Os focos de epidemias, as covas e os buracos mais infames em que o modo de produção capitalista trancafia nossos trabalhadores noite após noite não são eliminados, mas apenas transferidos para outro lugar! A mesma necessidade econômica que os gerou no primeiro local também os gerará no segundo. E, enquanto existir o modo de produção capitalista, será loucura querer resolver isoladamente a questão da moradia ou qualquer outra questão social que afete o destino dos trabalhadores. A solução está antes na abolição do modo de produção capitalista, na apropriação de todos os meios de vida e trabalho pela própria classe trabalhadora (Engels, 2015, p. 108).
Há duzentos anos, nascia Friedrich Engels, em Barmem, Alemanha. Revolucionário, fundador da Associação Internacional de Trabalhadores e da II Internacional, parceiro intelectual e político de Marx, Engels foi um desbravador teórico em diversas frentes: investigou a natureza, o Estado, a economia burguesa, o direito, a religião, a família, as estratégias militares, a condição das mulheres, a situação das cidades e da reprodução do proletariado industrial em formação na Europa, as lutas anticoloniais, entre tantas outras. Por muitos anos, Engels foi, na divisão de trabalho com Marx, o responsável por traduzir, em livros e materiais jornalísticos, a realidade histórica concreta das categorias gerais da economia capitalista que o Mouro se ocupava em desenvolver.
Sobre as cidades da Europa Ocidental, Engels já tinha publicado décadas antes, com apenas vinte e cinco anos, seu impressionante estudo A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2008), no qual disserta sobre a formação do proletariado em cidades como Manchester e Birmingham. O processo de revolução industrial para ele é combinado, desde esta obra, com a profunda e irremediável transformação dos meios de vida determinada pela urbanização.
Já considerado então este trabalho anterior, passa-se a recuperar aqui o estudo de Engels publicado como Sobre a questão da moradia, uma compilação de três artigos que ele escreveu para o jornal do Partido Operário Social-Democrata alemão Der Volksstaat¸ entre 1872 e 1873. Os artigos servem originalmente para responder às publicações de um adepto da corrente de Pierre-Joseph Proudhon (um médico, Arthur Mülberger), que publica, no mesmo jornal, seu programa de distribuição de propriedades privadas da habitação para os trabalhadores, como forma utópica de solução dos graves problemas de moradia na Alemanha naquele período, ocasionados pela valorização do solo urbano e pela expropriação dos agricultores no campo.
Engels situa a tardia revolução industrial no país, o deslocamento das massas de trabalhadores rurais às cidades, e também a proletarização dos trabalhadores nas indústrias domésticas das áreas rurais, para explicar a constituição do problema endêmico habitacional, que acaba acometendo toda a classe trabalhadora alemã.
Diz Engels na introdução à segunda edição do livro:
No momento em que os trabalhadores afluem em massa, as moradias dos trabalhadores são derrubadas aos montes. O resultado disso é a repentina escassez de moradia para os trabalhadores e a crise do pequeno comércio e da pequena indústria que dependem deles como clientela. […] foi justamente essa escassez aguda de moradia, esse sintoma da Revolução Industrial que ocorria na Alemanha, que provocou naquela época uma enxurrada de ensaios na imprensa sobre a “questão da moradia” e deu ocasião a todo tipo de charlatanice (Engels, 2015, p. 26).
Sobre a questão da moradia expressa a consolidação histórica do socialismo científico como corrente no movimento revolucionário, apoiada na sua crítica ao proudhonismo (1), e, ao mesmo tempo, uma espantosa atualidade crítica sobre o problema habitacional da classe trabalhadora ao redor do mundo – e também as falsas e reeditadas saídas burguesas contemporâneas que surgem dele.
O conjunto dos três textos da investigação de Engels em Sobre a questão da moradia, além das suas conclusões pioneiras, deve ser lembrado em dois aspectos metodológicos, até hoje essenciais para a crítica da produção capitalista do solo urbano e da habitação, em particular.
O primeiro deles tem a ver com o contexto histórico e teórico em que Engels tem estes textos publicados: no mesmo momento, entre 1872 e 1873, é publicada a segunda edição alemã do primeiro volume de O Capital. Engels esperava lançar sua crítica sobre a situação habitacional dos trabalhadores no capitalismo alemão sobretudo como um convite ao conhecimento da obra econômica de Marx, como “porta de entrada” do projeto de crítica da economia política no país.
No posfácio desta mesma edição do primeiro volume de O Capital, Marx comenta justamente como os economistas e intelectuais burgueses em alemão tinham limitações históricas de interpretação, surgidas das próprias das transformações capitalistas no país desde 1848:
Na Alemanha, a economia política continua a ser, até o momento atual, uma ciência estrangeria. […] Esta foi importada da Inglaterra e de França como mercadoria acabada; os professores alemães dessa ciência jamais ultrapassaram a condição de discípulos. Em suas mãos, a expressão teórica de uma realidade estrangeira transformou-se numa coleção de dogmas, que eles interpretavam – quer dizer, distorciam – de acordo com o mundo pequeno-burguês que os circundava (Marx, 2013, p. 84).
O segundo tem a ver com as escolhas de organização e publicação dos textos: Engels decide publicar em conjunto os artigos críticos sobre a solução habitacional em Proudhon (2) (Como Proudhon resolve a questão da moradia) e em Emil Sax (3) (Como a burguesia resolve a questão da moradia), aproximando-os, justamente, na naturalização que ambos fazem da propriedade privada da terra como meio de habitar. Em exercícios distintos, mas igualmente idealistas, sublimam o antagonismo de classe envolto no problema do consumo dessa mercadoria especial que é a habitação.
Ao mesmo tempo em que Engels desenvolve as razões pelas quais, na forma capitalista de reprodução, a mercadoria habitação é deduzida do preço do salário para o incremento do mais-valor, particularmente nos países de industrialização tardia, ele também descortina a ilusão de que o Estado pode resolver a precariedade habitacional, reforçando o caráter do Estado capitalista como protetor dos interesses dos proprietários de capital e da terra contra o proletariado urbano e os agricultores (Engels, 2015, p. 51).
Engels remete à formação histórica da diferença entre o valor e o preço da força de trabalho na Alemanha. A composição agrária do país formou socialmente uma classe de agricultores que viviam em suas pequenas propriedades e organizavam sua própria produção doméstica. O salário dos trabalhadores nas indústrias domésticas que se espalharam nas áreas rurais do país, portanto, teve abatido, na formação histórica do seu preço, o custo da moradia. Com a industrialização na Alemanha,
[…] O preço passou a ser determinado pelo produto da máquina e o salário do trabalhador da indústria doméstica baixou junto com esse preço. Mas o trabalhador tinha de aceitá-lo ou procurar outro trabalho, o que não podia fazer sem se tornar proletário, isto é, sem renunciar à sua casinha, à sua hortinha e à sua rocinha – próprios ou arrendados (Engels, 2015, p. 31).
Há, na revolução industrial alemã, por isso, a formação de um preço salarial que rebaixa os custos de reprodução, ao nivelar o padrão histórico de reprodução dos trabalhadores rurais e urbanos, com os baixos salários na indústria doméstica no campo puxando também para baixo o preço da força de trabalho nas metrópoles alemãs, aumentando o mais-valor apropriado socialmente pelo capital.
Diz Engels que “essa tendência é reforçada porque, também nas cidades, a indústria doméstica mal remunerada tomou o lugar do antigo ofício manual e puxa os salários para baixo, mantendo-os abaixo do nível geral” (p. 33). Acerca de seus adversários na discussão, ele comenta que “Não admira que a grande e a pequena burguesias, que vivem desses descontos anormais do salário e enriquecem com eles sejam entusiastas da indústria rural, dos trabalhadores proprietários de novas indústrias domésticas como único remédio!” (p. 34).
O acesso à terra, que havia sido, até a metade do século XIX, sinônimo de bem-estar na pequena indústria no campo, passa a ser, já sob domínio da grande indústria, fonte de enormes mazelas para o proletariado alemão, que é espoliado pelas transformações produtivas tanto no campo como nas cidades. Todo o seu estudo contrapõe-se à ideia pequeno-burguesa de que os trabalhadores deveriam ter condições de consumo da propriedade da casa ao inteirarem o “valor real” do imóvel por meio das prestações do pagamento de aluguel, situando esta impossibilidade precisamente a partir dos fundamentos econômicos da propriedade da terra e a origem do seu preço.
Frequentemente, o que se extrai de Sobre a questão da moradia é a conclusão de que o problema da moradia só será resolvido na superação do capitalismo. De fato, para Engels, o grave problema da habitação não é mera casualidade, mas um imperativo da sociedade burguesa que só poderá ser superado efetivamente por uma nova ordem social. No entanto, perde-se a riqueza da explicação desenvolvida nos artigos, que anunciam justamente o trabalho de crítica de Marx à teoria da renda da terra em Ricardo, por exemplo, que Marx desenvolve na seção VI do terceiro volume de O Capital (Marx, 2017). O estudo da teoria da renda da terra é o que mobiliza originalmente Marx a investigar a diferença entre valor e preço, por exemplo, no caso da renda absoluta da terra, que se constitui como uma forma de capital que não contém valor e que revela a inversão do princípio do valor pelo princípio da propriedade privada na reprodução total do capital.
A apropriação privada da renda da terra é descrita por Engels como uma espécie de “roubo” necessário que captura uma parte da massa de lucros e influencia a formação da sua taxa média. Nas cidades, ele explica que há uma valorização “artificial” de certas localizações urbanas, enquanto as construções nessas localizações, na mão contrária, são desvalorizadas para serem mais facilmente demolidas e essas áreas serem reestruturadas e revalorizadas como violenta substituição espacial da classe trabalhadora pelo capital.
Como exemplo histórico icônico deste movimento de desvalorização-valorização, Engels cita o “método Haussmann”, referindo-se ao principal intelectual e mandante do projeto bonapartista da reestruturação da cidade de Paris nas décadas de 1850 e 1860. Como prefeito do Departamento do Sena durante o governo ditatorial de Luís Bonaparte, Haussmann implementa um plano de alargamento de vias, reescalonamento dos quarteirões e reformas espaciais por toda a cidade que impediam a formação de barricadas e facilitava o trabalho de repressão de artilharia a insurreições populares, como a de 1848. Sem dúvida, a reestruturação de Paris, lançada à “capital da modernidade”, como chama David Harvey (2003), tem implicações no processo revolucionário da Comuna de Paris em 1871, alguns anos depois (Lefebvre, 1965).
Engels, ao estudar o projeto de Haussmann, evidencia como a reestruturação urbana de Paris alavancou uma intensa valorização fundiária e imobiliária que expulsa os trabalhadores das centralidades da cidade. Diz ele, “nessas condições a indústria da construção civil, para a qual as moradias mais caras representam um campo de especulação muito mais atrativo, apenas excepcionalmente construirá moradias para trabalhadores” (p. 40). (4)
O reformismo utópico com que ele debate em seus textos vê a aparência da questão, resolvida de maneira fetichista, equivocadamente com a garantia de acesso à propriedade privada da moradia, por prestações acessíveis e correspondentes ao valor da casa construída. Em contrapartida, como já dito, Engels insiste que a habitação é um dilema original da própria reprodução social capitalista e que o consumo mercantil da habitação não tem qualquer originalidade revolucionária, sendo, ao contrário, a saída que parte da grande burguesia tinha interesse em implementar no país.
Engels antecipou em cem anos os estudos detidos sobre o movimento de valorização do solo urbano realizados por marxistas como Henri Lefebvre, David Harvey e Neil Smith. Enquanto o proudhonismo propõe o fim da classe de proprietários fundiários, convertendo o aluguel de inquilinos em prestações de financiamento habitacional, Engels compreendeu que a propriedade privada imobiliária rege a formação de um “preço artificial”, que não contém apenas o lucro do capitalista que a produz, mas também a renda derivada da propriedade do solo construído.
A intensificação industrial, de um lado, não poderia revolver aos tempos em que os trabalhadores rurais tinham “a casa e uma hortinha”. Ao mesmo tempo, morar significava uma possibilidade cada vez mais restrita ao proletariado urbano. Sendo uma mercadoria especial e inacessível aos assalariados, a proposta burguesa apresentada por Emil Sax de os trabalhadores alçarem a condição de proprietários para também se tornarem rentistas não faz o menor sentido.
Lidos em conjunto por Engels, demonstram como as soluções de natureza burguesa atuam para bloquear qualquer desafio à ordem estabelecida pela propriedade privada da terra. Na mão contrária, expõem como esta ordem atua sempre – e até hoje! – para reificar-se como a única possibilidade de garantia habitacional. Longe de revolucionar as relações “trabalhador versus capitalista” e “inquilino versus proprietário”, a circulação mercantil da moradia se provou, na história do século que se seguiu, fonte de todo tipo de reestruturação e espoliação urbana ao redor do mundo.
Especialmente nesta atual fase da acumulação capitalista, que encontra no mercado fundiário e imobiliário urbano uma saída para sua decadência histórica, desmistificar a criação das soluções capitalistas para a “escassez” de moradia passa por integrar este problema às categorias da crítica da economia política (salário, lucro e renda). Passa também por assumir, como Engels, que as disputas pela terra urbana são constitutivas da luta de classes, da luta dos proprietários de terra e do capital contra a garantia dos meios de vida dos trabalhadores, que seguem sendo aniquilados com escavadeiras, bolas de demolição e repressão policial. Retomar o estudo do revolucionário bicentenário nunca foi tão urgente.
*Mestre e Doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
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