Sobre o relatório Human Right

Entre outras coisas, o relatório aponta sabotagem de Bolsonaro a medidas destinadas a conter propagação da Covid-19

Adriano Versiani, de São Luís, MA

Representantes da ONG apresentam relatório anual em São Paulo

No dia 13 de janeiro de 2021, a ONG Human Right Watch elaborou seu relatório anual contendo análise a respeito de violações aos Direitos do Homem em mais de cem países, oportunidade em que avalia caso a caso, aprofundando o exame em detalhes específicos de cada nação[1]. O relatório é importante ante à cientificidade dos estudos realizados pela organização e sobretudo porque trata de temas sensíveis de nosso país. Contudo, fazer uma análise crítica sobre o conteúdo é importante.

O relatório traz consigo muitas informações relevantes, como por exemplo a de que “O presidente Jair Bolsonaro tentou sabotar medidas de saúde pública destinadas a conter a propagação da pandemia de Covid-19 (…)”. Trata-se de informação proveniente de estudos de uma organização técnica, com prestígio na comunidade internacional. Portanto, a partir de um diagnóstico técnico, concluiu-se que o Presidente do país agiu como sabotador das medidas de saúde pública necessárias para contenção da pandemia. Não se trata de opinião política, nem de manifestação partidária, mas do relatório de uma organização que se dedica a observar a aplicação (ou não) dos direitos humanos em mais de cem países.

O documento também registra que caminhamos no sentido contrário aos direitos humanos no que pertine aos direitos das mulheres e meninas. Lembra, nesta quadra, o conhecido caso de uma criança de 10 anos, vítima de estupro e um hospital, no estado do Espírito Santo, se negou a fazer o aborto.

Há também outras menções a questões tão importantes quanto as destacadas acima, tais como liberdade de expressão, nossos sérios problemas ambientais, direitos dos povos indígenas, segurança pública e violência policial, dentre outros. Em todos esses temas, a postura do presidente Bolsonaro é avaliada e tida como entrave para o exercício de direitos.

Como se percebe, o relatório nos coloca diante de constatações importantes, que não podem deixar de ser levadas em consideração. Entretanto, passa ao largo de uma visão crítica aos direitos humanos e de toda institucionalidade que contribui para que tais direitos não sejam aplicados.

No mesmo dia 13 de janeiro de 2020, Conrado Hübner Mendes, em artigo veiculado no jornal Folha de São Paulo, nos chama atenção para o fato de que o “Negacionismo padrão Barroso não é menos nocivo que outros negacionismos”. O texto faz referência à negação geralmente levada a efeito pelo Ministro da Suprema Corte no sentido de que, em nosso país, não há abalo às instituições e que a democracia não corre riscos[2].

A análise feita em tese, como característica clara de quem defende a institucionalidade, é sempre prejudicial quanto ao tema, de modo que nos parece acertada a conclusão de Conrado, pois dizer que, diante da ameaça que o atual governo representa, as instituições funcionam, representa negacionismo, negando, desta forma, a realidade dos habitantes de nosso País. Ao falar sobre direitos humanos, democracia ou até mesmo a respeito das instituições, deve-se levar em consideração a materialidade da vida. Deste modo, não se revela acertado afirmar a higidez institucional de um país, se o garoto João Pedro, de 14 anos, foi fatalmente vitimado dentro de sua residência pelo Estado e também se “doze crianças morreram baleadas ao longo de 2020 somente no Estado do Rio de Janeiro”[3], isso para não alongar o texto com intermináveis e tristes exemplos.

Para encerrar, Guilherme Boulos, na mesma Folha de São Paulo, relata a desumanidade que representa acabar com o benefício emergencial criado em razão da pandemia, sobretudo neste momento em que há 14,1 milhões de desempregados no país.

Tudo isso nos leva à pergunta que o direito não consegue dar resposta satisfatória: Por que os direitos humanos não tutelam o sofrimento?

Há algo de equivocado na proteção à institucionalidade e na crença de que a democracia vai bem. A hegemonia do discurso dos Direitos do Homem, linguagem defendida pela maioria dos países civilizados, parece não encontrar eco na realidade. Se várias inteligências políticas, da direita à esquerda, defendem tais direitos, nos parece claro que eles não são aplicados indistintamente a todos os habitantes de nosso país, de modo que o princípio da universalidade dos direitos humanos não passa de quimera.

No Brasil e fora há vários pesquisadores que defendem uma visão crítica aos direitos humanos. São direitos que necessitamos, que nos mantém vivos, mas também são utilizados como elemento retórico. É deveras relevante e atual a crítica feita por Marx, na obra A questão judaica, onde localiza o problema dos direitos do homem e cidadão, dizendo que o homem tratado na declaração francesa não é o homem universal, ou seja, não é todo ser humano, mas apenas o membro da sociedade burguesa, proprietário de bens materiais[4].

De Marx até hoje, inúmeros intelectuais se dedicaram a pensar os direitos humanos de modo crítico. Marina Chauí, em livro que divide a autoria com Boaventura de Sousa Santos e falando sobre a compreensão do sociólogo português a respeito do tema, faz interessante reflexão sobre a disparidade da hegemonia da regulação sobre a emancipação. Ou seja, regula-se muito, cria-se muitas leis e muitos direitos, mas o sistema emancipa pouco. De acordo com a filósofa:

“Por isso mesmo, a constituição, o desenvolvimento e a crise do paradigma da modernidade têm no jurídico um dado fundamental, pois teria sido um componente estratégico no processo perverso e fracassado de solução das contradições do projeto moderno, no qual a regulação sobrepõe-se à emancipação.”[5]

A noção de homem, que é o ser portador de tais direitos, é problematizada por Nelson Maldonado-Torres, que faz uma análise importante a esse respeito. Segundo ele, a modernidade ocidental, em termos humanistas, envolveu não apenas uma linha secular que oferecia autonomia ao homem diante de Deus, promovida da reformulação do lugar do homem no Renascimento e reafirmada nas revoluções liberais, mas também uma linha de desumanização, criando um âmbito de não incidência de direitos, “demarcando a diferença entre a humanidade e as novas criaturas da modernidade, vistas como se existissem para ser violadas, escravizadas e colonizadas”[6]. Determinadas pessoas, ainda segundo o autor, foram condenadas a não corresponder à ideia de homem, permanecendo fora da zona de civilização.

Tudo isso ocorre diante da condução do capitalismo, que cria a categoria de pessoas, até mesmo países e civilizações que são condenados a não-ser. Tais sociedades e pessoas convivem com a inexistência de direitos e, por estarem nessa cinzenta zona de condenação, não contam com a empatia do restante da humanidade. Tal ausência de direitos não dói, não chora, não traz atuação efetiva do Estado para promover dignidade, pois tais pessoas foram condenadas.

Maldonado-Torres[7] ainda traz a concepção de Aimé Cesaire a respeito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, para quem trata-se de um “pseudo-humanismo”, que foi tendente a diminuir os homens, pois o conceito continua a ser “restrito e fragmentário, incompleto e tendencioso e, acima de tudo, sordidamente racista”.

Portanto, ao contrário da ideia gestora da declaração dos direitos do homem e cidadão de 1789, de que existem direitos que pertencem ao homem por sua própria natureza e que, diante disso, o ser humano seria o portador natural dos mesmos, entende-se, como o próprio Marx já anotou na obra A questão judaica, que os direitos humanos são fruto da atividade cultural do homem e, como tal, devem ser analisados em uma perspectiva histórica concreta. A análise deve se dar, pois, em uma relação dialética, perquirindo os contextos sociais em que estão inseridos esses direitos. Eles aparecem dentro de uma conjuntura social e no decorrer da história (desde a criação até hoje) foram mote de lutas, embates, suor, lágrimas e sangue por parte dos povos excluídos que também queriam ser seus portadores.

Portanto, ao localizar vários problemas, o relatório nos auxilia muito em uma análise a respeito do governo Bolsonaro, no entanto, é preciso ir mais longe porque a linguagem dos direitos humanos, embora seja necessária para a nossa luta, não é a finalidade, uma vez que a história nos mostra que, enquanto houver capitalismo, haverá ofensa aos direitos do homem.

 

[1] Disponível em. Acesso em 13 de janeiro de 2021.

[2] Disponível em. Acesso em 13 de janeiro de 2020.

[3] Disponível em. Acesso em 13 de janeiro de 2021.

[4] A questão judaica. 6.ed.São Paulo: Centauro, 2007.

[5] Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento. 1.ed. São Paulo, Cortez, 2014, p.21.

[6] In SANTOS, Boaventura de Sousa; MARTINS, Bruno Sena (Org). O pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. 1.ed. Belo Horizonte:Autêntica. 2019, p.95.

[7] Idem, p.102.