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BRASIL

Negacionismo primário e sua positividade contra o negacionismo reacionário

Anita (EUA) e Wanderci Bueno (Brasil)

O texto abaixo teve sua redação iniciada em dezembro de 2020. Desde então, há um crescente esforço do moribundo presidente Trump para colocar sua tropa de choque miliciana nas ruas, agora invadindo o Congresso Nacional, para, uma vez mais, tentar impedir a posse de Joe Biden e seguir sua sanha negacionista e assassina. No Brasil, Bolsonaro segue combatendo o uso de vacinas anti Corona em meio a uma catástrofe que já atingiu 200 mil mortes. Biden implora a Trump para que mande seus adeptos para casa. Até o momento, nenhuma direção tomou a iniciativa de convocar as massas para arrebentar o cerco trumpista e aqui, resmungam e gemem, implorando que Bolsonaro compre e imunize a população contra a Covid.

O capitalismo espasmódico, reage como a besta fera agonizante que, por conta do atraso político-organizativo das massas exploradas e oprimidas, bem como de suas direções traidoras, segue vivendo em sua senilidade, ameaçando arrastar a humanidade para uma profunda barbárie.

No Brasil e nos EUA, tende a crescer a resistência do movimento de massas, mas esbarra em suas direções tradicionais, o que evidencia de modo cabal a necessidade do surgimento de novas organizações que superem o estado atual de coisas e se ergam em partidos independentes da burguesia.

O negacionismo é o espelho do narcisismo reacionário, é o espelho onde se reflete a morbidade que teima em voltar ao passado, como reflexo dos lampejos de uma barbárie que se aproxima ameaçadora e voraz.

O presente texto pretende discutir o negacionismo e a ciência, a negação como repulsa ao capital, o negacionismo como instrumento de manutenção da ordem pela via do autoritarismo e da destruição.

Em outros textos, que em breve publicaremos, abordaremos outros aspectos que julgamos relevantes para um entendimento marxista do tema.

O negacionismo parece ser mais real que a existência e a letalidade do Covid-19

O relatório de 7 de Dezembro da Organização Mundial de Saúde aponta que mais de 66 milhões de pessoas em todo o mundo já foram infectadas pelo vírus Covid-19, aponta ainda que mais de 1 milhão e 500 mil morreram em decorrência de complicações advindas da contaminação com o vírus. No entanto, enquanto a maioria das pessoas conhece ao menos alguém próximo que contraiu o vírus, muitas, mesmo tendo perdido amigos e parentes, ainda duvidam dos números ou da severidade viral.

Enquanto vemos todos os dias campanhas educacionais sobre o uso de máscara, distanciamento físico e social, muitos escolhem não seguir as mínimas orientações e questionam sua necessidade. Enquanto, desde fevereiro de 2020, assistimos vários países envoltos em uma profunda crise no sistema de saúde, por exemplo Itália, Brasil e Bolívia, Equador, acostumamos a ver caixões fechados e abandonados esperando por vagas nos cemitérios em valas comuns, defuntos abandonados nas casas e ruas, caminhões de refrigeração para estocar corpos. Agora, na chamada segunda onda e já antes, vimos aparecer a recusa em aceitar  alguma prevenção com imunizantes. Isso é prática corrente em muitas das rodas de conversas entre diferentes segmentos da sociedade, nas parcelas mais pobres e até mesmo nas mais abastadas. O negacionismo parece ser mais real que a existência e a letalidade do Covid-19.

Explicações superficiais ou até preconceituosas surgem para racionalizar o negacionismo generalizado, por exemplo: ´é a “ignorância do povo”, a força da “fake news”, ou, isso é seguidismo aos presidentes da direita, Bolsonaro e Trump, no caso do Brasil e Estados Unidos. Esta explicações sobre a desconfiança da população na letalidade do vírus, nas vacinas e nos estudos científicos, na indústria farmacêutica, não percebem que essa negação tem bases sólidas na injúria causada repetidas vezes nos corpos e comunidades  da classe trabalhadora “em nome da saúde pública”.

Historicamente a saúde pública tem sido usada como instrumento de opressão, dominação e exploração de classe

O negacionismo reacionário em moda é instrumentalizado por reacionários governos e pretende gerar a estranha expectativa de que a classe trabalhadora deva confiar e colaborar com as organizações que representam setores da sociedade que, no melhor dos casos, sempre a excluiu, e nos pior dos casos, o que é regra, sempre a oprimiu e explorou.

O negacionismo primário existente é o negacionismo decorrente da injúria que a moderna indústria da saúde historicamente causou e continua causando na população mais oprimida. O negacionismo ideológico implementado pelos reacionários governos se eleva por sobre o negacionismo primário e dele se utiliza para esconder o caráter de gerentes de plantão do capital, de deformadores do verdadeiro conhecimento científico. Os governos, juntos com seus sábios e estudiosos, reprodutores da ideologia dos dominadores sobre os dominados, são os reprodutores das formas burguesas de dominação moral, científica e ideológica sobre a maioria da população.

Aqueles que desejam uma mudança radical e portanto revolucionária da sociedade, devem entender as diferenças entre o negacionismo primário e o negacionismo ideológico e reacionário, isso se desejarem ser capazes de se aproximar das amplas massas, conquistar sua simpatia para a edificação da nova sociedade, o socialismo, como negação-superação do modo de produção capitalista.

O objetivo deste texto é o de abrir uma discussão que busque elevar o negacionismo primitivo ao terreno da ciência para esmagar o negacionismo reacionário e ajudar a libertar a humanidade de suas travas pré-historicas.

A indústria da saúde nos EUA

Em janeiro de 2018, a revista americana The  HYPERLINK publicou que pela primeira vez na história o sistema de saúde ultrapassou a manufatura e o varejo, que eram os motores de empregos mais significativos do século 20, se transformando na maior fonte de empregos nos EUA. A indústria da saúde nos EUA cresceu lucrando com os trabalhadores que adoeciam trabalhando em suas indústrias.

Na cidade de Pittsburgh (ainda hoje conhecida como “Steel City – Cidade do Aço”, onde era localizada a Carnegie Steel Company, a maior fabricante de ferro e aço do mundo no final do século 19) não era possível ver a luz do sol. A poluição tomava conta do céu. O pico deste processo ocorreu durante a Segunda Grande Guerra Mundial quando as siderúrgicas operavam 24 horas por dia produzindo equipamentos de guerra.

Na década de 80 do século XX a indústria siderúrgica colapsou. Em 4 anos a população de Pittsburgh caiu pela metade. Os que ficaram na cidade semiabandonada foram as famílias mais pobres, na maioria negras.

Os que ficaram na cidade desindustrializada sofreram de problemas respiratórios, causados pela poluição do ar. Não havia nenhuma criança negra na cidade de Pittsburgh moradora em bairro de alta poluição que não tivesse alto risco de asma (Journal of Asthma, 2020). Também sofriam problemas causados pela má alimentação, diabetes e obesidade, causados por residirem em locais chamados “food desert” (desertos de comida), onde os fast-food eram as opções mais acessíveis e não havia opções de alimentação saudável. Além disso haviam os veteranos que voltavam da guerra com problemas mentais, sem poderem arcar com os custos de tratamentos. A composição desse cenário, causado pelos efeitos colaterais do desenvolvimento do capitalismo, era perfeita para a indústria da saúde obter não apenas mão de obra barata, mas também comercializar seus serviços, obtendo lucros astronômicos.

Nos EUA há apenas saúde privada

Nos EUA as maneiras de se obter acesso à saúde são por meio de empregos vinculados a um plano de saúde. Para o desempregado o plano é subsidiado pelo governo, mas o plano é sempre privado. Como a maioria dos empregos oferecidos não é integral, mas sim subemprego, o empregador não está obrigado a oferecer plano de saúde e outros benefícios. Assim o plano de saúde vira um objeto de barganha a favor do empregador. O plano de saúde subsidiado pelo governo, para desempregados ou subempregados, custa $400 por mês no “marketplace”. Então o melhor caminho ao cuidado à uma pessoa que sofre alguma doença é estar empregado integralmente para ter acesso ao plano de saúde, mas se a doença em questão não permite o trabalho integral, a pessoa é renegada às margens da sociedade com a falência individual e familiar.

O plano privado familiar custa mais de mil dólares por mês. Assim o serviço de saúde beneficia primariamente a si mesmo, as empresas privadas, às custas da classe trabalhadora.

Hoje, em Pittsburgh, a UPMC, que é uma entidade de saúde  “sem fins lucrativos”, com vários hospitais, clínicas e planos de saúde, apesar de não pagar impostos e pagar em média menos de $28 mil dólares por ano à seus trabalhadores, acabou rendendo mais de $8.5 milhões (em 2019) ao CEO Jeffrey Romoff (Pittsburgh NPR News).

No início de 2018, uma trabalhadora do hospital sofreu uma lesão nas costas durante sua jornada de trabalho e até hoje ainda está lutando com cerca de 2 mil dólares em dívidas médicas de UPMC devido a uma visita ao pronto-socorro. Ela disse ao site The Guardian: “Trabalhamos na área da saúde, mas não podemos pagar pelos próprios cuidados de saúde. É ridículo!”. De fato, ⅓ de todo o dinheiro arrecadado no site de campanha de doações GoFundMe é para cobrir despesas médicas. Um estudo demonstrou que 66,5% de todas as falências de pessoas estavam relacionadas a questões médicas – isso por causa dos altos custos com cuidados ou tempo fora do trabalho.

Por esses exemplos e muitos outros, podemos entender os motivos pelos quais as pessoas não confiam nos hospitais, laboratórios, farmacêuticas, e no governo, quando o assunto é saúde. Aliás, por séculos, a indústria da saúde cresceu às custas da saúde dos trabalhadores. A negação e a descrença na pesquisa e ciência tem bases materiais assentadas nas experiências vividas e não apenas em  ideologias, seguidismos messiânicos, ou ignorância atávica, genética, como sugerem análises preconceituosas, pró capital. Esta negação não pode ser confundida com negacionismo.

Um trágico exemplo de pesquisa na área de Saúde nos EUA

Na área de pesquisa, a classe trabalhadora norteamericana, especialmente a população negra, também tem motivos de sobra para desconfiar e negar as intenções de cada orientação, informação ou solicitações vindas das instituições oficiais.

O experimento nocivo com humanos não foi praticado apenas pela Alemanha nazista. Nos EUA existem casos notórios onde a população foi submetida a horrores em nome do avanço da ciência.

Um dos casos mais criminoso e violento foi o relatado no Estudo de HYPERLINK, informando que no estado do Alabama foi realizado, a partir de 1937, um estudo conduzido pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos envolvendo inicialmente 600 homens negros com sífilis. Tal estudo omitiu informações  dos e aos pacientes.

Os pesquisadores disseram aos homens que eles estavam sendo tratados do “sangue ruim”, um termo local usado para descrever várias doenças, incluindo sífilis, anemia e fadiga. Na verdade, eles não receberam tratamento necessário para as doenças. Esses homens foram usados para que os cientistas observassem a progressão da sífilis no corpo humano sem o devido tratamento. Em troca da participação no estudo receberam gratuitamente exames médicos, refeições e ajuda de custo para o sepultamento.

Embora originalmente projetado para durar 6 meses, o estudo durou quase 40 anos, de 1937 a 1972. Durante esse mesmo período, o governo americano injetou sífilis também em prisioneiros na Guatemala (American journal of public health, 2013). A experimentação em pessoas encarceradas também foi uma prática comum. Há exemplos que incluem dar hepatite a pacientes mentais em Connecticut, injetar um vírus de gripe pandêmica em prisioneiros em Maryland e injetar células cancerosas em pessoas com doenças crônicas em um hospital de Nova York (PBS  HYPERLINK).

É importante lembrar que o encarceramento da população negra é uma epidemia de longa data nos EUA, onde 1 em cada 3 homens negros são presos em algum momento de suas vidas (Washington Post, 2013). Foram nas prisões que muitos desses experimentos desumanos aconteceram.

Para as mulheres e imigrantes, o tratamento não é mais humano. Há vários históricos de esterilização forçada da população “indesejada” em vários estados. Entre os anos 30 e 70, aproximadamente um terço das mulheres porto-riquenhas, entre 20 e 49 anos de idade, foram esterilizadas, resultado de programas de controle populacional dos EUA aplicados no território (Louis HYPERLINK). Há também o caso de Los Angeles retratado no filme “No Más Bebés” de esterilização de imigrantes da América Latina na Califórnia. Essa prática não é coisa do passado, os casos mais recentes revelados aconteceram apenas há alguns meses atrás, quando uma enfermeira denunciou que um médico da agência de imigração dos EUA, que atualmente mantém pessoas em jaulas em péssimas condições sanitárias, estava esterilizando mulheres sem consentimento e sem informá-las do procedimento (CNN Brasil).

Desde o início da pandemia do Covid-19, muitas universidades e outras organizações de saúde que participavam da corrida para o desenvolvimento da vacina, iniciaram também medidas com a finalidade de obter a confiança da população para os testes que necessitam ter representatividade para garantir sua efetividade e validação. Algumas medidas buscaram aumentar o número de cientistas negros, outras, implementar as chamadas “CBPR”, sigla para Investigação Participativa Baseada na Comunidade, onde membros influentes das comunidades visadas para teste são convidados para participar de um comitê que acompanha todos os processos da pesquisa. Foram poucos os resultados dessa iniciativa, a adesão aos testes foi baixa entre a população negra. As pessoas continuam tendo uma relação de desconfiança com as investigações em humanos.

O trauma histórico causado ao desumanizar as pessoas mais vulneráveis não só não foi superado, como ainda não cessou de existir. Há muitas dúvidas: “E se esse vírus for mais uma manipulação?”, “E se eu tenho efeitos colaterais com essa vacina, como faço para pagar a conta do hospital?”, “E se mesmo que seja tudo verdade, quem me garante que alguém não está se aproveitando dessa ameaça mortal para me usar para qualquer que seja o motivo?”. Há mais perguntas do que respostas, e ainda assim há muito mais respostas do que reparações ou exemplos que comprovem que a classe trabalhadora pode confiar naqueles que têm acesso à saúde, à pesquisa, e à educação.

E no Brasil? A Revolta da Vacina

A saúde e a autonomia de cada pessoa sobre seus corpos sempre foi motivo para justas lutas contra os poderosos e isso não ocorreu apenas nos EUA.

O primeiro protesto a isso relacionado registrado no Brasil foi em 1904, no Rio de Janeiro, conhecido como a Revolta da Vacina. O objetivo era vacinar contra a varíola, limpar os centros urbanos e preparar o Brasil para a modernização, atrair capitais, valorizar as terras urbanas, atrair imigrantes, técnicos e equipamentos estrangeiros.

A execução da campanha não foi nada educativa. Os técnicos da saúde batiam nas portas das casas das pessoas e juntos com a polícia forçaram todas a tomar a vacina. O resultado foi que, pela primeira vez, a classe trabalhadora se organizou para revidar contra um procedimento invasivo de suas casas e de seus corpos, se enfrentando ao aparato de Estado.

Também o movimento da Reforma Sanitária nasceu no contexto da luta contra a ditadura, no início da década de 1970.

Durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, definiu-se que “Democracia é saúde” e elaborou-se as diretrizes do SUS que foram incluídas na constituição de 1988. Desde então, a população brasileira tem direito ao acesso à vacinação e à saúde pública. O SUS é uma vitória da organização dos setores mais oprimidos da classe trabalhadora, e apesar de todos os avanços e benefícios não consegue oferecer atenção humanizada e de qualidade que possa ser considerada uma humana reparação.

A classe trabalhadora brasileira ainda enfrenta descaso, preconceito e outras injustiças  cada vez que precisa ir aos Postos de Saúde ou ser atendida nas Unidade de Pronto Atendimento, nos Pronto Socorros de emergência, ainda mais quando a doença não é física, mas psicológica, que ainda mal é considerada uma necessidade real, que tanto se agrava em uma sociedade onde o desemprego, a insegurança gerada pelos crimes cometidos pelas polícias e milícias, as epidemias crônicas,  a falta de saneamento básico e moradia, levam as pessoas ao desespero e profundas angústias.

O governo Bolsonaro, além de sua sanha privatista e cortes orçamentários, também nas verbas destinadas à Saúde, acaba de avançar nas medidas de desmantelamento do SUS. Isso afetará diretamente o acesso ao tratamento da saúde mental, ainda muito mal oferecido pelo SUS Afetará diretamente os pobres, desempregados e moradores das periferias e favelas.

Ora, se quem deveria educar a população sobre acesso à saúde ainda não reconhece a saúde mental como uma condição real, como esperar da população aceitar sem questionamentos e desconfiança um novo vírus e medidas para combatê-lo?

Recentemente se pretendeu utilizar a cloroquina  no tratamento da doença, isso quando a maioria esmagadora dos estudiosos e médicos negavam sua eficácia e explicar que pode provocar efeitos colaterais gravíssimos e até mesmo disturbios mentais. Ao lado disso, a compra de equipamentos e construção de hospitais de campanha virou fonte de corrupção e fundos clandestinos para campanhas eleitorais.

O SUS é alvo dos ataques da direita não só porque sua privatização abre um enorme mercado às gigantes indústrias norte-americanas da saúde, mas também porque é um símbolo vivo da luta das classes mais oprimidas contra a burguesia e os generais da ditadura.

Os constantes ataques ao SUS se refletem no cansaço de seus trabalhadores, que transparecem injustamente como descaso para com a população pobre à espera de atendimento. Além do mais, não há representatividade da maioria da população na categoria de profissionais da medicina (pobres e pretos não estudam, muito menos medicina), não há empatia entre a população e os gestores. O atendimento médico é um espaço onde o preconceito e o racismo encontram suas maiores expressões devido à clara relação de poder e submissão entre médicos e pacientes, todos em estado de vulnerabilidade diante do poderoso Estado repressor que se arvora a entrar por todos os poros e porões.

A população resmunga, esperneia e desconfia, por vezes se manifesta com certo primitivismo, mas procura, tateia e busca a sua auto organização, mas esbarra no Estado e seus arremedos de democracia enovelados em processos participativos (instrumentos de cooptação e controle das entidades e movimentos), esbarra nas direções de movimentos e partidos que se rendem à burguesia e ao capital.

Há muito mais razões para a desconfiança nas indústrias farmacêuticas, hospitais e universidades, do que para a confiança em um procedimento que segue invasivo e desumano, sem que a população tenha tido prova do benefício e educada para confiar pela prova e campanhas educativas e democráticas, na eficácia das novas vacinas. Com isso a positiva negação do instituído se torna presa fácil ao negacionismo nefasto.

Não se trata de fazer aqui a defesa das insólitas teorias de conspiração que circulam nas rodas de esquina e grupos de whatsapp, temos de combatê-las, apenas observamos que a desconfiança como negação primitiva tem bases materiais e suas raízes são profundas.

A autonomia e o respeito aos corpos da classe trabalhadora nunca tiveram valor no sistema capitalista. Durante a pandemia, o governo Bolsonaro mandou “abrir a economia”, “passar a boiada”. Ninguém recebeu equipamento de proteção contra o vírus em suas casas, escolas ou locais de trabalho. Não foram realizados testes massivos.

A desconfiança é válida, especialmente quando consideramos os traumas históricos. Os negacionistas se apoiam nos maléficos aspectos dos preconceitos religiosos, nas atitudes dos governos e no atraso educacional da maioria do povo para fazer crescer o rebanho daqueles que entrarão um dia no reino dos céus pelas mãos do senhor.

Trauma e negação

Em uma situação de trauma, um indivíduo aprende a se comportar de maneira a garantir sua proteção, como por exemplo, estar sempre alerta e não confiar em ninguém. Esses comportamentos ficam registrados no cérebro dos sobreviventes de trauma que, mesmo em situações normais, fora de perigo, continuam agindo da mesma maneira. Talvez, do mesmo modo, o trauma histórico coletivo em relação à exploração e dominação dos corpos dos trabalhadores, especialmente os mais oprimidos, mesmo que não esteja claro na consciência de cada indivíduo, em que situação específica esse abuso foi cometido, se expresse na extrema desconfiança das pessoas nas organizações e entidades que, via de regra, os excluíram e oprimiram.

O negacionismo maior é ignorar a nociva relação histórica entre classe trabalhadora e saúde pública e ciência, e esperar colaboração e confiança. Por que deveria um trabalhador confiar em um sistema que nem tentou protegê-lo contra o vírus em seu local de trabalho, nas escolas, nos transportes públicos, não garantiu acesso aos testes ou aos hospitais? Confiança só é estabelecida com tempo e com vivências de respeito e benefício mútuos e isso o capitalismo está diariamente a destruir.

O papel dos marxistas

Apenas uma esquerda revolucionária, abnegada e militante, que de fato compreenda os limites dos movimentos e das lutas em si, que se disponha a dialogar e explicar às massas as origens e limites dos negacionismos, que propicie à vanguarda proletária o instrumental erigido por Marx, pode, se apropriando, ela mesma do marxismo, superar a positividade da negação primitiva e elevar a consciência das massas, de suas parcelas mais avançadas, sacando-as do histórico e nefasto negacionismo manipulado diariamente pela charlatanice dos doutores, filósofos e governos capitalistas.

A positividade progressista da negação contra o negacionismo reacionário

Quantos pobres mortais, dentre toda a população mundial, receberam educação suficiente para que eles mesmos possam  entender e provar que a Terra é arredondada e gira ao redor do Sol? Impossível medir isso. Mas certamente podemos constatar que poucos dos que nos cercam dizem que ao final da tarde, ou ao amanhecer, que a Terra se pôs. Dizem: o Sol nasceu ou o Sol se pôs. Assim se revelam as mortes de Copérnico, Galileu, Newton, para ficarmos fora do terreno da física quântica. Há aqui um conhecimento que nega, por desconhecimento, a ciência. Esse desconhecimento é originado e propagado pela parcela minoritária que domina e controla toda a produção pela posse da propriedade privada dos meios de produção e do vigilante Estado capitalista, suas instituições. Este Estado coloca a seu serviço, produz e reproduz o conhecimento destinado ao controle e reprodução do sistema de produção e dominação. Esta reprodução limita e tolhe o desenvolvimento da ciência, da técnica e das artes, estrangula, adultera e asfixia o pensamento humano, que por força das contradições existentes no sistema, acaba por liberar forças que teimam em romper as cadeias do império do lucro e da propriedade capitalista, mesmo que estas forças, desconheçam as bases do sistema que as domina.

Só com uma mudança radical desse sistema é que se tornará possível uma sociedade fraterna  e humana, onde as artes, a ciência e a técnica serão obra da humanidade em benefício dela mesma. Para tanto se faz necessária a construção de uma aliança universal entre todos os explorados, marginalizados e oprimidos.

 

*O texto reflete a opinião do autor e, não necessariamente, a linha editorial do Esquerda Online

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