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Dez pontos sobre o balanço da tática eleitoral

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

1 – Um dos debates amargos sobre a tática eleitoral foi sobre a necessidade ou não de uma só candidatura unificada de todos os partidos de esquerda para garantir a passagem para o 2° turno. Nenhum dos três principais partidos da esquerda brasileira defendeu a necessidade de candidatura única. Mas o debate existiu, porque a esquerda brasileira, em suas variadas componentes, é mais ampla do que a militância orgânica dos três partidos. Ela se expressa através dos ativistas nos sindicatos, no movimento estudantil, nos movimentos contra as opressões de mulheres, negros e LGBT’s, nas articulações ambientalistas e de Direitos Humanos e, claro, na importância da intelectualidade acadêmica, da comunicação, da cultura e das artes. Uma parcela da militância se inclinava nessa direção.

2 – No entanto, a verdade é que a experiência da luta político-eleitoral já tinha provado, por exemplo em 2018, que não era. A candidatura Boulos foi um ponto de apoio para enfrentar Bolsonaro, não um obstáculo para que Haddad chegasse o 2º turno. Mas o embate em São Paulo, em 2020, provou, também, que não era. Ao contrário, ficou demonstrado que a existência de mais de uma candidatura de esquerda pode aumentar, não diminuir, as possibilidades de chegar ao 2° turno. Em São Paulo, não foi um erro tático o lançamento de várias candidaturas. Foi um acerto. Tatto desgastou o apoio de Russomano na extrema periferia da cidade, onde a memória dos programas dos governos do PT é mais intensa, assim como a autoridade de Lula. E a chapa Boulos/Erundina pôde ampliar a audiência de toda a esquerda como porta-voz do Fora Bolsonaro através do partido de Marielle Franco, unindo coragem e esperança.

3 – Outro debate, muito diferente, é quem deveria ser o candidato de cada partido de esquerda. Esse é um problema de cada partido, evidentemente. Não se trata de diplomacia no trato, ou elegância de estilo. Trata-se de respeito. Ninguém, a não ser os militantes de cada partido, deve decidir. A construção de partidos sérios não se faz com pesquisa de boca de urna no Facebook ou no Twitter. No PT e no PSOL houve disputa séria. No PSOL não parece razoável duvidar que a decisão da ampla maioria foi acertada ao escolher Boulos. Assim como parece incontroverso que a decisão de não concorrer de Marcelo Freixo no Rio de Janeiro foi um erro.

4 – Por outro lado, um terceiro debate, também diferente dos dois anteriores, porém legítimo, é se era correto, ou não, diante da incerteza nos últimos dias, o recuo de uma candidatura de esquerda a favor de outra melhor colocada para, na véspera da eleição, demonstrar para os eleitores de esquerda a disposição de unidade diante de um inimigo de classe comum. Trata-se de uma decisão ultratática, muito delicada, mas importante.

5 – A melhor tática para enfrentar um governo de extrema-direita em uma situação reacionária é a Frente Única de Esquerda, independente da burguesia. Uma orientação centrada nas necessidades defensivas impostas pela relação de forças adversa. Mas esta tática política não se desdobra, necessariamente, em uma coligação eleitoral de todos os partidos de esquerda no 1° turno. Pode ou não ser feita. A defesa da Frente Única para lutar é muito diferente da defesa da Frente Única Eleitoral. Podemos golpear juntos, e marchar separados, como ensina a experiência nacional e internacional. Trotsky defendeu, energicamente, a Frente Única de Esquerda para barrar a ascensão dos nazistas, em ensaios que estão entre os clássicos do marxismo, mas nunca defendeu que o Partido Comunista da Alemanha não deveria se apresentar independente dos social-democratas nas eleições. A polêmica era sobre qual a política do PC nas campanhas eleitorais: o PC foi às eleições denunciando, igualmente, os dois “irmãos siameses”, os fascistas e os social-fascistas. Os social-fascistas eram os social-democratas, o partido socialista moderado.

6 – A candidatura única de esquerda depende de um cálculo da relação política de forças entre os partidos de esquerda. Esse cálculo é feito considerando as posições de força pretéritas. Mas o problema é que elas mudam entre uma e outra eleição. Se o PSOL tivesse se engajado em uma tática de Frente em São Paulo, a candidatura teria sido do PT. Isso teria sido um erro, mesmo se a candidatura do PT tivesse sido Haddad, evidentemente, muito mais forte do que Tatto. A cabeça de chapa teria sido do PT, porque uma Frente se constrói respeitando a força acumulada no período histórico anterior. Acontece que o PSOL tinha boas razões para ter a segurança que Haddad não aceitaria a candidatura e, mais importante, para prever que a candidatura de Boulos tinha um potencial de audiência superior, qualitativamente, a todas as disputas anteriores, em função do desenvolvimento da luta social em São Paulo. Um mínimo de honestidade intelectual é admitir que essa hipótese se confirmou. Quem apostou nela acertou. Quem foi contra, errou. Tão simples como isso.

7 – O PSOL tem um projeto político diferente do PT, por isso, durante treze anos, não participou dos governos do PT. Mas o PSOL nunca foi, tampouco, um obstáculo para que o PT pudesse chegar ao governo. Ao mesmo tempo, o PSOL se colocou ao lado do PT na defesa da legitimidade do mandato de Dilma, quando a armação do golpe saiu do terreno da agitação para a ação contrarrevolucionária nas ruas. Há uma dialética inteligente em lutar pela construção de um partido socialista que vai além dos limites do PT e, ao mesmo tempo, lutar ao lado do PT contra Bolsonaro.

8 – Acontece que uma Frente de Esquerda liderada pelo PT só é possível, na maioria das cidades, se o PSOL renunciar à defesa pública de suas posições. É uma opção tática. O PSOL a fez em muitas cidades, como Recife, por exemplo. Depende da relação política de forças locais em eleições municipais. Não há um décimo primeiro mandamento oculto que Marx deixou reservado para iniciados. Mas teria sido um erro grave. Não deveria ser a tática nacional nesta eleição. Um partido que acumulou um mínimo de autoridade, mas não defende suas posições, publicamente, não se afirma e não amplia apoio. Ensina a sabedoria popular: time que não joga não tem torcida. Em um sistema eleitoral de dois turnos, essa tática anulava a possibilidade do PSOL medir se suas forças nas grandes cidades tinham dado, ou não, um salto de qualidade, à exceção de Belém e Florianópolis, onde já estava estabelecido.

9 – A ideia de que deve existir um só partido de esquerda parece atraente, mas não é progressiva. No século XXI é oportunista, porque esconde as diferenças entre reformistas e revolucionários. No tempo histórico do século XIX, no alvorecer do movimento socialista, ela foi progressiva. Mas não se passaram cento e cinquenta anos, desde a fundação do partido socialista alemão, a primeira organização independente de classe que adotou um vocabulário marxista, em vão.

10 – A representação política dos interesses dos trabalhadores não pode ser feita por um só partido, como ficou evidente no século XX. Só em nível de abstração muito elevado é que é útil e faz sentido reconhecermos a existência de um “grande partido do trabalho” que se expressa através de diferentes frações públicas, das mais moderadas às mais radicais. Só que sem mediações ela é obtusa, no terreno da análise, e uma estratégia oportunista no terreno da política. Porque só seria possível silenciando as posições minoritárias, que tendem a ser as mais revolucionárias nas condições atuais. Uma esquerda socialista para o século XXI deve lutar por um programa anticapitalista. Quem considera que essa luta passa pelo PT ou pelo PCdoB (e há marxistas sérios nesses partidos que lutam de forma honrada pelo programa do socialismo) tem o nosso respeito. Mas nós apostamos que o projeto do PSOL, com todos os riscos que existem, é mais animador.

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eleições 2020