Foram sete gols e duas viradas no placar. No entanto, quando o racismo entra em campo, todo o resto torna-se secundário, e assim, a história do Flamengo x Bahia do último domingo (20) torna-se a história de como, mais uma vez, precisamos contra-atacar para não sairmos derrotados pelo racismo.
“Cala boca, negro!” foi o que Gerson, jogador do Flamengo afirma ter ouvido de Juan Pablo “Índio” Ramirez, meio-campo do Bahia. “Você agora é vítima? Isso é malandragem!” foi o que os microfones captaram o treinador Mano Menezes dizer com todas as letras para o mesmo Gerson. Uma cena lamentável, pois nenhuma marcação individual, tão pouco nenhuma bola dividida é capaz de ser tão dura, cruel e implacável quanto a agressão racista.
Mas Gerson não se calou, sua voz driblou quem a queria muda, e com força se fez escutar em todo país: “O ‘cala boca, negro’ é justamente o que não vai mais acontecer […] Não vou ‘calar a minha boca’. A minha luta, a luta dos negros, não vai parar […] Não me calaram na vida, não me calaram em campo e jamais vão diminuir a nossa cor”.
O Flamengo x Bahia, assim como o recente episódio do jogo PSG x Istambul, demonstram, de forma incontornável, que passou da hora do futebol, como esporte que é vitrine para sociedade, dar uma resposta contundente e afirmativa no terreno do combate ao racismo. Os casos são inúmeros no Brasil, na Europa e onde quer que role uma bola nos gramados do mundo. Não começaram no domingo, nem na última temporada, vem de longe e tem raízes profundas.
O racismo na nossa sociedade, especialmente num país com o passado escravocrata como o Brasil, é estrutural. Isso significa, a partir da definição do Silvio de Almeida, que o racismo está entranhado nas estruturas. Nas instituições. Nas relações sociais. No futebol, não seria diferente. Seja nas arquibancadas, ou dentro de campo, o ódio racial tem estado presente.
Não esqueçamos que há apenas décadas atrás, temos registros de jogador negro que usava pó de arroz pra se embranquecer e ser aceito pelo clube. Muita coisa mudou de lá pra cá, e ainda assim, continuamos a assistir casos de racismo no futebol no mundo inteiro. Quase todos jogadores brasileiros já sofreram racismo ao jogar fora, muitos deles inclusive, se descobriram negros assim. Roberto Carlos, Hulk, Daniel Alves, Neymar, Taison, e tantos outros que mesmo estando entre os melhores do mundo, mesmo sendo milionários, foram atingidos pelo gol contra que é o racismo.
É preciso um acerto de contas com a visão conservadora de que dentro de campo vale-tudo, e de que esporte e política não se misturam. Se misturam sim, e muito! Quando um treinador como Mano Menezes relativiza o racismo, questiona e tenta desacreditar uma vítima, a política conservadora está agindo através dele. A herança escravocrata mostra o quão ainda se faz presente. Se ela prevalece, não apenas Gerson perde a voz, mas todos nós negros e negras, todos os incontáveis “Gersons” que gritam todos os dias contra o racismo são silenciados. E quando isso acontece, toda a sociedade é derrotada.
O jogo de domingo, assim como a luta antirracista, não se encerra em 90 minutos. Lances importantes dessa partida ainda estão se dando. Em nota pública a Diretoria do Bahia se posicionou anunciando a demissão do treinador Mano Menezes. Sobre o jogador Ramirez, que nega o ocorrido, o clube disse que apurará os fatos, mas desde já apontou que […] “È indispensável, imprescindível e fundamental que a voz da vítima seja preponderante em casos dessa natureza. Assim, decidiu afastar imediatamente o jogador das atividades da equipe até a conclusão da apuração”
Esse posicionamento da Instituição reflete que a agenda antirracista encontrou espaço num clube que sempre foi de massas, mas que só nos últimos anos se abriu democraticamente para a participação popular. O Bahia agora tem a obrigação e a oportunidade, de fazer exercer na prática os seus discursos de mudança. De se sintonizar de fato com as agendas de combate ao racismo e demais injustiças sociais expressas em diversas campanhas que protagonizou nos últimos anos. Isso porque é na prática que se constrói a ponte necessária entre o discurso de mudança e ação concreta de uma agenda antirracista.
O futebol é o esporte mais popular do mundo. Por isso, faz muita diferença atitudes antirracistas dos jogadores, dos clubes, das Federações e Confederações. Faz muita diferença o Taison se impor contra o racismo. Faz muita diferença os jogadores do PSG e Istanbul saírem de campo após um caso de racismo. Faz muita diferença o Neymar dizer que Vidas Negras importam! E faz muita diferença o posicionamento tomado pela atual direção do Bahia no caso Gerson.
Racistas não passarão! Nos nossos times não pode ter espaço pro racismo sentar. Nem na arquibancada, nem em campo, nem nas cadeiras do banco de reservas. A nossa voz continuará gritando gol, mas gritará ainda mais alto que não admitiremos mais nenhum caso de racismo e nenhuma tentativa de nos silenciar. Por todos os Gersons, não calaremos as nossas bocas jamais!
*respectivamente, Cientista Social e Historiador. Ambos torcedores do Bahia e militantes da Resistência/PSOL.
Comentários