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O Haiti segue sendo aqui também

Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

Exército brasileiro no Haiti

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

Participei, no dia 12 de novembro, como Diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, do Webimar de lançamento do importante documentário “Agora eu quero gritar” (Right Now I Want to Scream Brasil/Reino Unido, 2020), parte do projeto It Stays With You, que  busca fazer o paralelo entre dois mundos: As comunidades marginalizadas de Cité Soleil, em Porto Principe, Haiti, e as favelas do Rio de janeiro. Trata-se de um trabalho que recomendo todos assistirem, pois dá voz às mães que tiveram seus filhos executados, assassinados pelas  forças de segurança do Estado, como o movimento das mães de Manguinhos e da Maré, e traça um paralelo com o que aconteceu e acontece no Haiti, no que diz respeito a violações de direitos humanos naquele país. 

Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha de Oliveira Lima e cofundadora do movimento Mães de Manguinhos, é uma das entrevistadas no documentário.

Também fiz um depoimento exibido neste filme, a partir de visita que tive a oportunidade de realizar ao Haiti em 2007, no início da missão da ONU Minustah, representando a OAB Federal, por nomeação do então presidente Dr. Cezar Britto, naquela  atividade internacional integrada por diversos sindicatos e entidades da sociedade civil, sendo também importante destacar, que, antes desta missão de 2007, houve outra visita, com o mesmo propósito, liderada pelo Premio Nobel Adolfo Pérez Esquivel e integrada pelo meu saudoso professor na UFF, o ex-juiz e advogado João Duboc Pinaud, que nos faz muita falta. 

Em minha participação no documentário, destaco as semelhanças  entre Haiti e Brasil, em relação a população negra e a pobreza em ambos territórios, ainda que tão afastados geograficamente, tendo como um dos pontos em comum o fato de que ambos foram objeto de intervenção do Exército brasileiro. No Haiti através da “pacificação” da ONU, e no Estado do Rio de Janeiro por meio das intervenções do governo federal nesta cidade, autorizando o Exército brasileiro a empreender ações de segurança pública, sobretudo nas favelas e comunidades periféricas do Rio, medidas estas que ocorreram ultimamente nos governos Dilma e Temer, cada um com suas peculiaridades e diferenças, claro, mas, em linhas gerais, foram semelhantes ações de intervenção militar, das quais o Haiti foi confessadamente um laboratório internacional de intervenção militar, sob a forma de “missão humanitária”. 

Quando estive no Haiti, cheguei a testemunhar uma operação militar de ocupação na  principal favela de Porto Principe, Cité Soleil, e pude observar, diretamente, que a forma com que os soldados ingressavam nas vielas, abordavam a população pobre e impunham seus fuzis não se diferenciava muito das operações levadas a efeito na Rocinha, Maré, Manguinhos, Baixada Fluminense e tantas outras. É um modelo e uma concepção de segurança pública que adentra em comunidades pobres, de maioria negra, como que participando em uma guerra convencional, tendo como inimigos a própria comunidade, apesar do discurso anti-drogas ou de “pacificação”. Assim também ocorreu no Haiti, quando da presença brasileira, através da Minustah, que, conforme o artigo 7 da Carta da ONU sobre assuntos de Paz, trata-se de uma missão internacional que tem como escopo a solução pacífica das controvérsias (cap. IV), mas a prática e o histórico de tais intervenções revela  o  fosso flagrantemente existente entre as intenções anunciadas nos documentos da ONU e o resultado destas, envoltas em diversas e graves denúncias de execuções, desaparecimentos, estupros, invasões de domicílio, constrangimentos, apesar da previsão legal de uso de armamentos em tais  missões “de paz” fazer menção apenas a “finalidade dissuasória” e “para proteção dos civis”.

Por outro lado, no que diz respeito aos resultados econômicos e sociais, não há nenhum indicativo de que o Rio de Janeiro e muito menos o Haiti melhoraram após tais intervenções militares. Em relação ao Haiti, os 8 milhões de habitantes que haviam em 2007 quando lá estivemos alcança hoje o número de 12 milhões de pessoas, com mais de 80% da população abaixo da linha da pobreza, e com uma renda média correspondente a 15% da média da América Latina. A população convive com cólera, com cerca de 95% do meio ambiente devastado e agora durante a pandemia, sofre com falta de leitos, respiradores e a presença de pouquíssimos médicos para atender milhões de seres humanos enfermos.  Para que serviu a ocupação no Haiti? Para que serviram as ocupações das favelas do Rio de janeiro, cujas operações, inclusive, foram suspensas neste ano através de liminar na ADPF n. 635, do STF, tendo em vista os graves casos de execuções durante a pandemia.

O que chama atenção nas realidades do Haiti e Brasil é que tanto a Minustah, como o Estado brasileiro, no caso das intervenções militares no Rio de Janeiro, agiram e agem oficialmente em nome de princípios constantes de tratados internacionais, declaração dos direitos humanos, princípios constitucionais civilizatórios, sendo que, em relação ao Brasil, especificamente, o art. 4, incisos III e IV da Constituição Federal trazem como premissas o conceito de auto determinação dos povos e não-intervenção, o que, todavia, vemos tais  dispositivos serem desvirtuados através de tais empreendimentos internacionais da ONU, sob o manto de “missões de paz”. Quero aqui reconhecer a boa intenção e trabalho de técnicos, profissionais  de diversas áreas de saúde, educação e assistência social que são engajados profissionalmente nestas missões, mas cujas atuações são minoritárias, secundárias, ante ao predomínio do operativo militar, como, por exemplo, ocorreu no Haiti.

Não se trata, portanto, de negar o papel progressista que pode possuir a ONU em algumas atuações, mas de especificamente questionar este tipo de missão intitulada  de “pacificação” que embasa ocupações como no Haiti, onde testemunhei predominantemente uma presença militar e de repressão, em lugar da propalada ação humanitária, bastando, para tanto, que se verifique a proporção existente entre os gastos com armas e soldados nestas missões em relação aos recursos e equipamentos destinados a saúde, educação e moradia. A resposta está na degradante realidade social das favelas do Rio e Haiti, no que diz respeito as mínimas condições de existência humana. 

Caminhando para o final deste texto, quero render homenagens aos diretores irlandeses deste importante documentário, Cahal McLaughilin e SIobhán WIlls, e a toda a equipe  envolvida em sua realização no Brasil e Haiti, estendendo este elogio ao trabalho incansável da jornalista brasileira Juliana Resende, através de quem tive contato com o projeto.  Acredito que este documentário, para além de suas qualidades técnicas e artísticas, tem um papel essencial de denúncia da realidade brasileira e haitiana, bem como trazer novamente á tona a necessidade de se questionar a ação da Minustah no Haiti, suas consequências, concepção de ação militar e principalmente responsabilidades ante as denúncias de violações de direitos humanos, o que está intrinsecamente relacionado ao Estado brasileiro, pois esta Missão foi, como sabemos,  comandada por generais brasileiros, alguns destes apoiadores ou ministros do atual governo federal no Brasil. Parabéns a todos que participaram deste documentário, especialmente as mães de filhos e filhas mortos pela violência de Estado no aqui no Brasil e no Haiti.

O documentário está participando de festivais, antes de entrar em circuito de exibição. Para saber mais, acesse a página do instagram.