do Governo Federal” e a “atenção de Jair Bolsonaro” sobre o colapso da economia agora ignora, cinicamente, que é este mesmo governo elogiado por ela meses atrás que, neste momento, inviabiliza a vacina. Aqueles que normalizam a doença e, por conseguinte, a morte, tem nomes e terceirizam o Estado, o qual mantém como refém, para garantir e/ou facilitar lucros. Para tanto, contam com a pequenez histórica dos responsáveis pelo estado.

Cabe ainda lembrar de uma importante discussão sobre opressões em torno da pandemia. A consequência para os setores mais oprimidos é catastrófica. Para as mulheres, em especial as mulheres negras e periféricas, a lógica do lucro acima de tudo é ainda mais perversa. Essas mulheres estarão, inevitavelmente, mais expostas ao desemprego e aos trabalhos precarizados produzidos pela pandemia, estarão também mais expostas à violência doméstica pelo convívio ainda maior com companheiros violentos durante o isolamento. Além disso, quando precisam trabalhar, são essas mulheres que sofrerão ainda mais com o fechamento das escolas e das creches e, consequentemente, com os cuidados com os filhos e parentes em casa. Não esqueçamos que o patriarcado impõe para às mulheres um papel fundamental na reprodução social e, desse modo, com os cuidados domésticos e com os filhos e isso, em tempos de pandemia, é ainda mais evidente. O racismo estrutural nessas discussões e, como diria Lélia Gonzalez, um olhar atento à divisão racial do trabalho nunca foi tão importante como agora. Para esses setores as consequências da política genocida de Bolsonaro são ainda piores. Uma política pública consequente com o papel desempenhado pelas mulheres, o auxílio emergencial e a vacinação são imprescindíveis.

E assim chegamos aonde estamos: enquanto o governo federal comemora quase 2000 mortes diária e chama de frescura e mimimi a dor de milhares de brasileiros, governo este composto majoritariamente por membros das Forças Armadas, em particular o Exército, a vasta maioria do povo não se apercebeu do abismo que está logo adiante. Diante do quadro, não há outra linha possível senão a necessidade de um lockdown nacional rigoroso acompanhado de auxílio emergencial, vacinação imediata para toda a população, apoio às pequenas e médias empresas e a urgência do impeachment de Bolsonaro. É a agenda política de salvação nacional.

*Professor da UFAL e membro da Resistência/PSOL.

** Mestra em Direito e membra da Resistência Feminista.

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alagoas / coronavírus