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CULTURA

Férias pra que te quero | 1984, de George Orwell: você está preparado para encarar uma distopia?

No primeiro verão da pandemia, que desejamos que seja o último, considerando que muitas pessoas estão de férias, mas estão em casa, respeitando as recomendações das autoridades sanitárias e dos estudiosos do assunto, abrimos uma coluna para indicar filmes, séries e livros para os nossos leitores. Através de textos curtos, traremos sugestões que acrescentem um pouco de arte, diversão e também algum conhecimento aos que nos acompanham e acompanham o Esquerda Online. Querem saber o que temos pra hoje? Vem comigo, no caminho eu explico!

Carlos Zacarias de Sena Jr., colunista do EOL

1984, de George Orwell: você está preparado para encarar uma distopia?

Morto em janeiro de 1950, aos 47 anos, George Orwell, na verdade Eric Arthur Blair, não viveu o suficiente para ver o uso que muitos fizeram de sua obra, especialmente de seu último livro, 1984. Publicado em 1949 (supostamente a projeção da distopia para 1984 deveu-se à inversão dos dígitos do ano em que o livro foi escrito), 1984 não é apenas uma das utopias negativas mais conhecidas e importantes da literatura universal, mas é também um libelo contra o totalitarismo, um grito desesperado em defesa da liberdade perante um mundo que acabara de atravessar uma guerra de incontornável dimensão ideológica. Todavia, nos últimos anos, uma pergunta faz-se cada vez mais necessária para os que se debruçam sobre a obra de George Orwell: seria este autor um escritor e militante anticomunista e sua defesa da liberdade pode ser confundida com a defesa do capitalismo?

Se acompanharmos sobre o que personalidades e setores da extrema direita mundial dizem sobre o autor de 1984, podemos imaginar que Orwell era um ferrenho anticomunista e não apenas um crítico do stalinismo, como seus estudiosos supõem. Escrevendo em seu Twitter na última semana, o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, evocou o espírito de Orwell para exorcizar o comunismo e os comunistas que o atormentam: “Comunas MENTIROSOS! #1984IsHere. Orwell lutou como voluntário pelos ANARQUISTAS, que combatiam fascistas, porém, foram traídos pelos COMUNISTAS. Ele escapou (fugiu) e escreveu obras denunciando a praga do totalitarismo nazista e, principalmente, do COMUNISTA. LEIAM”, vituperou o ex-ministro de Bolsonaro, conhecido pela agressividade e, digamos, pelo pouco domínio da língua portuguesa.

Não é de hoje que autores liberais, conservadores, extremistas de direita e fascistas usam da obra de Orwell para criticarem o “comunismo”. Nos anos 1950, no auge da Guerra Fria e da política macarthista que varreu a indústria cultural norte-americana pela síndrome persecutória e conspiracionista de veio anticomunista, autores como Hannah Arendt, e o seu As origens do totalitarismo e Carl Joachim Friedrich e Zbigniew Brzezisnki, com a obra Totalitarian dictatorship and autocracy são usados para confirmar que o conceito de “totalitarismo” seria adequado para igualar o genocida regime nazista, então derrotado na guerra, ao não menos brutal regime stalinista, que sendo parte da aliança vitoriosa no conflito bélico mundial, era, agora, motivo de preocupações das nações ocidentais. Com efeito, abolindo-se completamente as substanciais diferenças entre os regimes nazista e stalinista e suas especificidades históricas, além do fato de que tinham sido inimigos ferozes e antagonistas na própria guerra, em nome da assunção de uma perspectiva de tornar igual o diferente, a partir da identificação do nível de violência política que tais regimes dispenderam contra seus próprios povos e todo aquele que fosse tido como inimigo, o conceito de totalitarismo serviu muito bem aos propósitos ideológicos da literatura anticomunista de boa parte do século XX.

Por certo que o celebrado romance de Orwell, assim como a fábula que publicou em 1945 intitulada A revolução dos bichos (Animal farm), não deixa de ser uma crítica acerba ao stalinismo. Todavia, tanto George Orwell reivindicou sempre uma perspectiva socialista e de esquerda, com razoável identidade com o trotskismo, quanto o conceito de “totalitarismo”, surgido nos anos 1950 e retomado por autores neoconservadores a partir da queda do Muro de Berlim, tem pouca operacionalidade histórica. Ou seja: o conceito de totalitarismo na forma suposta por personalidades da extrema direita que enxergam qualquer medida regulatória da parte do Estado como um risco às suas liberdades, entenda-se por liberdade, neste caso, a liberdade de dispender e exercitar o ódio contra grupos políticos (negros e negras, LGBTs, mulheres, pessoas com deficiência e militantes de esquerda em geral), não é algo que funcione, a não ser como perigosa ideologia anticomunista, a serviço da extrema direita fascista.

1984 é, contudo, uma obra que deve ser lida, independente do que o leitor busque nas suas páginas. Isso porque se trata de um dos livros mais importantes da literatura universal e também pelo fato de que o livro certamente ajuda a pensar as experiências históricas recentes, além de proporcionar condições para se entender parte do que se passa ao nosso redor, muito especialmente no que tange à emergência de governantes de extrema direita investidos de um potente discurso de guerra cultural, promoção de Fake News e pós-verdade.

Na história, conduzida com maestria por Orwell, o personagem Winston Smith trabalha no setor de registros do Ministério da Verdade de um país imenso chamado Oceânia, mergulhado sob um governo totalitário. A Oceânia está em guerra contra a Eurásia, mas depois estará em guerra contra a Lestásia e em seguida, novamente, contra a Eurásia e uma das atribuições de Smith e de outros funcionários do Miniver (“Miniver” é como a “Novilíngua” – “Novafala” – se refere ao Ministério) é tornar a nova informação como única e perpétua verdade, impedindo que haja registros de qualquer espécie que possam desmentir aquilo que é dito pelo Partido e pelo Grande Irmão (Big Brother), as duas entidades que personificam o poder do Estado. Nesse contexto, enquanto o leitor acompanha de perto a infausta vida de Smith, segue os seus pensamentos e com ele partilha do medo de estar cometendo um “crime de pensamento” (ou “pensamento-crime”), que pode a qualquer momento levá-lo à prisão, já que todas as pessoas são vigiadas pelas teletelas, que estão em todas as partes, uma tensão crescente vai se impondo através de uma narrativa enxuta, sombria e, apesar de tudo, bastante realista.

A vida de Winston Smith, que corre modorrenta e sempre controlada em todos os aspectos, seja no espaço público ou privado, como acontece a todos os membros do Partido (cerca de 10% da população – os outros 90% são chamados de proletários e vivem nas margens de Londres, onde a história se passa), até ele conhecer Júlia e tudo se transformar. Então, Smith passa a contestar com ainda mais vigor os princípios do “duplipensar” (ou “duplipensamento”), que significa que todo indivíduo deve carregar consigo dois pensamentos contraditórios e acreditar em ambos, o que termina permitindo que a “verdade” seja estabelecida em função do que o poder determina, o que se consubstancia na consigna “Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força”.

1984 propõe muitas chaves de leitura e não deixa de trazer questões importantes sobre política, coletivismo, individualidade, liberdade, totalitarismo, identidade, amor, sexo, pudor, delação, traição, família, Estado, guerra, paz, jornalismo, verdade, mentira, justiça, história e memória, de modo que o leitor antenado com as discussões atuais, pode retirar da obra inúmeras lições e insights sobre o mundo que o cerca.

Num dos exemplos das muitas possibilidades trazidas pela obra, basta que se acompanhe as reflexões de Winston Smith sobre a guerra e a informação sobre o assunto emanada pelas agências do Partido, que colocam questões importantes sobre o tema da verdade e sua relação com a história e a memória. Após reescrever a história sobre a guerra em curso (“A Oceânia estava em guerra contra a Eurásia: em consequência, a Oceânia sempre estivera em guerra contra a Eurásia”, ou seja “tudo que fosse verdade agora, fora verdade desde sempre, a vida toda”), e desaparecer com qualquer registro contrário, Smith pensa consigo: “O Partido diz que a Oceânia jamais fora aliada da Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que a Oceânia fora aliada da Eurásia não mais de quatro anos antes. Mas em que local existia esse conhecimento? Apenas em sua própria consciência que, de todo modo, em breve seria aniquilada”. Sabendo que este procedimento do Partido não apenas alterava o passado, mas simplesmente o destruía por completo, como a única forma de verificar a veracidade de um acontecimento estava na própria memória do indivíduo e não em registros que constituíam a prova histórica, o único passado tornado possível era o determinado pelo poder: “se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido – se todos os registros contassem a mesma história -, a mentira tornava-se história e virava verdade. ‘Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado’, rezava o lema do Partido”.

1984 não é exatamente um livro de leitura fácil no sentido de que quem se aventurar em suas páginas deve estar preparado para uma distopia sombria e bastante pessimista. Por conta disso, não recomendaria a obra aos que desejam gozar as férias sem maiores preocupações. Entretanto, para os que se aventurarem pelas páginas intensas de 1984, não seria exagero dizer que estarão mais aptos a enfrentar um ano que promete ser difícil, ainda mais porque todos os movimentos do governo brasileiro nos inspiram analogias com a obra orwelliana.

Não por acaso, devido ao fato de que as democracias liberais parecem cada vez mais ameaçadas por demagogos que investem no discurso fascista, houve, nos últimos anos, um súbito interesse de brasileiros e de muitos povos do mundo pela política, de modo que as obras de George Orwell não apenas têm ganhado novas e cada vez mais bem acabadas edições, como se encontram nas listas das mais vendidas de diversos países, inclusive do Brasil.

Entretanto, para quem não se sentir preparado para enveredar pela leitura do livro de Orwell, mas não quer ficar de fora do debate, uma boa pedida é assistir ao filme de Michael Radford, inspirado na obra orwelliana, lançado em 1984. Há uma outra produção de 1956, também baseada no livro, que nem chega perto em qualidade do filme lançado quase 30 anos depois, mas é mesmo a produção britânica de Michael Radford, que traz John Hurt  como Winston Smith, Suzanna Hamilton  como Julia e Richard Burton como O´Brian (um personagem-chave na história), e que é bastante fiel ao livro, que eu recomendo, porque é uma boa opção para quem não quer ficar fora do debate.

E aí, preparado para enveredar pela descoberta de 1984?

 

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1984 / cinema