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Boulos e o futuro da esquerda

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A vitória política espetacular que foi o desempenho da candidatura do PSol Boulos/Erundina no primeiro turno não poderia deixar de provocar polêmica na esquerda. Ainda não sabemos o resultado das eleições de segundo turno*. Mas como acontece quando estamos diante de mudanças que são, dialeticamente, um salto de qualidade existem aqueles que a subestimam, e os que a sobrevalorizam.

Boulos pode ou não ser o próximo prefeito de São Paulo. Mas já se transformou em referência de imensa estatura nacional de toda a esquerda. Quem na esquerda subestimou Boulos errou, e deveria ter a honestidade de admiti-lo. Quem subestimou a importância da integração dos quadros do MTST no Psol errou, e poderia ter a elegância de admiti-lo. Esta campanha mudou, completamente, a relação política de forças dentro da esquerda entre o PSol, o PT e o PCdoB. O Psol está muito mais forte.

Transformações desta dimensão despertam entusiasmos sinceros, e atraem, necessariamente, adesões de última hora, mas o apoio da maioria da classe trabalhadora organizada na maior cidade do país é um fato histórico. Boulos é agora gigante. Esta nova estatura não poderia deixar de produzir contrariedade, despertar rancor e inflamar discussões.

A primeira pergunta inescapável que devemos responder, em linguagem marxista, é se este fenômeno é progressivo ou regressivo. É, evidentemente, muito progressivo, e nos ajuda a ter uma melhor perspectiva sobre o futuro da esquerda.

O PT passou por variadas crises ao longo de sua história, e há muitas décadas se discute na esquerda radical quais as estratégias para a superação dos seus limites. Três foram as mais importantes: reformar o PT, construir um partido revolucionário homogêneo, ou um partido amplo como o PSol, acolhedor de correntes reformistas radicais, revolucionárias, e intermediárias.

Uma parcela influente das correntes de inspiração marxista apostou que a reorganização passaria pelo interior do PT. Variadas tendências da esquerda do PT se empenharam em um reposicionamento do partido, talvez com esperança no papel de Lula.

Outros arriscaram que a experiência com os limites dos governos Lula e Dilma Rousseff seria mais acelerada, e permitiria o fortalecimento de um partido revolucionário independente e sem mediações: uma importação para o Brasil do modelo idealizado na esquerda argentina de autoconstrução, igualando o lulismo ao peronismo.

Essas estratégias obedeciam a projetos que não deram certo. Não avançou uma reestruturação interna do PT com um balanço crítico de sua história, e o necessário deslocamento interno do núcleo da corrente majoritária. Ao contrário, um pequeno aparelho de um clã local conquistou a maioria no PT da maior cidade do país. A tentativa de uma organização revolucionária independente se esgotou em um isolamento que se revelou um beco sectário sem saída.

Nunca foi correta a simplificação do PSol como um partido “cópia”, “imitação” ou “repetição” do PT com a desvantagem de não possuir implantação proletária. Desde o início, o PSol teve audiência minoritária, mas legítima em setores organizados da classe trabalhadora, com peso no funcionalismo público e na juventude.

O PSol não é um partido marxista revolucionário de combate, mas tampouco é uma sombra do PT. Ele corresponde à experiência de construção de partidos amplos, acolhendo no seu interior correntes de distintas tradições socialistas com um programa anticapitalista, indo além das fórmulas do programa democrático-popular do V encontro do PT de 1987, ainda que com margens de indefinição estratégica.

O PSol surge como uma ruptura pela esquerda do PT quando, depois da posse do governo Lula, fica clara a opção estratégica pela preservação do tripé macroeconômico de busca de um superávit fiscal, câmbio flutuante e metas de inflação através de taxas de juros elevadas na gestão Palocci. É impulsionado pelo movimento real da resistência à reforma da previdência de 2003. Vive um processo lento, mas contínuo de fortalecimento como oposição de esquerda até 2014. Mas passa a ser uma referência observada por milhões desde 2016, como ficou claro no Rio de Janeiro. Agora deu um salto de qualidade.

Boulos não é uma construção midiática nas redes sociais. Não foi um marketing artificial, nem uma publicidade genial que permitiu derrotar Russomano e Márcio França, ou superar Jilmar Tatto. O sucesso da campanha foi muito maior que a inteligente construção de pontes com a juventude, ou a aproximação sincera com o mundo da cultura e das artes. Boulos e Erundina não chegaram ao segundo turno porque tiveram as melhores canções, ou fizeram os vídeos e memes mais divertidos. Tudo isso conta, mas não explica.

A vitória eleitoral do primeiro turno foi autêntica porque tinha uma raiz verdadeira na experiência prática que foi possível na militância com uma linha política. O fenômeno repousa, essencialmente, no apoio à candidatura que melhor representava a resistência a Bolsonaro, e a necessidade de posicionar a esquerda na liderança da oposição contra Dória e sua marionete, Bruno Covas.

Entre os que a subestimam estão, previsivelmente, as críticas mais severas. “Boulos é somente um clone de Lula com audiência, porque é mais jovem”. Ou o oposto, “Boulos não esteve presente como deveria na luta contra o golpe do impeachment em 2016”. “A candidatura Boulos não expressa a independência de classe”. “A candidatura Boulos é mais moderada e reformista que o próprio PT”. O programa da candidatura Boulos “não merece ser julgada sequer como reformista”.

A esmagadora maioria do ativismo sabe que essas críticas são ou injustas, ou exageradas, ou delirantes. Dizem mais sobre quem as faz do que sobre o que foi a campanha Boulos/Erundina. Claro que nada no mundo é perfeito. Ninguém é infalível.

A verdade é que Boulos nunca foi lulista. A verdade é que soube se reposicionar de forma exemplar quando chegou a hora de medir forças contra o golpe institucional que interrompeu os governos liderados pelo PT e não hesitou em defender Lula diante da perseguição da Lava-Jato. A acusação de que Guilherme seria uma ameaça de transformar o PSol em “um puxadinho do PT” foi uma maldade sectária, nunca uma crítica política honesta.

Boulos se associou até à construção exploratória do projeto da Conlutas como um polo de oposição social de esquerda que reunia sindicatos e movimentos populares, durante os governos Lula. E depois rompeu com a CSP/Conlutas quando o projeto se estreitou, de forma sectária, pelo afã do PStu de o controlar, exclusivamente, sacrificando o esforço de uma sincera frente única.

Boulos ganhou autoridade depois das jornadas de junho de 2013 porque, justamente, manteve independência do governo liderado pelo PT. Boulos foi o porta-voz do MTST e nessa condição liderou mobilizações de massas contra o governo Dilma Rousseff, quando a imensa maioria da esquerda estava integrada à gestão do PT. Mas depois, nas mobilizações contra o impeachment, esteve lealmente ao lado do que se opuseram ao golpe e na primeira linha do Fora Temer.

A verdade é que o espaço da esquerda ficou aberto em São Paulo para que o PSol pudesse ocupá-lo. Poderia não ter sido assim, porque as expectativas com o reformismo não se esgotaram, foram interrompidas. Estamos em uma etapa defensiva e viemos de derrotas. O PT poderia ter fechado este espaço com outra candidatura, e com outro programa, diferente da reivindicação teimosa do que fizeram dez anos atrás, uma linha pouco atrativa para a juventude mais combativa. E o PSol poderia ter errado, também, de candidatura e programa.

Ainda assim, em escala nacional, o PT conseguiu colocar quinze candidatos no segundo turno das cinquenta cidades com mais duzentos mil eleitores, uma recuperação em relação a 2016 que sinaliza manutenção de posições com viés de recuperação, em especial pelo lugar de Marília Arraes no Recife. O PT permanece como o principal partido eleitoral com influência majoritária na classe trabalhadora. E o PT tem Lula, e isso faz muita diferença.  Permanece um aliado prioritário para a luta contra Bolsonaro.

Os partidos de esquerda participam de eleições com tudo que este tipo de luta política exige, mas são instrumentos de luta pelo poder muito mais complexos. Não são, evidentemente, as únicas formas coletivas de auto-organização dos trabalhadores e dos oprimidos. Existem outras tão importantes, mas que ocupam outro lugar. Os sindicatos, as associações, os movimentos.

Os partidos são a expressão de um processo de experiência histórica da classe trabalhadora. Candidaturas solo são possíveis para mandatos parlamentares. Mas partidos são indispensáveis, porque quem luta sozinho não vai muito longe, e na luta pelo poder a margem de improviso é pequena. Quando uma ferramenta envelhece ela deixa de ter a mesma utilidade. Mas, enquanto não há outra melhor os trabalhadores mais conscientes não a jogam fora. Melhor mal organizado do que desorganizado. A mudança da direção é um processo histórico que consome décadas de experiência.

 O PCdoB é um dos herdeiros do velho partidão. Não é o único, mas é o maior. Nasceu de uma velha ruptura, portanto, a rigor, não é a organização que manteve o fio de continuidade, mas é o mais representativo dessa tradição. O PCB perdeu o lugar que ocupava na esquerda brasileira, durante mais de quatro décadas, e nunca mais a recuperou, porque sua direção foi incapaz de se posicionar como um instrumento útil para a derrubada da ditadura. A decisão de apoiar o MDB o deixou atrelado aos limites da burguesia liberal. O PCdB prioriza na luta contra Bolsonaro a Frente Ampla com Ciro Gomes, e até com Rodrigo Maia. Não retirou as melhores lições do seu passado.

O PT se transformou no maior partido independente da classe trabalhadora, e ocupou o lugar que tinha sido do PCB porque soube ser útil para a luta final contra a ditadura militar. Defendeu a independência de classe, manteve a iniciativa política e, ao mesmo tempo, foi capaz de cumprir um papel na unidade de ação na campanha das Diretas Já. Não hesitou em liderar a a oposição de classe ao governo Sarney, e aos governo de FHC. Mas não passou incólume a prova da história. Não retirou lições de seus treze anos no poder.

Agora o Psol disputa o lugar com o PT, e obteve uma vitória porque soube ser o partido mais aguerrido e coerente desde as jornadas de junho até à resistência a Bolsonaro. Não abraçou nem a linha quietista de esperar para ver, nem a linha aventureira da ofensiva permanente. Defendeu a necessidade da Frente Única de Esquerda. O partido de Marielle Franco é o partido das lutas do movimento feminista e da nova geração do movimento negro, da juventude estudantil e dos movimentos LGBT’s, da luta pela moradia popular e da descriminalização da maconha, dos ambientalistas e da defesa dos direitos humanos, da luta antifascista e das bandeiras anticapitalistas. O PSol é o partido de Boulos, e ele abriu um caminho.

 

*Texto produzido antes do resultado eleitoral.