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Aonde vai o PSOL?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Se de noite chorares pelo sol não verás as estrelas.
Sabedoria popular indiana

1. O PSol entra em 2021 mais forte e influente. Cresceu sua audiência popular e autoridade política em plena situação reacionária. Tem novas responsabilidades. Mas há uma “maldição” dialética entre vitórias e derrotas, porque surgem novos desafios e, também, perigos. Ou, na sabedoria popular: “quando as coisas dão certo aumentam as chances de dar errado”. O PSol obteve vitórias político-eleitorais, mas permanece ainda, organicamente, frágil: implantação de base, formação de quadros, finanças próprias, sistema de imprensa, mas, também, pressões eleitoralistas. Imaginar que o amanhã será, essencialmente, uma continuidade de ontem é outro desses perigos. Mesmo militantes revolucionários, treinados para a espera de inflexões, têm dificuldades. As mudanças na realidade são sempre quantitativas, e menos perceptíveis, até que ocorre o salto qualitativo. A vida e a luta política não são lineares. A situação defensiva ainda não mudou. Mas não se eternizará, indefinidamente. O mais importante é a capacidade de previsão dos conflitos e rupturas, para que estejamos capazes de enfrentar as oportunidades que virão na hora das grandes turbulências, sem improvisos. As condições objetivas serão terríveis no ano que inicia. Mas o agravamento da crise social não será o bastante. A questão decisiva será a maturação das condições subjetivas para derrotar Bolsonaro. Porque a oposição de esquerda poderá se fortalecer, mas terá que disputar seu lugar com o bloco de Doria e Maia. O jogo de dissimulação da oposição liberal – contenção das ameaças de Bolsonaro, mas sustentação das políticas do governo – exerce pressão sobre o PT e PCdoB. O maior perigo neste momento é a estratégia de “redução de danos” ou de “mal menor”. O maior desafio do PSol, em 2021, será não pode ceder a estas pressões.

2. Já estamos em um novo momento da conjuntura. Ainda é uma mudança somente quantitativa na relação de forças social e política. Mas é uma inflexão de tendência. O enfraquecimento do governo após a catástrofe humanitária do desabastecimento de oxigênio em Manaus, o caos na vacinação, a adesão nacional ao panelaco e às carreatas, a abstenção no ENEM, a refração da queda de popularidade nas pesquisas deixaram Bolsonaro mais isolado. Os fatores objetivos da crise social devem se agravar. A pandemia está à deriva e o colapso em Manaus prenuncia que uma catástrofe está no horizonte, enquanto a vacinação será um processo, na melhor das hipóteses, dramaticamente, lento. O fim do auxílio emergencial de R$ 600,00 para 65 milhões de pessoas; o fim da complementação salarial para outros dez milhões, no contexto de uma contração econômica de 4% a 5% do PIB sugerem um cenário deteriorado de crise social. Os empregados por conta próprio, caíram de 24,7 milhões para 21,7 milhões. Os trabalhadores sem carteira assinada, outra parcela do semi-proletariado, caíram de 11,8 para 9 milhões. Entre os trabalhadores com carteira assinada a queda, entre dezembro de 2019 e o fim do terceiro trimestre de 2020, de 33,6 milhões para 29,3 milhões. Estima-se que até quatorze milhões de pessoas poderiam cair na pobreza extrema, na maioria jovens, mulheres e negros. Mas somente a degradação da situação de vida das massas não será o bastante para derrotar Bolsonaro. Não é ainda a hora de preparar a ofensiva final. Mas, tampouco, é hora de recuar, nem sequer de manter posições a qualquer preço. Um novo momento se abriu e devemos mover as peças, explorando as possibilidades, para a frente.

3. Entretanto, surgiram maiores diferenças internas. Diferenças são inevitáveis, mas é possível evitar a praga do fracionalismo. Tivemos a formação, em alguma medida surpreendente, de um bloco que defendeu o apoio a Baleia Rossi, desde o primeira turno na eleição da presidência da Câmara dos Deputados. Confundir a relação de forças política ultra-desfavorável dentro do Congresso Nacional com a relação de forças social no terreno da luta de classes remete a algum grau de miopia política. Na forma, a diferença foi tática, e não deve ser dramatizada. Mas o caminho para a derrota de Bolsonaro é a mãe de todas as batalhas. Nas últimas décadas de estabilidade do regime, as negociações em torno da eleição da presidência da Câmara, dos cargos na mesa, e distribuição nas comissões e relatorias foram um tema menor, quase uma subtática parlamentar. Só que estamos em condições excepcionais sob o governo Bolsonaro, um presidente neofascista à frente de um governo de extrema-direita com um projeto bonapartista. O fato de ter sido tão polêmico o lançamento de uma candidatura de esquerda no primeiro turno, quando há acordo em um voto crítico contra Artur Lira no segundo turno foi um pouco perturbador. Por quê? Há três grandes blocos políticos no Brasil, não dois. Devemos ter a lucidez de fazer unidade de ação pontual com lideranças burguesas contra Bolsonaro em defesa das liberdades democráticas. Mas não podemos entrar sem diferenciação prévia no bloco que sustenta o projeto de Maia. O apoio no segundo turno deve ser um voto contra Artur Lira.

4. Não podemos saber se Bolsonaro conseguirá ou não concluir seu mandato até 2022. Nosso combate deve ser pelo seu impedimento, não a antecipação da tática eleitoral de 2022. Mas nesse processo, o PSol estará tencionado, permanentemente, sobre qual deve ser a política de alianças. Porque há um desafio dialético: o impeachment só é possível com a tática de unidade de ação, mas o centro da estratégia deve ser a afirmação de um polo de esquerda independente da burguesia na liderança da oposição. Essa disputa está em aberto, e vai ser difícil. Depois de dois anos de mandato o desgaste do governo vem aumentando, mas lentamente, a despeito do desastre da gestão da pandemia. É possível, senão provável, que no ano de 2021 aconteça uma corrosão da influência que o bolsonarismo mantém nas classes populares, uma aceleração da experiência nas camadas médias, e uma maior divisão na massa na burguesia. Mas é preocupante que o bloco liderado Dória/Maia com o PSDB/DEM/MDB tenha conseguido manter posições, como se confirmou nas eleições municipais, e reforçado na “guerra” das vacinas. É também inquietante que o bloco liderado por Ciro Gomes se mantenha com alguma força na disputa dentro da oposição. O PSol tem contribuído para que uma Frente de Esquerda se fortaleça ao se comprometer com as iniciativas das Frentes Brasil Popular/Povo Sem Medo, e ao articular com o PT, PCdoB na apresentação de um pedido de impeachment comum. O PSol não pode ter uma posição indistinta ou equidistante diante dos três blocos em que se divide a oposição, porque há uma linha de classe que nos separa de Dória/Maia e de Ciro Gomes. Podemos fazer unidade de ação com todos, mas a prioridade do PSol deve ser a Frente de Esquerda.

5. A defesa da Frente Única de Esquerda é indispensável para conseguir mobilizar na escala de massas contra Bolsonaro. Mas uma disposição revolucionária de luta não despertará nas massas populares em defesa do regime. Entre outras razões, porque neste momento não há perigo de auto-golpe. Será na luta pela vacinação agora e já, pela quebra das patentes, pelo auxílio emergencial, pelo direito ao trabalho, contra o teto de gastos, contra a reforma administrativa, contra a independência do Banco Central, contra a privatização dos Correios, do Banco do Brasil que podemos incendiar a consciência de milhões. Devemos reconhecer que a experiência com o PT não se esgotou. Permanece interrompida. E a confiança em Lula é ainda maior que no PT. O PSol não pode perder o sentido das proporções. Sem o PT não é possível a esquerda disputar a liderança da oposição a Bolsonaro. Com o PT já será difícil. Sem o PT quem estará em melhores condições de expressar o mal estar contra o bolsonarismo será a oposição liberal, ou até Ciro Gomes, um desenlace regressivo.

6. Frente Única de Esquerda para lutar não tem como desdobramento inevitável candidaturas únicas de esquerda nas eleições, desde o primeiro turno. A orientação de lançar candidaturas próprias foi referendada política e eleitoralmente. Time que não joga não tem torcida. Mas time que joga e sempre perde, também não tem. Evidentemente, a audiência de Boulos em 2018 foi favorecida pelo impedimento da candidatura de Lula. A influência de Boulos em 2020 foi, também, aumentada, pela ausência da candidatura de Haddad. O mais importante é a defesa de um programa classista e anticapitalista como a saída para a crise. Mas o papel dos indivíduos, como o de Boulos, importa. O crescimento e fortalecimento de mulheres, negras e negros, pessoas LGBTI+ como parlamentares e liderancas do partido, importa. Os votos para vereadores em escala nacional são uma indicação de que o PSol ocupa um lugar próprio na representação dos movimentos sociais que se articularam com mais força desde as jornadas de junho de 2013.

7. Boulos se afirmou como o principal líder da esquerda depois de Lula. Essa é uma conquista imensa. Não pode ser diminuída, nem deve ser sobre-estimada: um milhão de votos conquistados no primeiro turno de 2021 foi espetacular, mas não deve levar a conclusões erradas. A votação de Boulos não permite concluir que as ilusões reformistas na colaboração de classes, que embalaram a confiança no PT durante décadas, foram superadas. Não foram e não poderiam ser em uma situação reacionária, em que pesam muitas mediações. A audiência para as posições políticas de Boulos e do PSOL, a sua capacidade de convocar mobilizações e o papel deste pólo combativo na oposição ao Bolsonaro e ao tucanato se ampliaram, qualitativamente. Mas os votos de Boulos não equivalem, diretamente, a votos no PSol, menos ainda na estratégia da revolução brasileira. Assim como a votação em Marcelo Freixo no Rio de Janeiro, quatro anos atrás, como se pode confirmar na votação para prefeito do PSol em 2020. Mesmo o apoio de mais de quatrocentos mil votos às candidaturas proporcionais do PSol na capital paulista deve ser bem calibrado para ser compreendido. A conexão do Psol com a demanda de representação do movimentos negros, feministas, LGBTI+’s, ambientais, de Juventude, mandatos coletivos não personalistas, e com a necessidade de renovação de lideranças é um passo importante para a implantação do partido na vanguarda da classe trabalhadora. Porém o trabalho de base orgânico do Psol na classe trabalhadora e na periferia ainda é frágil.

8. A vitória político-eleitoral em São Paulo não deve, também, ser subestimada. Boulos e Erundina defenderam uma ideia poderosa: só a luta social muda a vida. Esse é o eixo de método da tradição marxista inspirada no programa de transição: a mobilização permanente. Boulos defendeu não só a legitimidade das ocupações de terra, mas a revolta diante do assassinato de João Alberto no Carrefour, e as lutas contra a PEC do teto com enfrentamento direto junto ao prédio da FIESP. Uma campanha, corajosamente, classista. O fato deste perfil ter conseguido ir ao segundo turno, diante de um perfil moderado-técnico do PT, mas com enraizamento muito superior, foi formidável. Afinal, no início da campanha, Boulos só era lembrado por 40% da população. A campanha foi vitoriosa entre a juventude de 16 a 24 anos. O apoio do PT e PCdB, no segundo turno, à candidatura de Guilherme Boulos em São Paulo era previsível, mas as declarações de líderes de partidos de centro-esquerda contra os tucanos, progressivas, foram atípicas, excepcionais. Boulos não é um clone de Lula, nem o PSol é uma mimetização do PT. Há continuidades e rupturas.

9. O PSOL tem um peso político muito maior que sua expressão parlamentar. Elegeu 88 mandatos municipais e 5 prefeituras, incluindo uma capital: Belém. Entre os mandatos eleitos do PSOL, 40% foram mulheres, cerca de 47,7% dos eleitos foram negros. Ainda houve a eleição de quatro candidaturas trans. O PSol apostou, ainda que com debate áspero de nuances, majoritariamente, numa aliança com o MTST, o movimento social que mais se destacou desde as jornadas de junho de 2013. O resultado das eleições, em algumas das principais capitais do país, colocou o PSol ao lado do PT, agora na primeira linha da esquerda, ainda que seja menor, com menos capilaridade e, sobretudo, com menos influência nas organizações que expressam os setores da classe trabalhadora organizada.

10. Mas o PSol teve, para vereadores, votações superiores ao PT no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, entre outras, e chegou ao segundo turno para prefeito em São Paulo. Há um balanço político na raiz deste fortalecimento. Uma aposta que se traduziu, em 2018, na campanha de Boulos e Guajajara à presidência. Com essa localização também, se posicionou na luta contra o golpe parlamentar que derrubou o governo de Dilma Rousseff, na luta pela liberdade de Lula, assim como na luta pela Frente Única de Esquerda contra Temer e pelo Fora Bolsonaro. Conseguiu a vitória de ultrapassar a cláusula de barreira eleitoral em 2018. Neste marco político, PSOL e MTST confirmaram ser um polo dinâmico da esquerda. Mas a hora dos grandes desafios ainda não chegou. Não há passagem política para uma nova direção “a frio”. Somente quando se abrir uma nova situação política, quando de uma grande onda de lutas, o PSol será colocado à prova diante da história.

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