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BRASIL

A prisão de Daniel Silveira e o papel da esquerda brasileira

Gabriel Santos
Reprodução

Em votação unânime (11 votos) na tarde desta quarta-feira, 17, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu manter preso o deputado federal Daniel Silveira, do PSL do Rio de Janeiro, após uma série de ataques a ministros do STF numa rede social. 

Ao longo do dia que sucedeu a prisão, em debates entre comentaristas políticos, juristas e militantes, perguntas foram lançadas. Qual será o impacto da prisão de Daniel nas forças bolsonaristas? Como será a resposta do Congresso diante da sentença do STF? Outros colocaram o risco da ação de Alexandre de Moraes poder se voltar contra a esquerda no futuro, assim como surgiram debates acerca da legalidade da ação do ministro, alguns afirmando que a mesma iria contra a Constituição e o Estado Democrático de Direito. 

Antes de mais nada, é preciso limpar o terreno. Apesar das diversas posições e comentários que possam existir, não há divergências de que Daniel é um legítimo representante do mais puro bolsonarismo. Ele é um fascista brasileiro. Um militante de extrema direita que se popularizou após quebrar uma placa em homenagem a Marielle Franco, e construiu sua carreira política a base de discursos de ódio contra a esquerda. Dito isto, acredito que podemos avançar na discussão.

Entre o jurídico e o político 

A prisão de Daniel Silveira pode ser analisada de duas formas: jurídica e política. A depender da forma que se analise a mesma podemos chegar a diferentes conclusões. Acredito que só podemos entender a mesma, e assim buscar tirar lições e fazer previsões sobre ela se entendermos que os campos jurídico e político se entrelaçam. 

Afirmo isto, porque não existe leitura jurídica neutra. Toda leitura das letras frias da lei são aquecidas através de posicionamentos e construções políticas, hora aberta hora velada, daqueles que aplicam esta mesma lei. O juiz não é um ser neutro, mas alguém que tem sua leitura de mundo, seus conceitos e sua visão política. 

É visível também que os instrumentos políticos, a prisão, e os termos usados por Alexandre Moraes são partes de um processo político maior que o nosso país está inserido. Assim, na prisão de Daniel Silveira, o deputado bolsonarista, o jurídico e o político terminam por se misturar e os instrumentos jurídicos, são também instrumentos políticos do confronto entre STF e o governo executivo. 

Aqueles dentro do bloco da esquerda que colocam como centro de suas análises o campo meramente jurídico separado do terreno da luta de classes, acabam por não atribuir um sentido ou chegar ao verdadeiro significado da prisão de Daniel Silveira e terminam por ficar em um labirinto quando confrontados sobre a consequência de suas análises. Usando o raciocínio dos que defendem que o ministro Alexandre de Moraes agiu de forma que passou por cima da Constituição e criou conceitos políticos que não existiam para prender Daniel em flagrante. Podemos então afirmar que sua prisão foi injusta. E diante desta prisão injusta, qual deveria ser o papel da esquerda? Defender a liberdade para Daniel? Votar contra a cassação de seu mandato na Câmara? Aqueles que analisam apenas pelo campo jurídico teriam que explicar sua política para o caso, a partir de suas análises. Isto não é uma questão menor.

Direito de classe e o Estado Democrático 

Como afirmamos acima, não existe leitura política neutra, assim como também não existem leis neutras. O direito é, em última instância, um instrumento de poder de uma classe sobre outra. Dentro do Estado burguês o direito serve para legitimar e regularizar as normas dentro dos limites deste Estado e da sociabilidade burguesa. Porém, isto não significa que não devemos buscar possíveis brechas e contradições, avançar na conquista de leis, e usar o direito a nosso favor quando possível. Mas sim entender que este instrumento de poder, o direito, mesmo que usado a nosso favor, ainda é instrumento que não nos pertence. 

É justamente no ponto descrito acima que os que analisam apenas do campo jurídico cometem erros. Pois terminam por idealizar um direito neutro, que não existe no mundo real, separado da esfera da luta de classes, e terminam por cair em um universalismo abstrato da lei. Isto se dá ao levantar hipóteses na qual uma determinada lei usada para a prisão de um fascista pudesse ser usada também para a prisão de um militante socialista. Como se neste caso hipotético ambos fossem ter o mesmo julgamento e o problema fosse somente a lei a ser usada. Os que analisam apenas o campo jurídico colocam a análise da lei, da constituição e do abstrato “processo legal”, em cima das condições concretas do mundo real: a luta política. 

Erro semelhante de idealização e abstração, essas pessoas cometem quando se trata da defesa do Estado Democrático de Direito e naquilo que elas identificam como uma ameaça de criminalização da esquerda. Ao gritar para os quatro ventos sobre uma quebra das regras democráticas na prisão de Daniel Silveira com medo de que isto se volte contra nosso campo político, os que agem assim terminam por gerar uma idealização deste Estado Democrático e cair em um erro político. 

A criminalização da esquerda e a defesa das liberdades democráticas 

Caso se avance a política de criminalização da esquerda, ela não será contida por meio da defesa de uma suposta democracia. Nem por meio de avisos que isto não deve ser feito por que vai contra as regras pré-estabelecidas na Constituição (essa que foi rasgada inúmeras vezes nos últimos anos). Não será apelando às regras feitas por aqueles que querem justamente nos criminalizar que iremos conseguir impedir isto. Este raciocínio além de ser uma completa adaptação ao campo jurídico em seu abstrato, é algo que leva à derrota. O combate a criminalização a esquerda se dá fazendo com que esta amplie sua base social, tendo apoio na sociedade, e que seja por meio deste apoio que se coloque um freio nas tentativas de criminalização. Não podemos terceirizar para o direito burguês a tarefa de blindar e proteger nossas organizações. 

Por fim, o Estado Democrático de Direito, idealizado por aqueles que enxergam apenas as frias letras da lei, não existe, é uma abstração do que está no papel esquecendo o mundo real. Este Estado Democrático não atinge todos os brasileiros, tendo grande parte de nosso povo, em especial a população negra, vivendo sem direitos básicos. As normas democráticas não são iguais para todos.

Se é um erro abrirmos mão da defesa das liberdades, dos direitos e das conquistas democráticas em momentos que elas estão sendo jogadas fora e sob constantes ameaças, após o Golpe de 2016 e no governo Bolsonaro. Também é verdade que a idealização deste Estado Democrático como ideal e a defesa da democracia em um abstrato são também erros diretamente opostos, mas ainda assim erros. 

Considerações jurídicas sobre a prisão de Daniel Silveira 

O caso tem diversos paradoxos que ao mesmo tempo soam cômicos e trágicos, sendo um bom retrato do Brasil. Temos um defensor do AI-5 sendo preso por atacar a democracia com uma Lei de Segurança Nacional fruto da Ditadura Militar que ele tanto defende e diz que o faz graças à “liberdade de expressão”. 

Sou daqueles que acreditam e defendem que o ministro Alexandre de Moraes utilizou os espaços abertos na Constituição para decretar a prisão de Daniel Silveira, discordando dos que apontam que ele teria passado por cima do Estado Democrático de Direito. 

É um fato que a existência de algo como a Lei de Segurança Nacional – LSN em uma democracia é em si um problema e ela deveria ter sido substituída por algo que servisse para a proteção do Estado Democrático de Direito. Porém, no mundo real, a LSN ainda é uma lei válida, sendo assim aqueles que ameaçam abertamente a ordem política estabelecida na Constituição estão sujeitos a ela. 

O deputado do PSL, ao ameaçar, ofender, caluniar e incitar a violência contra o STF e seus ministros, acabou por fazer abertamente uma conspiração contra a democracia, suas ações foram nítidas. Daniel Silveira usou o espaço da liberdade de expressão e da democracia para atentar e cometer crimes contra estas. 

Existe um limite entre o que é permitido e aquilo que não é. No Brasil de 2021 já ultrapassamos esse limite muitas vezes. E em todas elas com permissão da Suprema Corte. A primeira vez que Daniel ultrapassou esse limite foi quando quebrou uma placa em homenagem a uma vereadora assassinada. Agora, cabe ao STF tentar criar as asas do monstro que ele ajudou a criar. O STF acaba por afirmar que no fim nem tudo é permitido, apesar de parecer que é. 

Outra questão que gerou debates foi o chamado estado de flagrância pelo qual o deputado foi preso. Os ministros alegam que a divulgação do vídeo pelo próprio deputado nas redes sociais e sua circulação em tempo próximo ao qual foi gravado termina por se enquadrar como fragrância. Um deputado federal só pode ser preso por crime inafiançável (como a LSN) e em estado de flagrância. 

A existência de redes sociais é uma nova questão que deve ser interpretada pelos juristas. É um fato relativamente novo em comparação ao momento em que diversas leis foram escritas. O flagrante nos dias atuais não é o mesmo de meados do século XX. Porém uma coisa é certa, o direito para além da letra, é também sua interpretação e aplicação na realidade. A lei pode ser adaptada às particularidades do caso.

A prisão e a luta de classes 

O Brasil entra em 2021 em mais um ano da crise de hegemonia. Temos uma situação que se abre após a retirada de Dilma com o Golpe parlamentar e se intensifica com a eleição de Bolsonaro. Vivemos naquilo que podemos chamar de paradigma da exceção. No qual a norma jurídico-político que organizava as relações entre os poderes estatais sofre mudança tão firme, que a ruptura iniciada não é curada. Assim, a exceção se torna parte da regra, pois não existiu força social que pudesse realizar o reagrupamento do regime como antes, ou aplicar uma mudança completa no mesmo criando uma nova norma. 

A crise política brasileira se caracteriza por, além da ofensiva burguesa sobre os direitos trabalhistas e organizações populares, ter uma ferrenha disputa entre as frações da burguesia, e entre as instituições que regem o Estado burguês. Este cenário político somado à crise econômica-social foi terreno fertil para o florescimento do bolsonarismo como corrente que melhor expressa o neofascismo brasileiro. 

O governo Bolsonaro desde o início apresentou uma contradição entre seu governo e o regime político democrático burguês, é algo que estava claro até meados do ano passado, quando o mesmo participou de atos antidemocráticos que tinham como pauta o fechamento do regime. Esta contradição entre governo neofascista e regime democrático burguês ainda não foi solucionada. A burguesia brasileira aposta suas fichas em tentar domesticar Bolsonaro, o enfraquecendo. 

É neste cenário que podemos ver a prisão de Daniel Silveira, como mais um capítulo da disputa entre os poderes de nossa República. É mais uma cena no confronto entre as instituições e no embate entre o Judiciário e as forças bolsonaristas. 

A ação do STF surge em um momento no qual o governo Bolsonaro tem ao mesmo tempo um aumento em sua impopularidade, também aparece como favorito para a reeleição em praticamente todos os cenários pesquisados, e se fortalece no período mais drástico da pandemia, tendo apoio da imensa maioria do congresso e podendo avançar em suas pautas reacionárias. 

A grande questão na prisão de Daniel Silveira, não é necessariamente sua prisão em si, já que o mesmo é um ator político sem muita expressão mesmo dentro dos círculos bolsonaristas. A prisão assume importância pelos seus potenciais desdobramentos. O STF ao votar pela manutenção da prisão de Daniel Silveira agiu de forma rigorosa e ousada, e mandou o recado para os grupos bolsonaristas, com mandato ou não, e para o próprio presidente: “Existem limites e não aceitaremos tudo, andem na linha”. 

Como deve se portar a esquerda? 

A grande pergunta para a esquerda ao ver a prisão de Daniel Silveira é: a prisão deste deputado neofascista é positiva ou regressiva na atual conjuntura? Ajuda ou atrapalha na luta contra o governo Bolsonaro e suas ideias? Acredito que a resposta para estas perguntas é positiva. A prisão de Daniel Silveira é um fator progressivo na conjuntura e um

auxílio na luta contra as ambições da extrema direita. Diante disso o papel da esquerda organizada é defender a prisão e manutenção do Daniel na cadeia, além da cassação de seu mandato. 

Se nossa leitura sobre as origens do confronto é correta, nós não podemos ser neutros ou fingir que não existe uma disputa entre instituições e frações da burguesia. O papel da esquerda é buscar intervir nesta crise de forma que possamos sair fortalecidos. As brigas que acontecem no andar de cima nos são interessantes e também nos dizem respeito. 

Assim, neste confronto entre o governo neofascismo e o Judiciário que acaba por ser um freio às intenções golpistas dos bolsonaristas, devemos cerrar fileiras com o STF. Entre aqueles que defendem o regime democrático burguês, e aqueles que defendem uma ditadura, existe uma diferença imensa. Ficamos do lado das ações dos primeiros para conter este segundo grupo. 

Nos próximos dias se deve votar em plenário da Câmara se o deputado ficará preso ou não. A posição tirada pelos parlamentares vai ser uma resposta sobre aquilo que estes mesmos deputados pensam sobre o frágil regime democrático brasileiro. A depender da decisão do plenária os bolsonaristas irão se sentir mais ou menos recuados ou confortáveis para intimidar e atentar contra a democracia. As posições do clã Bolsonaro e dos militares também merecem ser olhadas com atenção. O fato é que a esquerda brasileira não pode vacilar neste momento, vai ser preciso tampar o nariz e apertar as mãos do STF para combater o bolsonarismo. Nossa palavra de ordem deve ser: Nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade.