Falar sobre educação é sempre um tema polissêmico, pois é possível desenvolver diversas análises, como aponta Brandão sobre a educação: “Complica um pouco pensar educação como só educação” e continua “separando-a por vezes do mundo e de domínios sociais e culturais onde ela concretamente existe, ou, ao contrário associando-a diretamente a ampla e longínquas determinações sociais, o pensamento do educador não raro se esquece de ver a educação no seu contexto cotidiano, no interior de sua morada: a cultura – o lugar social das ideias, códigos e práticas de produção e reinvenção dos vários nomes e faces que o saber possui” (BRANDÃO, pág.14, 2012). Trataremos especificamente sobre educação popular, uma concepção teórico-prática que compreende e alarga o sentido da educação e torna-se uma concepção remodelada pela história social de grupos sociais e da diferença entre as comunidades.
A educação popular é uma concepção que pouco pode ser definida em um conceito fixo, acabado e exato, pois se trata de uma teoria-prática vivida e praticada por diversos movimentos e/ou grupos sociais em diferentes contextos históricos, acrescentando temas e transformando seu acúmulo produtivo acerca do tema. É emergente das lutas e resistências das classes populares, permeada pela ideia de educação e política como aliadas nesse processo, pretendendo o fortalecimento das resistências desses mesmos povos e almejando sua emancipação na ordem social que estamos inseridos. Os cursinhos populares são uma das perspectivas para a educação popular, neste projeto, construído por educadores e educandos, os elementos fundamentais são a preparação para os vestibulares, a formação política e a organização e fortalecimento social iminente desta prática educativa.
A educação popular tem como caráter se desenvolver com o povo, junto com o povo e mais do que isso, ao se desenvolver através e pelos movimentos e centros de cultura, seu foco estratégico e orgânico de atuação é, portanto, o fortalecimento deste mesmo povo. Sendo ela é uma ferramenta importante para o exercício de uma contra hegemonia, uma vez que em seu desenvolvimento teórico-prático reconhece que a sociedade é desigual, dividida em classes, e que deste modo, a realidade de cada grupo social é diferente e que não há uma situação de homogeneidade. Para tanto, a partir da educação popular é possível desenvolver dentro da prática social uma ferramenta de luta capaz de criar, fortalecer e legitimar uma nova visão de mundo.
Um povo que conhece sua história é um povo forte
O desenvolvimento dos seres humanos é marcado pela forma com a qual sua existência é expressa. Porém, a existência dos seres humanos é expressa não pela forma que pensam ou dizem, e sim pela forma como essa existência é materializada a partir da sua produção social. Nosso objetivo neste texto é trabalhar a produção da existência, ou a anulação dela, na sociedade brasileira na perspectiva da educação popular.
Segundo Paulo Freire “O homem existe no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha se nele. Temporaliza-se” (FREIRE, pág. 41, 1997). Nesse sentido, a compreensão da realidade em que o sujeito se encontra é fruto de uma relação com a qual o ser humano trava com o mundo. Relações estas que compreendem com certo grau de criticidade, e estabelecem uma conformação da sua existência.
Por isso a necessidade de historicização do ser humano na sociedade é o primeiro passo para um processo de humanização e de sensibilidade com a realidade que o cerca. Desta forma, a educação como prática de liberdade, deve tratar necessariamente da produção da realidade do ser. A educação popular busca contrapor-se a uma educação alienada e alienante visando que o povo seja o condutor do seu destino e que se sinta estimulado a se organizar para mudar a realidade que o cerca.
O debate de existência fundamenta para nós o projeto de educação popular, justamente porque é nesse debate que cerca o caráter emancipatório. Ao refletir sobre a existência, FREIRE (1967) estabelece uma distinção do simples ato de “viver”, para ele, o existir é individual, contudo, só se realiza em relação com outros existires. Em comunicação com eles. É por esta via de relações que atribuímos o projeto popular ao caráter dialógico e consciente.
No Brasil o processo de colonização deve ser o ponto de partida para caracterizar a existência dos brasileiros. Salvo as particularidades de contestação e revolta desse período, a colonização foi um processo que marcou uma diminuição da existência, tornou os sujeitos acomodados e impregnou neles o selo de espectadores, restituindo a sua relação orgânica com o mundo e fazendo-os duvidar das suas capacidades enquanto membros da sociedade.
Esse processo é marcado por uma sociedade fechada, como caracteriza Paulo Freire, antidialógica e de pouca ou quase nenhuma participação social. O período em questão que configurou a colonização, marca as características que conformam a existência desses sujeitos nas relações sociais e consequentemente, nas esferas políticas e econômicas. O resultado da colonização pode ser tratado no âmbito da formação da existência dos brasileiros em dois pontos, primeiro pelo aspecto coletivo e o segundo pelo aspecto dos grupos racializados. Começaremos pelo primeiro, o qual abrange um processo de distanciamento da esfera política e das decisões do país, resultando na pós-colonização, uma sociedade esvaziada da compreensão dos seus valores, da falta da participação política e que cultivou a perda da autonomia e desenvolveu um sentimento de dependência do outro.
Paulo Freire em seu livro Educação como Prática de Liberdade aponta o processo de colonização como: “(…) sobretudo, uma empreitada comercial. Os nossos colonizadores não tiveram — e dificilmente poderiam ter tido — intenção de criar, na terra descoberta, uma civilização. Interessava-lhes a exploração comercial da terra (…). Faltou aos colonos que para cá se dirigiram, ânimo fundamental, que teria dado, possivelmente, outro sentido ao desenvolvimento de nossa colonização. Faltou-lhes integração com a colônia. Com a terra nova. Sua intenção preponderante era realmente a de explorá-la. A de ficar “sobre” ela. Não a de ficar nela e com ela. Integrados. Daí, dificilmente virem animosos de trabalhá-la. De cultivá-la.”. (FREIRE, pág. 67, 1967)
O segundo ponto refere-se aos grupos racializados, nesse aspecto as populações negras escravizadas foram produzidas como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele. Isso significa que os negros foram construídos como negros em cima de um ideal racista, submetidos ao modo de vida escravocrata, de mercatilização de suas vidas e de seu subjetivo. Desta maneira, a educação emancipatória precisa compreender o processo da colonização como um processo de anulação do povo negro e de como surge a ideia do complexo de inferioridade que perpassa a condição da raça. Como aponta Fanon: “Não foi eu quem criou um sentido para mim, este sentido já estava lá, pré-existente, esperando-me. Não é com a minha miséria de preto ruim, meus dentes de preto malvado, minha fome de preto mau que modelo a flama pra tocar fogo no mundo: a flama já estava lá, à espera desta oportunidade histórica”. (FANON, pág.121, 2008)
São características que marcam a sociedade brasileira em seu desenvolvimento e construção da existência individual e coletiva. E por isso, a educação popular de forma programática deve compreender esse processo, e agir de forma a estimular o sujeito a participar da esfera política e também tornar cada sujeito capaz de escolher a sua ação a respeito das bases do conflito do existir, historicamente construído.
O desafio da educação popular, portanto, está caracterizado na mudança de atitude da sociedade, de implementar o ideal da democracia no povo brasileiro e por sua vez, extinguir o analfabetismo político. Além de adentrar ao subjetivismo da população, sobretudo na população negra. Defendendo assim como Gramsci (1982) que todos são intelectuais, pois todos possuem a capacidade de exercitar o pensamento. Sendo o ato de pensar natural, mas, o pensamento crítico não é necessariamente inato e para tanto, a educação popular cumpre um papel essencial na formação política e moral das pessoas, sobretudo para uma educação que busca a emancipação social.
*Coordenadoras de um curso pré-vestibular popular na Zona Leste de São Paulo, SP.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 2012.
FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática de Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra LTDA, 1967.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: brasileira, 1982.
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