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MUNDO

Sobre o resultado das eleições nos EUA e as perspectivas para o próximo período

André Freire, Lisboa (Portugal)

1. A derrota de Trump nas eleições presidenciais dos EUA é uma vitória dos explorados e oprimidos. A comemoração nas ruas de algumas das principais cidades estadunidenses e o ânimo dos ativistas em várias partes do mundo, após o anúncio do resultado, confirmam de forma inequívoca esta caracterização. Devido a forte polarização política, nos últimos meses, entre o governo Trump e o Movimento Vidas Negras Importam, o resultados das eleições fortalecem sobretudo os movimentos antirracistas e sociais nos EUA. De fato, se revela como equivocada a afirmação, de parte da esquerda, que era indiferente o resultado destas eleições para os interesses da classe trabalhadora.

2. O resultado das eleições presidenciais nos EUA, especialmente devido a toda a atenção com que ela foi acompanhada em todo mundo, representa uma importante derrota para os movimentos autoritários de extrema direita ao nível internacional. Afinal, a eleição de Trump, em 2016, foi um alento importante e um impulso para estes movimentos. Evidentemente, devemos evitar uma visão unilateral, que enxergue na derrota de Trump nestas eleições o desaparecimento do fenômeno da extrema direita, ou que o combate prioritário a estas alternativas ultrarreacionárias tenha perdido importância no próximo período.

3. Outros fatos já vinham demonstrando um enfraquecimento relativo destes movimentos de extrema direita. Por exemplo, a derrota dos golpistas nas recentes eleições da Bolívia, o resultado acachapante a favor de uma nova Constituição no referendo no Chile, a derrota até o momento da oposição golpista na Venezuela, entre outros elementos. Entretanto, os movimentos de extrema direita seguem demonstrando também sua resiliência na situação politica atual, seja pela grande votação obtida por Trump, apesar da derrota; o fato de Bolsonaro se manter ainda com uma alta popularidade e ser ainda um inimigo a ser abatido; a AFD e a Liga são as principais oposições aos governos na Alemanha e na Itália, respectivamente; Modi segue governando a Índia sem maiores percalços; assistimos, em Portugal, o fortalecimento relativo do Chega; apesar de algumas derrotas políticas, o Vox ainda mantém um peso significativo no Estado Espanhol; a reeleição do governo polonês, mesmo que enfrentando agora fortes protestos pelo direito ao aborto; e, também na Europa, neste momento, assistimos manifestações de negacionistas da pandemia dirigidas ou apoiadas pela extrema direita; para ficar em alguns exemplos mais conhecidos.

4. O enfraquecimento relativo da extrema direita vem fortalecendo, num primeiro momento, alternativas ligadas a direita liberal mais tradicional, como o Partido Democrata nos EUA, os setores pró-Troika no Continente Europeu e os partidos da velha direita no Brasil. As únicas exceções, até agora, foram: o retorno do Mas ao governo na Bolívia e a manutenção no poder do chavismo na Venezuela. Precisamos acompanhar de perto quem vai se fortalecer na eleição constituinte do Chile e nas eleições do Peru, indicadas para o primeiro semestre de 2021.

5. O grande perigo representado pelo novo governo democrata nos EUA é a política de cooptação dos movimentos antirracistas e sociais, e da esquerda em geral. Já estamos assistindo a empolgação com a derrota de Trump sendo transformada, principalmente pela grande mídia e parte da esquerda, em apoio esfuziante ao governo de Joe Biden e Kamala Harris. Enfrentar a grande pressão a favor da conciliação de classes, diante do perigo da extrema direita, com a defesa de uma política independente e de classe, segue sendo uma das chaves do programa marxista revolucionário no período atual. Neste sentido, são muito positivos os posicionamentos críticos ao governo Biden-Harris vindo de intelectuais e de setores da esquerda dos EUA. Este governo terá um compromisso com as grandes empresas e bancos, que majoritariamente apoiaram a chapa do Partido Democrata, e manterá o conteúdo imperialista da política externa estadunidense. Ou seja, se manterão os ataques a soberania da Venezuela, do Irã e o apoio a Israle contra a heroica luta do Povo Palestino;

6. A vitória do Partido Democrata tende a reestabelecer uma harmonia maior entre os imperialismos estadunidense e europeu. Harmonia esta que estava bem abalada durante o governo Trump. Mas, apesar da defesa pública do multilateralismo, pelo novo governo dos EUA, não haverá uma reversão do quadro mais geral de disputas geopolíticas e comerciais, especialmente com a China, e também com a Rússia. Estas tensões podem até diminuir sua temperatura, mas seguirão existindo, pois são aspectos mais estruturais do sistema de estados na realidade política e econômico atual.

7. Outro aspecto fundamental da conjuntura é a nova intensificação da Pandemia da Covid-19 (a chamada segunda onda), com epicentros evidentes na Europa e no próprio EUA. Existe um forte crescimento de novas infecções, combinada com um aumento expressivo também no número de mortes, mesmo em comparação ao primeiro semestre. A nova onda do contágio pandêmico afasta, por hora, a hipótese de uma rápida recuperação da economia mundial, trazendo consequências sociais ainda mais terríveis. O crescimento do desemprego, do subemprego, da desigualdade social e da miséria tende a se intensificar, pelo menos no próximo ano. Mesmo nas principais economias globais, onde o colchão social ainda é mais abrangente (como na Europa), vemos crescer um “exército” de excluídos, atingindo especialmente os imigrantes, os negros e negras, as mulheres, a juventude e a população LGBTQI. A descoberta de uma vacina realmente eficaz, s realmente se confirme, pode se tornar um elemento atenuante importante para este grave cenário.

8. Os governos, em sua maioria controlados pela direita tradicional, mas também os governos que podemos caracterizar como de conciliação de classes (como o governo espanhol encabeçado pelo Psoe e o Podemos), abandonaram ou atenuaram o discurso da defesa da política de austeridade, diante da gravidade da pandemia. Mas, as medidas adotadas até o momento são totalmente insuficientes para a defesa da vida e dos mínimos direitos sociais da maioria das populações, sobretudo para os setores mais explorados e oprimidos da classe trabalhadora. Este agravamento da crise econômica e social, vai ampliar um quadro de tensões políticas, cada vez mais agudas. Por um lado, os governos seguem com medidas que na essência buscam proteger prioritariamente o grande capital, jogando apenas “migalhas” para a classe trabalhadora; e, por outro lado, o movimento de massas entra em cena, em vários países, para resistir aos ataques e defender seus direitos sociais, democráticos e a própria vida da maioria. Como estamos assistindo hoje, por exemplo, nas mobilizações de rua no Peru.

9. Novamente, cabe realçar o papel de destaque dos setores mais explorados e oprimidos da classe trabalhadora e da juventude (mulheres, negros e negras, LGBTQI´s e imigrantes) nos principais processos de resistência no mundo. Por exemplo, no próprio EUA, com as mobilizações das mulheres contra Trump, logo no início de seu governo; e com o Levante Antirracista, este ano; nas mobilizações na Polônia pelo direito ao aborto, nas mobilizações democráticas na Bielorússia, nas lutas no Chile, entre outros inúmeros exemplos.

10. Com os setores mais oprimidos e explorados da nossa classe à frente, os movimentos de resistência passaram a ofensiva nos EUA, no Chile e na Bolívia, pelo menos. Mas, ainda não há uma alteração geral de correlação de forças que coloque a classe trabalhadora na ofensiva, como uma tendência mundial consolidada. Nesta altura, o que podemos enxergar com mais nitidez é uma ampliação de um cenário marcado por lutas e mobilizações, com resultados distintos de país para país, de região para região. Porém, já não vivemos uma conjuntura internacional onde o principal fator é o fortalecimento da extrema direita e de alternativas neofascistas, mas sim vem crescendo projetos alternativos a estes, mesmo que na sua maioria vindos da direita tradicional.

11. Diante do cenário marcado pelo prosseguimento e aprofundamento da pandemia e da crise econômica, demonstrando mais abertamente a decadência que o capitalismo vem gerando sobre o Planeta e nas condições de vida da maioria; e da combinação do enfraquecimento relativo da extrema direita e o fortalecimento de alternativas políticas burguesas e imperialistas mais tradicionais; devemos ampliar e fortalecer a apresentação de uma saída alternativa e independente de esquerda e da classe trabalhadora. Ampliando a defesa de medidas anticapitalistas bem concretas, que respondam às principais demandas e reivindicações do povo trabalhador, especialmente dos seus setores mais explorados e oprimidos. Neste sentido, cresce a importância da realização de encontros ou fóruns internacionais que articulem a agenda dos movimentos sociais e das organizações de esquerda e socialistas, seja para a luta contra a extrema direita e o neofascismo, seja para a defesa de uma saída anticapitalista e ecosocialista para a crise atual;

12. Portanto, no próximo período, a nossa prioridade deve ser o chamado permanente da frente única das organizações da classe trabalhadora, prioritariamente em defesa da vida e dos direitos sociais. Combinado com o combate às alternativas autoritárias de extrema direita e neofascistas. Em relação ao combate à extrema direita e ao neofascismo, segue sendo válida a tática de unidade de ação democrática, com todos os setores que se coloquem como oposição de fato a estes projetos ultra autoritários, sempre mantendo a defesa independência política da classe trabalhadora e de suas organizações e movimentos;