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EDITORIAL

Nas eleições e além: lutar pela cidade ecossocialista contra a cidade do capital

Editorial programático

No país das favelas, dos morros, das palafitas e das periferias, as desigualdades urbanas foram ainda mais esgarçadas durante a pandemia da covid-19. Os abismos espaciais nas cidades brasileiras foram o maior fator de vetorização da doença. Longe de significar apenas um momento onde as pessoas se preocupam com “o asfalto da rua”, atuar nas eleições nos municípios significa denunciar que a segregação urbana é a razão que define, no tempo e no espaço, onde a vida pode ou não ser garantida nas cidades.

Habitar” é como se dorme, se move, se respira, se alimenta, se pode existir ou não. É a condição geográfica de classe que implica se os trabalhadores têm um teto, arrumam emprego ou se bebem água potável. E moradia, saneamento básico e transporte público adequados, todos direitos sociais ligados às competências municipais, não são a realidade de milhões de brasileiros atualmente.

ENGLISH  In elections and beyond: fight for an ecosocialist city and against the city of capital

São cerca de 100 milhões de pessoas sem acesso a esgoto (47% da população nacional), 35 milhões sem abastecimento de água, quase 30 milhões vivendo em habitações precárias ou oneradas excessivamente com aluguel. Essa pobreza urbana, que pode parecer um “atraso”, na verdade é o próprio padrão que alavancou a urbanização industrial brasileira.

Foi sem o embutimento dos custos de moradia, uma mercadoria especial na reprodução dos trabalhadores, que se formou a baixa média salarial e a negação sistêmica do acesso à terra, especialmente nas regiões metropolitanas, que seguem sendo transformadas (destruídas e reconstruídas) em combinação com as transformações do próprio mundo do trabalho.

Por um lado, o fato desse bem básico de consumo que é a moradia não estar contido no preço médio do salário produziu uma expansão ou intensificação das cidades pelas fronteiras onde o preço da terra é menor, onde famílias erguem suas habitações em ocupações e loteamentos precários. No Brasil, são cerca de 5 milhões de moradias em 14 mil focos de aglomeração precária, como os complexos de Paraisópolis em São Paulo ou da Maré no Rio de Janeiro.

Por outro lado, a terra urbana passa a se tornar, ela mesma, um enorme ativo e, portanto, fonte de concentração e centralização de riqueza. As nossas cidades estão, no século XXI, cada vez mais dominadas pelos interesses de uso da propriedade imobiliária como capital, como fonte de geração de mais dinheiro para poucos proprietários investidores, o que eleva o preço da terra e por consequência o custo da reprodução social dos trabalhadores em geral. O Brasil viveu, de 2009 a 2014, a maior valorização imobiliária do mundo.

Além da extrema pobreza nas grandes cidades, também alarma o crescimento do adoecimento por problemas respiratórios e mentais. Este fato se combina com a crise climática que, no século XXI, terá seus piores efeitos sentidos nas grandes cidades: estima-se que entre 8 a 9 milhões de pessoas no mundo sofrem morte prematura por causa da poluição atmosférica e as mudanças climáticas podem significar picos de calor nas cidades que são até 7 graus mais elevados nos ambientes de alta densidade de vegetação.

Fica cada vez mais explícito que necessidades representadas pelo morar e se mover na cidade são obstadas pelos interesses de valorização do solo urbano, cujos proprietários privados (fundos imobiliários, incorporadoras e grupos de investimento) abocanham o orçamento público, monopolizam o mercado de terras, dão as diretrizes dos planos e obras urbanísticas, removem violentamente as populações indesejadas nas áreas onde passam a se apropriar e, assim, capitalizam cada vez mais a propriedade imobiliária da terra, o seu monopólio político sobre o espaço.

Por isso, embora não sejam novidades na história da luta de classes no Brasil, desde os anos 2010, importantes lutas espaciais vêm ocorrendo com mais ênfase, como as ocupações de e por moradia, as greves da construção civil, as jornadas de junho, os comitês populares contra os megaeventos e megaprojetos urbanísticos, movimentos contra a privatização de espaços públicos, as ocupações de escolas, os rolêzinhos, os movimentos culturais, as denúncias da militarização dos territórios e contra o genocídio da população negra. Essa renovação das lutas se deu a partir do boom imobiliário que o país atravessou nos anos 2000, que reestruturou as macrometrópoles e aumentou o poder e escala das cidades médias atreladas à infraestrutura da agroindústria.

O problema da habitação no Brasil

Em termos habitacionais, a esquerda socialista precisa superar a experiência dos governos do Partido dos Trabalhadores e seu impulsionamento de um novo ciclo de acumulação na indústria da construção. O Programa Minha Casa, Minha Vida, revivendo em parte os planos do Banco Nacional de Habitação durante a ditadura empresarial-militar, se baseou discursivamente numa ideia produtivista de déficit habitacional, de “falta de casa”, a pretexto de viabilizar a construção de unidades em escala inédita. Do seu início em 2009 até 2019, houve a contratação de 5,7 milhões de unidades, 4,3 milhões de unidades efetivamente entregues e 222 mil unidades em construção. Em 2018, já longe do seu auge, o MCMV representou 75% das unidades habitacionais lançadas e 78% das unidades vendidas, segundo informações da Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias).

Os pacotes anticíclicos pautados na indústria construção (civil e pesada) foram centrais na conformação do pacto petista com a elite empresarial brasileira, que viveu seu auge entre 2009 e 2013, e, depois, seu declínio nas implicações na Operação Lava-Jato. Mas não foi apenas uma imensa massa de crédito do Estado às empresas do setor que se seguiu com os programas.

Eles reproduziram um padrão periférico de urbanização, tendo os empreendimentos nas menores faixas de renda sido construídos em regiões periurbanas e periféricas das metrópoles e criado aglomerados ilhados nas regiões de cidades médias, verdadeiros “estacionamentos” de casas e prédios, em péssimas condições de habitabilidade, localização e infraestrutura. São milhões de novas propriedades imobiliárias privadas, que valorizam o solo urbano, aumentam os preços e repetem então o movimento de expulsão de segmentos mais afetados pela espoliação urbana e financeira da classe trabalhadora nas cidades.

Todo o boom imobiliário dos anos 2000 foi possível graças aos recursos do FGTS, que financiou a produção e o consumo dos imóveis. Mesmo assim, o problema da habitação segue, dez anos depois. Pesquisa da Fundação João Pinheiro retrata um crescimento de 6 milhões de novas unidades habitacionais necessárias em 2009 para 6,3 milhões em 2015. Houve aumento no número de famílias que são oneradas em mais de 30% da renda com aluguel e ganham até 3 salários mínimos (maior problema de déficit segundo a pesquisa), de habitações precárias, coabitação excessiva e ocupação multifamiliar.

Combater o problema habitacional na raiz significa não cair na contradição do discurso dominante produtivista, que omite a necessidade fundamental de controlar o preço da terra e dos imóveis, para, no lugar, promover a construção de mais e mais unidades precárias, garantindo assim o lucro dos incorporadores e construtores a partir dos fundos públicos.

Em vez de reproduzir as contradições inscritas nas experiências recentes do ciclo do PMCMV nas principais cidades brasileiras, há que se redefinir o que são “necessidades habitacionais”, considerando a localização da habitação e sua correspondente infraestrutura como critério prioritário, atentando para os novos modos de viver, a diversidade atual nas configurações familiares e especialmente o aumento significativo da chefia feminina dos lares.

Para efetivar essa exigência, deve-se colocar em prática a orientação estabelecida no Estatuto da Cidade de desapropriação de imóveis ociosos, especialmente em bairros centrais, para moradia popular, com prioridade a mães solo, mulheres em situação de violência e população em situação de rua, com modelo de cooperativa habitacional e propriedade coletiva.

Combinado a isso, é preciso implementar o programa público subsidiado de locação social, para superar a titularidade individual de propriedade como padrão. Além da locação social, deve haver regulação e controle do mercado de aluguel para garantia da ocupação da população de baixa renda nas áreas centrais com infraestrutura de serviços públicos.

É fundamental também subsidiar com orçamento público e criar frentes de trabalho para a urbanização e a regularização fundiária de favelas, ocupações e loteamentos, com prestação de serviço de assessoria técnica municipal qualificada, com equipe multidisciplinar e gestão democrática dos projetos, fazendo concessão de uso especial para terrenos públicos e aplicação da desapropriação-sanção nos terrenos de particulares.

Os projetos, ao contar com a condução organizada das comunidades e movimentos envolvidos, devem ter amparo orçamentário para maior qualidade de habitação, com áreas de convivência (praças, quadras, parquinhos, bibliotecas, centros de cultura) e hortas comunitárias com produção de orgânicos. Também deve haver um compromisso inadiável das candidaturas socialistas com a suspensão imediata de todos os despejos por falta de pagamento e reintegrações de posse.

Propostas ecossocialistas contra a privatização do saneamento e da infraestrutura de mobilidade nas cidades

O saneamento básico é outra frente de expansão do capital no país, priorizada com a aprovação do projeto de lei do novo marco do saneamento, em junho de 2020, que basicamente autoriza a privatização do setor e acelera a sua financeirização. As empresas privadas terão iguais condições às públicas para concorrer nas licitações para os serviços de saneamento.

O aumento da tarifa, seja no caso no saneamento seja no caso dos modais de transporte coletivo, é parte indissolúvel do interesse de manutenção das taxas de lucro pelas empresas privadas que ganham com os modelos de concessão atuais. Empresas de capital aberto podem administrar os serviços, o que significa subordinar a sua prestação aos direitos soberanos dos acionistas em perceberem suas partes no ganho empresarial geral. Essas empresas optam por produzir infraestrutura nos locais onde é rentável, não onde é necessário socialmente. Um enorme conjunto de comunidades fica alijado do sistema infraestrutural de esgoto e abastecimento de água e acaba por ocupar, sem alternativa, áreas de mananciais.

E é justamente porque a propriedade formal da moradia sempre foi bloqueada à população negra e pobre que a infraestrutura rodoviarista, dependente das linhas de ônibus, se “justifica” para alcançar as áreas mais distantes das centralidades. O tipo de ocupação habitacional de classe aprofunda a dependência desse modal de mobilidade emissor de poluentes em larga escala, provocando a péssima qualidade do ar e um grave problema de saúde pública em função da proliferação de doenças respiratórias.

Tradicionalmente, os contratos de licitação de ônibus e metrô são nicho de grandes sistemas de corrupção e apropriação dos fundos públicos. As máfias empresariais dos ônibus, com cartas marcadas, ganham as licitações das prefeituras para continuarem operando péssimos serviços para a massa espoliada pelas altas tarifas, superexplorando com baixos salários e condições cada vez mais precárias de trabalho seus cobradores e motoristas em dupla função. As linhas de metrô também são objeto de graves esquemas estruturais de corrupção internacional, sendo conhecidos os casos no Brasil envolvendo a francesa Alstom, por exemplo.

A infraestrutura urbana capitalista então é regida pelo movimento de injeção dos fundos públicos para a geração de mais-valia de empresas privadas ligadas aos serviços públicos urbanos, sendo enorme salvaguarda de reprodução do capital nas economias municipais. O problema não é apenas a apropriação privada do público, mas o próprio modo de produzir o metabolismo da vida humana e da natureza, regido pela lógica empresarial, financeira e privatista da cidade, está em risco. Nunca a vida valeu tão menos do que o lucro.

Por isso, as candidaturas socialistas devem lutar pela municipalização e ampliação do investimento no saneamento básico, de modo a garantir a água como direito fundamental, com proibição de cortes e redução da pressão do fluxo nos bairros pobres, com sistema de coleta e tratamento de esgoto para preservação de mananciais, integrado com programas de saúde pública. É preciso haver um trabalho estruturado de regularização e fiscalização no saneamento básico, de modo a tornar os rios mais limpos e construir planos municipais sobre os serviços de água, esgotos, lixo e drenagem das águas de chuva, envolvendo os movimentos sociais e as comunidades locais.

É preciso levantar a bandeira da municipalização do transporte público, com plano de transformação da matriz energética nos transportes, para redução da emissão de poluentes nas cidades, incluindo aí a poluição sonora. Com a reconversão elétrica da frota, deve haver a recolocação dos trabalhadores que atuam no transporte coletivo baseado em combustível fóssil em vagas de trabalho na produção de energia limpa.

Um plano ecossocialista para a mobilidade deverá ser parte do processo de investimento na ampliação das rotas e dos trajetos curtos, combatendo o consumo de automóveis individuais. O estímulo ao uso do transporte público e a implementação da tarifa zero, nesse sentido, é também uma bandeira ecológica.

A mobilidade urbana deve ser vista de maneira integral, apostando na reforma e reestruturação de calçadas para fluxo de pedestres (principal modo de deslocamento nas cidades grandes), criação de faixas seguras e integradas de bicicleta, incentivando o uso público e gratuito de bicicletas e criação de frentes de trabalho para oficina de consertos. A valorização do direito das pessoas com deficiência é fundamental, por isso, é preciso construir, junto aos movimentos sociais, um plano de melhorias na acessibilidade urbana.

Em seu conjunto, essas medidas apontam para o enfrentamento dos interesses capitalistas que organizam a vida urbana no Brasil, indicando as possibilidades de articulação espacial sob outra lógica. Pautar com centralidade esses temas e organizar a classe trabalhadora em torno dos eixos apresentados constitui uma tarefa inadiável para a esquerda socialista que pretende ampliar seu papel na dinamização das lutas sociais.