Enquanto poderíamos estar nas ruas “desfilando a vida, carnavalizando”, comemorando o fim desse pesadelo, com vacinação em massa, oxigênio para todos(as), e a queda do desgoverno de plantão, nesta sexta feira de Carnaval do ano da graça de 2021, somos reféns de uma pandemia que insiste em permanecer entre nós, neste triste Brasil – tão triste que Maria Bethânia, minha musa, não quer falar sobre esse assunto, pois chora. Lágrimas compartilhadas com ela e com vocês.
Caminhamos a passos acelerados para as marcas norte-americanas de letalidade, fora a subnotificação e as mortes por consequência dos efeitos colaterais da COVID-19. Hoje, 12 de fevereiro de 2021, já ultrapassamos oficiais 236 mil mortos. Nos EUA, estudo recente publicado na Revista Lancet mostrou que 40% dos óbitos poderiam ter sido evitados, não fosse o sucateamento neoliberal do sistema de saúde durante décadas e as recentes políticas e atitudes genocidas de Trump. Estudo semelhante no Brasil poderia revelar taxas ainda mais altas, dada a insistência presidencial em sabotar a ciência, a vacinação e as medidas protetivas recomendadas. Vou poupar o(a) leitor(a) da conhecida lista de horrores presidenciais sobre a pandemia, mas ontem mesmo (11/02/2021) houve mais uma incontinência verbal do presidente, dizendo para a população “não ficar chorando em casa” dentre outras cloroquínicas crueldades. Uma insistência que encontra eco no individualismo exacerbado e na banalização da vida cultivados sistematicamente entre a população nas últimas décadas, e encontra suporte na Faria Lima, diga-se, na burguesia brasileira que pouco se importa com “os de baixo”, e fica à espreita da próxima medida da agenda ultraneoliberal que vai locupletar sua ansiedade de superlucros. Encontra apoio também no Congresso Nacional, onde Rodrigo Maia esteve sentado sobre 54 pedidos de impeachment e Arthur Lira está sentado agora sobre 68, sem qualquer sinalização de vontade política para dar prosseguimento a eles. Há que registrar que a lógica do Congresso hegemonizado pelo Centrão ao longo da redemocratização brasileira é a de sua autorreprodução política e material. A vitória de Lira e de seu coleguinha Rodrigo Pacheco no Senado, ambos apoiados pelos Bolsonaro, se fundou na velha troca de favores, com os dutos de recursos e cargos abertos, às custas do povo brasileiro.
Ademais, os aliados do genocida se espraiam em órgãos inusitados, a exemplo do Conselho Federal de Medicina (CFM), que em nome da autonomia profissional, não cumpre, ao nosso ver que estivemos à frente do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), seu papel constitucional de proteger a população das más práticas médicas, e não veta aos profissionais o tal do “tratamento precoce” que não tem nenhum suporte científico, mesmo com críticas contundentes de parcelas da categoria médica. Assim, a direção do CFM ajuda Pazuello e Bolsonaro a tergiversarem sobre suas responsabilidades, liberando o caminho para que o desgoverno despeje na população os milhares de comprimidos de cloroquina comprados e/ou produzidos com recursos públicos. Aqui temos nitidamente um crime sanitário que lesa o erário público, ou seja, crimes de responsabilidade que, tudo indica, passarão impunes.
A defesa da grande mídia e de governadores e prefeitos do retorno às aulas em plena expansão da pandemia e sem a vacinação da comunidade escolar, também é cúmplice. Mesmo com a oposição pontual aos desmandos do governo federal quando ultrapassam até os seus elásticos limites, é preciso dizer que sua posição e a de seus parceiros, como o Todos pela Educação corrobora a circulação do vírus. O discurso idílico da Rede Globo sobre a “educação que salva” e a defesa ferrenha da abertura das escolas, na verdade, deixa professores e demais trabalhadores da educação ao deus-dará. Diz para esses trabalhadores: trabalhem, corram o risco enquanto esperam a vacinação que corre a passos lentíssimos. Eles sabem que se permanecermos neste passo, a vacinação levará ao menos três anos para a imunização comunitária, isso se as variantes criadas enquanto o vírus circula livremente no país não forem mais letais. É nessa hora que vemos onde está o maior conglomerado de comunicação do país. Se importam com estudantes e famílias, que supostamente não podem mais esperar (será?); tratam muitas vezes os professores como se não estivessem trabalhando dentro dos limites enormes do meio remoto, num esforço monumental e sem estrutura pelos seus empregadores; mas não se importam com quem assegura os conteúdos, o funcionamento, a alma da escola. Nada mais necessário do que a greve sanitária que hoje organizam os professores de São Paulo em meio a muitas dificuldades.
Tal posição da grande mídia e as instituições que mobiliza, se vê também na comemorada autonomia do Banco Central, tão incensada há trinta anos pelos arautos do neoliberalismo e agenda número um de Arthur Lira, que aprovou a proposta a toque de caixa nos seus primeiros passos na Câmara, para mostrar seu compromisso com a Faria Lima, agora no ambiente ultraneoliberal. Isso significa que alguns tecnocratas farão a gestão da emissão de moeda, do câmbio, dos títulos da dívida pública, e da taxa de juros em nome de um suposto descolamento da agenda eleitoral. Nessa concepção, o farão como se houvesse um andamento natural e independente desses temas em relação às decisões políticas, projetos políticos, interesses e necessidades reais da população. Como se a economia tivesse um andamento natural – o grande fetiche dos liberais – e tais tecnocratas fossem sujeitos neutros a mobilizar a boa técnica. Nada mais mentiroso. A autonomia do Banco Central é mais uma sentença de morte que nos impõe os interesses da finança sobre todos os demais, o que significa o descolamento definitivo em relação às necessidades da população, com a manutenção das políticas de “austericídio” que vem orientando a economia política brasileira. Com a tal autonomia, o ajuste será ainda mais intenso do que hoje ocorre com as terríveis Emendas Constitucionais 95 e 93, a contrarreforma da previdência e outras medidas que cortam direitos. Sem falar que os pacotes de maldades da contrarreforma administrativa e do pacto federativo terão prosseguimento! Além do mais, a autonomia do Banco Central (1) pode implicar na dolarização ainda mais profunda da economia brasileira, que vai sendo levada para um poço sem fundo a cada movimento desta quadrilha que se apropriou do poder político, com suas falsas promessas, seu toma lá dá cá e o genocídio em curso de todos os dias. Estão “passando o rodo” (ou a boiada segundo o linguajar de Ricardo Salles) com suas medidas destrutivas em plena pandemia, não apenas na criminosa gestão ambiental. São covardes.
Outra face deste bárbaro Brasil é o fim do auxílio emergencial combinado à alta de preços de itens que compõe as necessidades básicas da população, a exemplo do gás de cozinha hoje balizado pelos preços internacionais do petróleo, e dos alimentos sob forte influência do mercado mundial de commodities, ou seja, pelo verdadeiro Deus dos dirigentes do país e seus apoiadores, o mercado. Tudo indica que a retomada do auxílio, engendrada exclusivamente pelo cálculo eleitoral para 2022, com valores irrisórios e um público-alvo bem mais reduzido, não será capaz de reverter a situação de milhões de famílias acometidas por um outro vírus letal, o do drama crônico brasileiro, a desigualdade social, o desemprego e a fome. O argumento é o de sempre: o teto de gastos e o ajuste fiscal. Mas, certamente irá produzir um efeito eleitoral nos rincões do país onde “em terra de cego quem tem um olho é rei”, podendo se transformar na nova “bolsa capitão” para elevar a popularidade do inominável. Corroboram para isso as estruturas conservadoras e reacionárias presentes na sociedade civil, em especial os mercadores e exploradores da fé que atuam há muito nos bolsões de pobreza do país, naturalizando essa condição como responsabilidade individual e vontade divina. Assim, as tramas da mera reprodução política vão construindo um enredo de permanência, de autorreprodução da desumanidade e da barbárie.
Nesses dias de distanciamento social, o cinema (visto pela TV) tem sido uma grande companhia: a arte como leitura e interpretação do mundo e que nos ajuda a compreender com sua linguagem o que estamos vivendo, a sobreviver e resistir. Revi há poucos dias Amarcord (1973), onde Fellini, este grande gênio com sua escrita fílmico-poética, nos fala sobre o fascismo dos anos 30, na Itália. Nos mostra o ridículo e bizarro Duce Mussolini em visita à cidade imaginária, com suas demonstrações atléticas e viris (que lembram muito o ocupante atual do Planalto), bem como o triste e quase ingênuo apoio da população. Mostra, sobretudo, o ódio de classe presentes no projeto do fascismo. Em meio a esta visita do Duce, um ousado gramofone toca a Internacional do alto do campanário da igreja da cidade, irritando os camisas-pretas fascistas, que buscam de onde vem o som e atiram no gramofone até que ele caia vencido. Os “assassinos” saem dançando como se tivessem vencido uma guerra. Na sequência são perseguidos e torturados os socialistas da cidade na busca implacável dos responsáveis pelo ato insurgente. Era um período de profundas derrotas da classe trabalhadora.
Fellini nos instiga a pensar que em pleno século XXI, tal como no passado, a única forma de derrotar o neofascismo combinado ao ultraneoliberalismo, é colocarmos nossos “gramofones” para tocar, ao invés de esperar que as blindadas instituições democráticas funcionem. E criar as condições para não sermos vencidos pelas milícias verde-amarelistas. Para furar o bloqueio é preciso retomar as ruas, realizar ações simbólicas e contundentes em defesa da vida, e ações de massa com todas as precauções (por isso eles adiam a vacina). O que fizemos até agora foi muito, dadas as condições, mas ainda é pouco diante do “sono da razão” que “produz monstros” como alertava Goya.
É preciso pressionar pelo impeachment, pelo #ForaBolsonaro, mesmo que a correlação de forças esteja muito desfavorável. Os esqueletos que saem do armário, a exemplo dos podres do lavajatismo e da entrevista sem pudor do general Villas Bôas, admitindo a direta participação do Exército na pressão sobre o STF no caso de Lula, bem como a ocupação militar de cargos no governo federal (2) nos mostram o tamanho do desafio que a classe trabalhadora tem diante de si para que saiamos dessa imensa tragédia e do ataque às liberdades democráticas. A rigor, objetivamente, motivos não faltam: eles sobram para o impeachment. A responsabilidade por essa situação é do Congresso, do Judiciário e da burguesia e suas expressões institucionais e políticas, que se movem exclusivamente pela lógica do lucro e de seus privilégios. Temos ido para as ruas, em grandes protestos. Inclusive em junho/julho do ano passado, vidas foram colocadas em risco em defesa das liberdades democráticas. Será necessário retirar das entranhas dos fenômenos mórbidos da crise de civilização que estamos vivendo, as contradições, as estratégias e as condições para fazer saltar a resistência e o humanismo, o amor à vida. Não podemos aceitar este presente sem futuro que se empenha em condenar as próximas gerações. Pelo contrário, não nos renderemos à crueldade, à injustiça e às mentiras que fundam esse projeto destrutivo. Seguiremos denunciando suas imposturas e desvalores.
* Retomamos hoje nossa coluna, que ficou suspensa por uns meses por duas razões: a conclusão de meu livro Fundo Público, Valor e Política Social, a ser publicado em breve pela Cortez Editora; e merecidas férias. Então, estamos de volta!
Notas
1 – Sobre o tema, conferir o artigo importante e decorrente de um estudo de tese de doutorado de Eric Gil Dantas, também no EOL.
2 – Confira este impressionante gráfico produzido pelos mandatos dos mandatos do senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE) e da deputada federal Tabata Amaral (PDT/SP)
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