Ei, você sabia que uma nova década acabou de começar?

Direita Volver

Coluna mensal que acompanha os passos da Nova Direita e a disputa de narrativas na Internet. Por Ademar Lourenço.

Os antigos romanos não tinham o número zero. Portanto, a contagem de nosso calendário começa com o ano 1 e não com o “ano zero”. A passagem para o século atual foi quando mudamos de 2000 para 2001, por exemplo. Sim, começamos a nova década agora em 2021. E nos faltou um balanço da década que passou. O que falarão dos anos 2010 daqui 20 anos? Como serão as festas nostálgicas sobre esta época? Os jovens vão dizer “eu gostaria de ver vivido naquele tempo” como muitos dizem hoje sobre épocas que não viveram?

Não vamos nos prender a marcos temporais exatamente dentro da última década. Do ponto de vista político, quando ela começou? Os atos da Primavera Árabe definiram a dinâmica dos dez anos seguintes. Parece que foi há séculos, não é mesmo? Os povos de vários países se aglomeravam aos milhões pedindo o fim de ditaduras. O dia exato em que tudo começou foi 18 de dezembro de 2010, no primeiro grande ato na Tunísia. Quando a última década teminou? Bom, ainda não há distanciamento histórico suficiente para cravar uma data sem chances de erro. Mas o absurdo e melancólico ato fascistóide do dia 6 de janeiro deste ano, em que milhares de pessoas invadiram a sede do Congresso dos Estados Unidos para tentar anular as eleições do ano anterior, talvez seja uma boa data.

Como podemos resumir este período que vai do dia em que os milhares de tunisianos foram às ruas pedindo a saída de Zine el-Abidine Ben Ali até o dia em que um grupo de malucos bizarros causaram uma confusão no Capitólio em defesa de Donald Trump? Estes marcos já nos dão uma parte da resposta. Foi talvez a década em que mais pessoas foram às ruas em toda a história da humanidade, pelo menos em números absolutos. Apenas o ato com 17 milhões de pessoas em julho de 2013 no Egito contra o então presidente Mohamed Morsi já mostra a magnitude deste período. Foi o maior dos atos da chamada Primavera Árabe. Por todo o Oriente Médio e Norte da África, milhões foram às ruas por melhores condições de vida e por democracia. Na Líbia e na Síria, a convulsão social se transformou em guerra civil.

A onda de manifestações de rua se espalhou pelo mundo. Os franceses que protestaram de coletes amarelos contra o aumento da gasolina, os brasileiros que botaram fogo no país em defesa de “saúde e educação padrão FIFA”, os norte-americanos que se mobilizaram contra a violência policial, os turcos que tomaram as ruas contra o autoritarismo do governo, dentre outros exemplos, mostraram que essa foi a década dos milhões nas avenidas e praças. Do cidadão comum que nunca participou de uma reunião de militantes, nunca se interessou por política, não é parte de nenhuma organização, mas se mostrou disposto a sair de casa em defesa de seus ideais.

Foi a década em que a economia em favor dos mais ricos foi questionada. Nos EUA, o centro financeiro do mundo, Wall Street, foi ocupado. Na Espanha, a geração dos indignados mostrava sua rejeição aos planos de austeridade. Na Grécia, as greves gerais se tornaram parte do cotidiano. Em meados da década, daria para pensar que os povos do mundo estavam perto de um grande despertar. Quem não ficaria impactado, por exemplo, com uma greve geral de 250 milhões de pessoas, ocorrida na Índia em 2016? Ou com a “Primavera Global” de 2012, que reuniu pessoas em centenas de cidades pelo mundo contra as injustiças do atual modelo econômico?

Mas as coisas não são tão simples. Em 2014, as revoluções no mundo árabe foram derrotadas e surge um califado islâmico que pretendia fazer a região voltar para a Idade Média. O Estado Islâmico cresceu com força e mostrou que era para sermos comedidos em nosso otimismo. Em 2015, o que existia de pior na classe média brasileira tomou as ruas para gritar bem alto “queremos nosso país de volta”. No caso, o país da fome e da desigualdade. Tiveram seu desejo atendido. Em 2016, foi eleito nos Estados Unidos um bufão reacionário que ficou famoso ofendendo as pessoas, Donald Trump. Parecia impossível que um povo seria capaz de fazer uma escolha mais infeliz que essa. Nas eleições de 2018, o Brasil mostrou que nossa noção de impossível precisa ser revisada.

Porque uma década que começou tão promissora tomou um caminho tão sombrio? Em 2011, falar em risco fascista era quase uma piada. Em 2020, a ameaça já era bem real. Por todo o mundo, grupos que defendem os piores preconceitos, a negação da ciência e a violência gratuita se proliferaram.

O que não avança retrocede. As dezenas de milhões de pessoas na ruas nos primeiros anos da década não conseguiram formular saídas coletivas para a crise. Veio o desânimo. A descrença em dias melhores. E este é o terreno fértil para aqueles que tentam convencer as pessoas por meio do medo, do ódio e do ressentimento.

Mas não podemos dizer que o que existe de pior na humanidade venceu. Tivemos o Estado Islâmico, mas tivemos a resistência das mulheres de Rojava, que fizeram o califado ter sua primeira derrota. Tivemos o golpe no Brasil, mas milhares de escolas foram ocupadas por uma educação melhor. Se foi a década em que emergiu o terraplanismo organizado, também foi a década da greve mundial em favor de medidas para retardar o aquecimento global. A direita recuperou espaço na América Latina no início da década, mas a resistência mostrou sua cara nos grandes atos do Chile e do Equador em 2019 e na derrota da direita golpista nas eleições bolivianas de 2020.

Se no andar de baixo o povo não se entende quanto a saídas, no andar de cima as elites também não conseguem se entender. Parte da burguesia do Reino Unido comemorou a saída do país da União Europeia. Mas o enfraquecimento do bloco econômico incomoda as burguesias da França e da Alemanha. As elites dos Estados Unidos travam uma guerra pela hegemonia mundial com a burocracia chinesa. É a chamada “Guerra Fria 2.0”, que pode ter um fim catastrófico. Vladimir Putin sempre lembra o mundo da pior forma que a Rússia ainda é a segunda maior potência nuclear. Anexa a Crimeia e parte da Ucrânia. Os países africanos lançam seu mercado comum. Enfim, se antes havia o consenso de Washington, hoje não há consenso nenhum.

Ainda era possível perceber as consequências da crise econômica de 2008 quando uma pandemia derrubou a economia do mundo em 2020. As oscilações do preço do petróleo quebraram países. O endividamento público se mostrou um problema sério e os bancos seguem extorquindo as nações. Os governos seguem retirando direitos e tornando os serviços públicos precários. Enquanto isso, trabalhadores percebem tanto o aumento do desemprego quanto o aumento da exploração.

As pessoas estão angustiadas com o futuro. Quais profissões serão extintas com a tecnologia? Todo mundo vai ter que ser escravo de aplicativos como o Uber? Quando a pandemia vai acabar? A última década nos deu várias perguntas e não nos deu quase nenhuma resposta. Foi um período de grandes imprevistos. Foi uma época em que aprendemos o quanto é inútil querer prever o futuro.

Alguém deve ter notado que até agora não foi citada a ascensão das redes sociais como principal mídia no imaginário popular, desbancando a televisão. É claro que isto marcou a década. Se no fim de 2010 o Facebook parecia apenas uma promissora plataforma de entretenimento para adolescentes, em 2021 a rede de mídias sociais comandada por Mark Zuckerberg controla boa parte do fluxo de informação no mundo. O poder que poucas empresas de informática têm de definir, por meio de algoritmos, o que cada um vê em seu celular, aumentou de forma exponencial. Mas mais importante do que a tecnologia é o que as pessoas fazem com ela. A internet não é uma rede de computadores, é uma rede de pessoas. A raça humana ainda é a culpada coletiva pelo que acontece de bom e de ruim consigo mesma.

O que os próximos anos nos reservam? Como serão os anos 20 do século XXI? Como as pessoas vão se comportar quando puderem ir às ruas normalmente depois que a pandemia de Covid-19 acabar? O neofascismo não foi totalmente derrotado. A resistência dos povos também não. Ainda se mostra presente com suas demandas por emprego decente, medidas contra as mudanças climáticas, liberdade e o fim do preconceito. A tecnologia segue avançando. Os ricos ainda têm o controle do mundo e se tornam cada vez mais ricos. Os mais pobres ficam cada vez mais pobres. Já que aprendemos a não fazer muitas previsões, pelo menos vamos tentar entender o espírito do tempo. Esta década que começa tende a ser tão ou mais intensa que a anterior. Quem espera um “descanso” depois de tantas atribulações tem boas chances de se enganar.

A década que começou com as maiores aglomerações da história da humanidade terminou com o maior isolamento social da história da humanidade. As contradições deste período intenso não foram superadas. De tédio a gente não vai morrer. Segue a luta.