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BRASIL

Leia o programa da Bancada Feminista de SP sobre cultura e resistência popular

Reprodução / Facebook

Num país de desigualdades brutais como o Brasil, tratar de cultura não é secundário: a cultura é a forma como o povo explorado e oprimido atravessou os séculos resistindo para sobreviver. A produção coletiva, ancestral e popular das expressões culturais nas periferias de São Paulo é parte das representações mais importantes de uma nova geração de trabalhadores e intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, que lançam mão de estratégias de consciência territorial, racial e de classe. Particularmente a partir dos anos 90, há um vácuo das referências da esquerda nos bairros e gerações inteiras tiveram suas consciências formadas a partir dos Racionais MCs, num contexto de explosão urbana, desemprego e concentração dos planos neoliberais contra a classe trabalhadora.

O Manifesto do Movimento Arte contra a Barbárie, escrito há vinte anos por grupos e personalidades radicais do teatro na cidade, já denunciava a elitização inevitável das políticas culturais neoliberais, subordinadas ao Consenso de Washington, e a contradição entre uma política de renúncia fiscal de empresas (Lei Rouanet) como fonte de financiamento de uma produção artística verdadeiramente crítica e não enquadrada nas demandas de mercado.

Desde lá, o movimento cultural se afirma como um campo aberto e fértil de luta e assim vem se confirmando nos últimos anos na cidade de São Paulo. A campanha do Movimento Cultural das Periferias para aprovar, em 2015, a Lei de Fomento às Periferias por iniciativa popular, contou com o histórico engajamento de dezenas de coletivos das diversas regiões da cidade, ainda envolvidos naquele contexto com o enorme ascenso de ocupações secundaristas das escolas públicas estaduais.

Todo esse processo foi alvo da reação da vitória de Dória na cidade, em 2016, quando o seu secretário de cultura, André Sturm, declarou guerra aos coletivos periféricos, às ocupações culturais e aos centros de cultura, agredindo e ameaçando, num episódio conhecido, os trabalhadores da cultura na Ocupação organizada pelo Movimento Cultural de Ermelino Matarazzo.

Com a chegada do governo Temer ao poder, o Ministério da Cultura foi extinto, desencadeando uma nova fase do processo de lutas do movimento cultural na cidade, que exigia o “Fora Sturm” e a volta do Ministério. Nesse período, a sede da Funarte no centro foi ocupada por cerca de 500 pessoas de diversos coletivos culturais, e é nessa experiência que nasce a Frente Única de Cultura.

Desde então, o processo de desmonte e esvaziamento orçamentário no estado e na cidade seguem. O governo estadual de Dória e municipal de Covas, somente em 2019, cortaram cerca de 35% do orçamento da pasta, ameaçando o Projeto Guri, o Museu Afro Brasil, as Fábricas de Cultura e o Programa VAI na capital. Ao mesmo tempo, dirigiram, em âmbito nacional, o Ministério da Cultura Roberto Alvim, um obsessivo pela estética da propaganda nazista; Regina Duarte, filha pensionista da ditadura empresarial-militar; e Mário Frias, ex-ator coadjuvante da Globo que afaga a extrema-direita bolsonarista.

O fato de a cultura ter produzido uma identidade comum a uma geração que não teve acesso às expectativas de emprego, sendo mais escolarizados, contudo menos incluídos em postos formais de trabalho, é percebido pela direita e pela extrema-direita como uma verdadeira ameaça política.

Para o contra-ataque, a concepção de produção cultural do nosso programa tem no horizonte as referências ancestrais exterminadas da memória coletiva, da resistência popular, negra e indígena na cidade contra um imaginário produzido pela burguesia e pelo Estado do “progresso bandeirante”, um mito representado nas dezenas de monumentos colonizadores espalhados pela cidade, que, destacamos, devem dar lugar a um projeto de justiça de transição e políticas de memória e reparação.

Como dissemos, o neofascismo organizado pela representação de Bolsonaro no poder é uma campanha permanente contra as expressões de resistência cultural. Por isso mesmo a cultura não é mero campo de negligências: o Estado, mais do que simplesmente não investir nas expressões culturais das periferias, opera o controle social da repressão em nome da discriminação e combate a essas mesmas expressões.

O massacre de Paraisópolis no final de 2019 demonstra nitidamente como as experiências territoriais culturais são a porta de entrada da militarização do espaço urbano e do controle do trabalho e do desemprego imposto às novas gerações, ainda estimuladas pelas abordagens de criminalização pela grande mídia. O movimento cultural das periferias, portanto, segue como resposta ao terrorismo de Estado proclamado por João Dória em campanha eleitoral.

O mesmo funk que toca na 17 em Paraisópolis, é o mesmo de Heliópolis, que é o mesmo da peruada, quando a guarda civil anualmente abre alas e prepara o palco da diversão de jovens universitários da USP no centro histórico da cidade. A cultura de “cópia branca” produz uma neurose, na qual o funk entra na “porta da frente” dos eventos em espaço público, enquanto o funk na periferia é criminalizado. São pelo menos 300 fluxos em São Paulo e nunca se levantou num processo seriamente técnico o impacto econômico dos fluxos para as famílias e territórios, formados significativamente por trabalhadores informais. Apesar de o funk ser uma cultura altamente rica e complexa, é a mais criminalizada e também a primeira a parar de trabalhar e a última a voltar em razão da pandemia. Apesar de 75% do seu público se concentrar entre jovens negros, na idade entre 15 e 29 anos, a cultura funkeira revive referências na resistência popular à criminalização racista histórica do samba, ainda no início do século XX, no início da urbanização.

Se não é alvo do braço armado do Estado, a cultura de quebrada vive a “manutenção da tragédia”, com o enfrentamento institucional às ocupações culturais, que, com frequência, sobrevivem pela auto-organização dos coletivos e artistas, ameaçados pelos laudos periciais políticos típicos como justificativa oficial para condenar edificações e promover demolições que interditem a resistência coletiva que há nesses espaços.

A Lei de Fomento foi uma conquista popular, mas também questionar esquemas clientelistas de cartas marcadas nos editais é uma necessidade; quem sobrevive dessas políticas sabe da corrupção que corre nos bastidores da Secretaria atual, mantendo a desigualdade na distribuição de recursos.

Atuando sobre os avanços que foram frutos da luta popular na cultura da cidade, recentralizando a produção cultural na estratégia de virada do jogo da política em São Paulo, em que a periferia se torna o centro, e conscientizando sobre a retomada do passado ser uma urgência para a perspectiva de futuro, pretendemos andar lado a lado dos movimentos culturais, de juventude, negros e periféricos que fizeram a história recente de enfrentamentos políticos classistas, territoriais, raciais e orçamentários na cidade.

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