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TEORIA

Karl Marx: revolução, proletariado e Estado (1844)

Este é o décimo-segundo texto de uma série sobre a vida de Karl Marx

Wesley Carvalho, de Niterói, RJ
Eugene Delacroix

A Revolução de 1830, na França, não realizou as expectativas dos radicais de esquerda. Seu desfecho foi a preponderância política de banqueiros através do governo de Luís Felipe, o “rei burguês

No começo de 1844, algumas semanas depois de ter chegado a Paris, Marx pela primeira vez se identificou publicamente com a revolução proletária. Veremos como, em textos publicados nos “Anais Franco-Alemães”, periódico que ele próprio organizou com sócios, Marx pensou sobre revolução, proletariado e Estado.

Naquela primeira metade do século XIX, na Europa, o “revolucionarismo” era “endêmico”, e, como diz o historiador Hobsbawm, “…tão capaz de se espalhar por propaganda deliberada como por contágio espontâneo.” É um momento em que a burguesia é uma classe revolucionária capaz de por em xeque as monarquias absolutistas e os privilégios da nobreza e das igrejas. Assim, o principal objetivo das potências europeias era evitar novas “revoluções francesas”. A Prússia teve sucesso nesse sentido: na década de 1840 ainda grassava lá uma monarquia absolutista que não estava submetida a nenhuma constituição. Sua aristocracia agrária, de raízes medievais, era preponderante no Estado, enquanto a burguesia tinha apenas algumas posições nos parlamentos que eram pouco relevantes, além de sofrer censura em seus empreendimentos jornalísticos. Entretanto, em diversas partes da Europa Ocidental, por volta de 1830, a burguesia de banqueiros e grandes industriais havia conseguido chegar ao poder e derrotar a aristocracia. O sistema político que geralmente promovia era um liberalismo com voto restrito a proprietários sob uma monarquia constitucional. Mas também por volta de 1830, na Grã-Bretanha e na França, a classe trabalhadora emergia como força política independente e autoconsciente. Seus projetos políticos apontavam para muito além da revolução burguesa. (1)

Em “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel- Introdução”, pensando a situação política da Prússia, e da Alemanha de uma forma geral, Marx entendeu que havia ali uma burguesia débil, covarde, incapaz de politicamente conquistar aquilo que foi conquistado em outras nações. A Alemanha “está abaixo do nível da história, abaixo de toda crítica”. Ela ainda é uma expressão do “Antigo Regime”. De fato, Estado laico, princípios de igualdade, constituição, parlamentos mais fortes, maior liberdade de expressão, tudo isso carecia especialmente na Alemanha, o que a tornava uma nação atrasada comparada às demais. “A luta contra o presente político alemão é a luta contra o passado das nações modernas…”. Marx entende, na “Introdução”, que mesmo as demandas burguesas não poderiam, na Alemanha, ser alcançadas pela burguesia (a decepção com a burguesia e com o liberalismo não era apenas de Marx, mas compartilhada por vários de sua geração). A transformação caberia a uma outra classe que viria colocar em pauta não meramente uma emancipação política, mas a emancipação humana. (2) Quem tem as condições de realizar essa tarefa é o proletariado(3), termo que aparece pela primeira vez em um texto seu:

“Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã?

Eis a nossa resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano […]  uma esfera, por fim, que não pode se emancipar sem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade e, com isso, sem emancipar todas essas esferas – uma esfera que é, numa palavra, a perda total da humanidade e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho total do homem. Tal dissolução da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado.”(4)

É importante notarmos que Marx está fazendo uma escolha diante de várias correntes políticas e de pensamento que existiam então. Ele está se distanciando dos intelectuais alemães que pensavam (e ele próprio também pensara assim), ainda que com menos frequência naqueles anos, ser o próprio Estado (o monarca, a burocracia) o agente da transformação na Alemanha. Distanciava-se também daqueles que entendiam que a crítica à religião era a chave para a mudança política no país (como vimos no nosso último texto). Alguns, como os “Livres”, antigos amigos de Marx, haviam adotado um franco elitismo apontando ser a “massa” um entrave para o desenvolvimento político. Marx também não era como certos socialistas,(5) a quem vinha conhecendo melhor em Paris, para quem o problema do proletariado dizia respeito apenas à sua pobreza. De fato, alguns socialistas eram avessos à luta política, e não viam na classe trabalhadora uma agente de combate e transformações políticas e sociais de maior envergadura. Por outro lado, precisamos também ter em mente que, nesse início de 1844, Marx ainda não apresenta uma noção da exploração econômica sofrida pelo proletariado, nem maiores compreensões sobre a dinâmica de luta de classes (sobre a qual estava aprendendo com a leitura de historiadores conservadores da Revolução Francesa).  (6)

Mas como seria, para Marx, a revolução? Que outro mundo ela criaria? Há bem pouco nos textos sobre isso, mas temos apontamentos importantes. Primeiramente, a revolução é um problema de ordem “prática”, ou seja, não viria apenas através de uma mudança na consciência das pessoas. E nesse sentido, as armas devem ter um papel. Uma postura francamente diferente daquelas que entendiam que um novo mundo seria possível depois de ações de propaganda e convencimento não apenas entre os próprios trabalhadores, mas, por exemplo, através de petições respeitosamente encaminhadas à burguesia e a reis. (7)

Outro elemento importante é que Marx tem muito claro que o novo mundo a ser criado pela revolução não pode ser antecipado por nenhum esquema pronto e acabado. Aqui rivaliza com intelectuais que já descreviam, até com detalhes, o que seria o mundo comunista. Em texto publicado nos Anais Franco-Alemães, ele diz que

“…cada um precisa admitir para si mesmo que não possui uma visão exata do que deverá surgir. Entretanto, a vantagem da nova tendência é justamente a de que não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas encontrar o novo mundo a partir da crítica ao antigo. Até agora, os filósofos tinham a solução de todos os enigmas sobre seus púlpitos, e só o que o estúpido mundo exotérico tinha de fazer era escancarar a boca para que os pombos assados da ciência absoluta voassem para dentro dela.”

  E também:

“…não vamos ao encontro do mundo de modo doutrinário com um novo princípio: “Aqui está a verdade, todos de joelhos!” Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos princípios do mundo. Não dizemos a ele: “Deixa de lado essas tuas batalhas, pois é tudo bobagem; nós é que proferiremos o verdadeiro mote para a luta”. Nós apenas lhe mostramos o porquê de ele estar lutando…” (8)

Outro ponto que devemos destacar é que, para Marx, nesse texto, a filosofia tem um papel “ativo” enquanto o proletariado é um elemento “passivo” . A revolução teria sua origem no “cérebro do filósofo” que então influenciaria o proletariado com suas ideias para a ação. O primeiro é espiritual e o segundo é material. Essa ideia de que o filósofo seria uma fonte da revolução era bastante difundida entre jovens filósofos alemães da época de Marx. Em Feuerbach, ela tem inclusive termos sexistas: o espírito (a filosofia) é masculino e a matéria a ser fecundada é feminina.  Mas a divisão entre os que pensam e os que fazem não era uma especificidade alemã, sendo também assumida por intelectuais da classe trabalhadora e do socialismo na França e na Inglaterra. De qualquer forma, meses depois da publicação dos “Anais”, haveria uma mudança no pensamento de Marx. Sob o impacto da revolta dos tecelões da Silésia, Marx passará a considerar o proletariado um elemento ativo da revolução, que não seria mais co-protagonizada pelo filósofo, mas um processo de autoemancipação dos trabalhadores. (9)

Anos mais tarde, refletindo sobre este momento de sua trajetória intelectual, Marx diria que suas pesquisas o haviam conduzido ao seguinte resultado: o Estado não pode ser explicado por si mesmo, mas tem suas raízes nas condições materiais de existência. Seria preciso então ampliar seu conhecimento sobre a sociedade civil-burguesa, o que deveria ser feito através do estudo da economia. Com efeito, é fácil ver nas publicações dos “Anais” como Marx promoveu deslocamentos das questões “políticas” (de Estado) para questões sociais ou econômicas. Enquanto Bruno Bauer pensava que um Estado laico significaria emancipação política, Marx entendia que o real problema está fora do Estado, nos pressupostos da sociedade civil marcada pelo dinheiro, pela propriedade privada e pelos negócios onde reina o egoísmo. “O limite da emancipação política fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre”(10) Isto significa, por exemplo, que o Estado pode abolir o voto censitário sem que isso seja o fim da importância das propriedades porque estas continuam a existir na sociedade burguesa. (11) Como sintetizou o filósofo Lukács, “Marx enuncia aqui, com toda clareza, a compreensão de que a emancipação política (ou seja, a revolução burguesa) cria apenas uma democracia formal, que proclama direitos e liberdades que não podem existir realmente na sociedade burguesa.”. Não é com direitos, diz Marx, que o homem se livrará da sociabilidade egoísta, onde é um “…indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade.” (12) Assim, Marx pauta não meramente uma “emancipação política” (com relação ao Estado), mas uma “emancipação humana” (isto é, referente às dinâmicas da sociedade burguesa, ainda compreendida por Marx sem maiores refinamentos). Meses depois, ainda em 1844, é novamente a revolta dos tecelões da Silésia, que fora dirigida contra a burguesia, que mostrará a Marx a capacidade dos trabalhadores em construir uma revolução para além da esfera “política”. (13)

NOTAS

1 – HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2007. pp. 161-2. Ver também o capítulo “The pre-revolutionary political universe” em SPERBER, Jonathan, The European Revolutions, 1848–1851, Cambridge : New York: Cambridge University Press, 2005

2 – MARX, Karl, Crítica da filosofia do direito de Hegel, São Paulo: Boitempo, 2005. p. 147-8. LÖWY, Michael, A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis: Vozes, 2002. pp. 73-4

3 – O termo “proletariado” tinha vários significados na década de 1840. Poderia significar pobres, trabalhadores, ou todos que não fossem aristocratas. A palavra também já havia começado a ser usada em sentido mais próximo ao de trabalhadores assalariados sob o comando da burguesia. Não é possível ter maior clareza sobre que sentidos Marx estava adotando no texto de início de 1844. Entretanto, mais explicitamente, seu entendimento do proletariado aparece como “humanidade sofredora” DRAPER, Hal, Karl Marx’s theory of revolution 1 state and bureaucracy. New York: Monthly Review Press, 1977, pp. 131-2. LÖWY, Michael, A teoria…p. 85

4 – MARX, Karl. Crítica…p.158.

5 – Na década de 1840, socialismo significava tão somente uma preocupação com a “questão social”. Era um termo aplicado parar quaisquer ideias ou propostas direcionadas à situação de penúria da classe trabalhadora, sem necessariamente abarcar questionamentos sobre propriedade privada, ação governamental ou tomada de poder.  Um dos sentidos de ser socialista era não ser “egoísta” ou individualista. Em uma definição de Proudhon, socialismo seria qualquer tentativa de melhora da sociedade. E de fato, mesmo burgueses, através de sua simpatia pela classe trabalhadora, poderiam apresentar-se como socialistas e houve quem sugerisse que a monarquia prussiana deveria sê-lo DRAPER, Hal, Karl Marx’s…pp.97-9; LÖWY, Michael. A teoria… pp.76-7. JONES, Gareth Stedman, Karl Marx – Greatness and Illusion, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2016, p. 141.

6 – FREDERICO, Celso, O jovem Marx 1843-44: as origens da ontologia do ser social, São Paulo: Expressão Popular, 2009, pp. 106;123. DRAPER, Hal, Karl Marx’s…pp.105-7, 146. LÖWY, Michael. A teoria… p. 91; JONES, Gareth Stedman, Karl Marx… p. 137 LUKÁCS, György, O jovem Marx e outros escritos de Filosofia, Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p.162-4. NETTO, José Paulo. “Marx em Paris” IN: MARX, Karl, Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular, 2015. p. 29

7 – MARX, Karl. Crítica..pp. 150-1.DRAPER, Hal, Karl Marx’s…p.133;  LÖWY, Michael. A teoria… pp. 110; 121; 126-7.

8 – Os dois textos vem de cartas a Ruge que foram publicadas nos Anais em 1844 e podem ser encontrados em MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

9 – FREDERICO, Celso. O jovem Marx…pp. 109-0;124; LÖWY, Michael. A teoria…pp. 103-4;134-9. MARX, Karl. Crítica…pp. 152;156-7. DRAPER, Hal. Karl Marx’s…p.140;148.

10 – MARX, Karl. Sobre a questão judaica

11 – “No entanto, a anulação política da propriedade privada [isto é, o fim do critério censitário] não só não leva à anulação da propriedade privada, mas até mesmo a pressupõe. O Estado anula à sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e atividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formação e atividade laboral como diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro do povo, sem consideração dessas diferenças, como participante igualitário da soberania nacional, ao tratar todos os elementos da vida real de um povo a partir do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado permite que a propriedade privada, a formação, a atividade laboral atuem à maneira delas, isto é, como propriedade privada, como formação, como atividade laboral, e tornem efetiva a sua essência

12 – MARX, Karl. Sobre a questão judaica

13 – MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular., 2008 p. 47. LUKÀCS, Gyorgy. O jovem Marx…p. 167. Celso Frederico aponta que Marx ainda não tem em 1844 uma visão do aparelho estatal como instrumento de dominação a serviço dos interesses particulares de uma classe da sociedade civil. Sua visão de Estado é como esfera alienada da comunidade humana. FREDERICo, Celso. O jovem Marx…p. 122-3.

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Vida de Marx