Na última semana de novembro o nosso país ultrapassou a triste marca de 170 mil mortos pela Covid-19 e mais de 6 milhões e duzentos mil casos da doença, apresentando um aumento significativo de contaminados na maioria dos estados da federação durante a segunda quinzena deste mês. A resposta de alguns governos, diante do cenário de agravamento da pandemia, tem sido promover a aglomeração de pessoas nas ruas, nos transportes públicos superlotados e em espaços fechados que não têm a menor possibilidade de garantir os protocolos sanitários. Neste caso, incluem-se as escolas públicas, estas que atendem a 82% da população brasileira em idade escolar e vêm sendo utilizadas como mais um instrumento para promover o genocídio da população.
Diversos municípios brasileiros têm promovido a reabertura das escolas públicas, ainda que suas cidades enfrentem um significativo aumento de contaminações e mortes pela Covid-19. Este foi o caso do Rio de Janeiro, onde o prefeito promoveu a abertura das instituições escolares num momento em que a cidade volta a apresentar a falta de leitos de UTI. Uma situação bastante simbólica e que revela, neste mês eleitoral, a expressão mais perversa da necropolítica. Com esta medida claramente eleitoreira, tomada no desespero do segundo turno da eleição, o resultado foi imediato: duas semanas depois de reabertas, a propagação de casos de Covid-19 disparou nas escolas, tendo mais de 270 unidades com casos confirmados, segundo o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ).
Isso evidencia que voltar às aulas presenciais no atual contexto da pandemia, sem testagem em massa, sem aferição de temperatura, sem equipamentos de proteção individual (EPI) e sem as mínimas condições infra-estruturais de funcionamento, é algo totalmente inviável. Reabrir as instituições escolares neste momento significa admitir que a vida e a saúde dos alunos e de suas famílias não importam, é tratá-los como ratos de laboratório. Quantos vão sobreviver a esse experimento? Será que mais uma vez, os docentes, tão massacrados pela precarização do trabalho, também terão que colocar a própria vida e dos seus familiares em risco para “salvar” a educação? E os demais profissionais da educação, porteiros, supervisores, inspetores, secretários, merendeiras, serventes, em sua ampla maioria terceirizados, serão submetidos a mais isso também? É preciso realmente colocar os trabalhadores, os estudantes e as famílias em tamanha exposição?
A escola não deve ser um local de insegurança, não deve ser um espaço em que as crianças convivam com medo e traumatizadas; com adolescentes robotizados e profissionais adoecidos e sobrecarregados. Nós podemos evitar essa tragédia e esse trauma na vida de todos e todas. As escolas só devem ser abertas com a pandemia controlada. Só com segurança.
Países asiáticos e da Oceania só reabriram as escolas após lograrem êxito e controlarem a disseminação do novo coronavírus. Foi o caso da China, do Japão e do Vietnã. Em outras localidades, onde não houve o controle definitivo da doença, as contaminações têm aumentado com a reabertura das escolas, é o que demonstram algumas experiências pelo mundo. Mesmo em países onde os governos foram guiados por orientações científicas, a partir de rigorosos protocolos sanitários, houve a necessidade de fechamentos de algumas instituições. Mesmo com aulas em espaços abertos, medidas de desinfecção, reduzido quantitativo de alunos por turma, distanciamento entre os estudantes e destes com os trabalhadores, monitoramento e ampla testagem; não foi possível impedir a propagação do vírus em diversas instituições. Ou seja, ainda que se tenham protocolos propícios, diversas localidades têm fechado escolas novamente após o surto de novos casos de contaminação, vide o caso mais recente, da maior cidade dos Estados Unidos, Nova Iorque, que após reabrir as escolas em setembro, oito semanas depois voltou a fechá-las porque os casos quintuplicaram.
Na atual segunda onda na Europa, países como a França, a Alemanha e a Escócia têm mantido as escolas em funcionamento, optando por um novo lockdown em diversos setores da economia, mas preservando as escolas e creches abertas. Países latino-americanos, que tem um controle significativamente maior da pandemia, reabriram parcialmente, é o caso do Uruguai e de Cuba. Também poderíamos citar outros exemplos de aberturas parciais pelo globo.
A questão é que a nossa realidade educacional, infelizmente, é bem diferente das nações citadas. As condições estruturais das nossas instituições escolares não permitem uma retomada segura. E isso só pode dizer quem já pisou numa sala de aula em uma escola pública brasileira, principalmente as de periferia, com salas de aula superlotadas, condições arquitetônicas que se assemelham a presídios, ausência de janelas, pouca ventilação e muitas sem espaços ao ar livre. Segundo o último Censo escolar, 50% das escolas públicas brasileiras não têm saneamento básico, 26% não têm água encanada e 16% não têm banheiro no prédio. Muitos colégios que não têm sequer sabão nos banheiros e por vezes existe um único bebedouro para todos os alunos. Isso antes da pandemia. Se já fica difícil imaginar qualquer tipo de funcionamento em tempos normais, na situação atual torna-se impossível.
Entretanto, são muitos interesses que pautam a urgência em reabrir as escolas, afinal a educação pública é uma “atividade essencial” para o capital. Organismos internacionais como a ONU, o Banco Mundial, a Unesco e a Unicef, que desde o seu surgimento apresentam a agenda do capital para a educação dos países latino-americanos e caribenhos, passaram nos últimos meses a relativizar a importância de manterem as escolas fechadas. O discurso da prevenção à vida deu lugar à necessidade de um retorno célere porque segundo eles os danos são maiores com as escolas fechadas. E não poderia ser diferente. Escolas fechadas atrapalham o andamento do projeto de valorização do capital. Numa visão econômica de educação, as instituições escolares são vistas como um depósito de crianças e jovens; elas têm a função de contribuir para o controle social oferecendo uma formação esvaziada, voltada para o mercado, que se limite a reconhecer a necessidade de desenvolver as competências e habilidades e assim cumprir os índices e as metas dos rankings internacionais.
Além disso, a pressão pela reabertura acontece porque na sociedade em que vivemos a escola pública se tornou muito mais do que um local de transmissão de conteúdos, ela contribui de forma direta para regular a força de trabalho, liberando os pais, principalmente as mães, para exercerem suas funções laborais. No entanto, com a gravidade da crise atual, a instituição escolar não pode, tampouco deve, arcar sozinha com essa responsabilidade. É preciso considerar um cenário que envolva ações e políticas de Estado que protejam efetivamente a população.
Com a previsão do fim do auxílio emergencial, os governos vão empurrar os mais vulneráveis para as escolas a qualquer custo. Muitas famílias não terão opção e precisarão enviar os filhos à escola para que eles tenham ao menos uma alimentação diária e elas possam buscar formas de sobrevivência por meio de empregos informais. Os governantes se aproveitam dessa situação de calamidade para se eximir da responsabilidade da garantia de um retorno seguro das aulas presenciais, induzindo as famílias a assinarem termos de responsabilização caso seus filhos sejam contaminados, transferindo assim a responsabilidade do poder público para o âmbito individual.
É fundamental um compromisso do Estado no sentido de garantir as condições necessárias para que a abertura futura das escolas aconteça de forma segura. É preciso analisar com seriedade a situação epidemiológica e oferecer uma estrutura física adequada para o retorno, pois mesmo que tenhamos uma campanha de vacinação em curso, que poderá ser iniciada no primeiro semestre de 2021, medidas de distanciamento ainda serão necessárias por algum tempo. As medidas para o retorno abarcam a construção de mais instituições escolares, com um efetivo plano de obras públicas que também possa gerar empregos; modificações nos prédios; existência de áreas livres para a realização de atividades pedagógicas; ventilação adequada das salas de aula; espaçamento entre as carteiras; saneamento básico; ambientes propícios para o consumo de refeições, água encanada e potável; fornecimento de itens necessários para atendimento às normas de segurança, tais como sabonetes líquidos, álcool-gel, desinfetantes, termômetros; EPI para todos os profissionais da educação e máscaras para todos os estudantes.
É preciso uma preparação efetiva para o retorno presencial. A volta às aulas será muito mais que reposição de conteúdos atrasados. Faz-se necessário a realização de concursos e convocação de profissionais aprovados, pois será indispensável a presença de mais professores e mais funcionários de apoio que deem conta da nova e complexa realidade. Os docentes não podem ser tratados, mais uma vez, como profissionais polivalentes, sendo obrigados a lidar com essa nova situação que se apresenta. É preciso que o poder público desenvolva políticas multidisciplinares, conjugando educação, assistência social, saúde física e mental que possam combater a evasão e o abandono escolar.
É necessário um programa de saúde mental em larga escala nas escolas quando elas forem reabertas. Os estudantes virão de um processo difícil de isolamento, de perdas, doenças e desemprego na família, com fortes impactos físicos, emocionais e cognitivos gerados durante a suspensão das aulas. Por isso é fundamental que seja cumprida a Lei 13.935/2019 que prevê a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de educação básica com a realização imediata de concursos para contratação desses profissionais.
Essas iniciativas já deveriam ter sido iniciadas no ano de 2020, mas tais propostas não foram sequer apresentadas pelo poder público. Não houve nenhum tipo de investimento do governo federal nesse sentido e não houve movimentação dos governos estaduais e municipais que pudesse incentivar esse tipo de ação. Foram pouquíssimos candidatos às eleições municipais que pautaram essas questões.
Todas essas condições apresentadas exigem, obrigatoriamente, um investimento urgente na educação pública por parte dos governos, que deve ser desde já considerado e imediatamente planejado em conjunto com o parlamento, instituições científicas, secretarias de educação, dentre outros, a fim de que seja possível viabilizar os ajustes da estrutura física e o redimensionamento do quadro de pessoal para 2021. Além de tudo isso, a decisão e o planejamento sobre a reabertura de escolas não podem ser unilaterais. É preciso diálogo com os profissionais da educação, com os sindicatos, com responsáveis e com os estudantes.
O momento pandêmico tem servido para colocar em posição de destaque uma série de problemas enfrentados cotidianamente nas escolas, uma vez que todos eles se constituem em elementos impeditivos de uma retomada do ensino presencial enquanto não houver o controle ou a cura atestada para a Covid-19. Com o total descontrole da pandemia no nosso país, não é possível defender medidas de flexibilização sem que exista ao menos um plano de imunização da população em curso. No Brasil, a segurança e a redução da contaminação só serão possíveis com a vacinação da população. Por enquanto nos resta proteger a vida dos estudantes e profissionais da educação e seguir na luta por melhores condições para o retorno presencial.
Existem escalas e prioridades nas lutas. Hoje defender a vida antecede qualquer outra medida. Isso não significa que devamos ficar paralisados até o retorno presencial ou até o fim da pandemia, muito menos que deixaremos de denunciar o descaso com a educação e as alternativas farsantes apresentadas pelo poder público neste ano de 2020. Por meio da experiência com formas de ensino remoto, tivemos a comprovação que ele é terrível para os filhos da classe trabalhadora, pois oferece uma formação minimalista e esvaziada de sentidos, promove um aprofundamento das desigualdades e precariza o trabalho dos professores de uma forma nunca antes vista na nossa história. Por isso, precisamos pensar em condições de retorno que nos façam escapar dessas armadilhas.
Hoje é preciso que o poder público garanta os direitos dos estudantes e possibilite aos professores e demais profissionais da educação que sigam trabalhando de suas casas, sem redução de salários e com condições de trabalho dignas. Ao mesmo tempo, cabe à classe trabalhadora da educação construir formas efetivas de organização e enfrentamento que garantam um retorno presencial seguro e impeçam que o ensino remoto, e sua faceta híbrida, tornem-se a saída da burguesia diante das impossibilidades estruturais das escolas e se perpetuem como a nova realidade da educação brasileira da nova década em diante.
* Professora da Uerj, Doutora em Educação, integrante do COLEMARX-UFRJ
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