“Por cima do abismo
estende-se minh’alma!
tensa como um cabo
onde me equilíbro,
malabarista das palavras.”
Maiakóvski
Atravessamos uma pandemia que já ceifou mais de um milhão e cem mil vidas no mundo, mais de 155 mil dentre elas no Brasil, segundo os dados oficiais. Neste contexto, os estímulos ao senso comum parecem associar a crise econômica que o país e o mundo atravessam a fatores naturais, uma catástrofe inevitável, como a queda acidental em um abismo. Cabe aos socialistas desnudar o sentido da crise, como crise capitalista, e apontar para seus determinantes sociais, não naturais. Paralelamente, é fundamental apontar caminhos para a constituição de uma ordem social distinta, voltada para o atendimento das necessidades dos 99% explorados e oprimidos. Em 2008 e nos anos seguintes, a manifestação da crise capitalista atingiu patamares globais elevadíssimos de redução da atividade econômica e duras consequências sociais. Desde então, a recuperação do mercado mundial foi limitada, nos quadros de uma grande depressão em potência, que em 2020, com o estopim da pandemia global, efetivou-se plenamente.
Quem paga a conta das crises do capital é a classe trabalhadora
No mundo todo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que foram perdidos o equivalente a 345 milhões de empregos em tempo integral nos primeiros três trimestres de 2020. Na América Latina, segundo a mesma OIT, 34 milhões de pessoas perderam o emprego e 32 milhões saíram, ao menos temporariamente, da força de trabalho. Com isso, a renda do trabalho no mundo caiu 10,7% nesses três primeiros trimestres de 2020, em comparação com o ano anterior. O resultado é estimado, pelo Banco Mundial, no acréscimo de 150 milhões de pessoas à parcela da população que vive em pobreza extrema (renda de menos de U$ 1,90 por dia), que no total já somam quase 10% da população mundial.
Enquanto isso, os relatórios da Oxfam mostram que as 32 empresas mais rentáveis do mundo conseguiram U$ 109 bilhões de lucros extraordinários durante os primeiros meses da pandemia. A fortuna dos bilionários do mundo chegou a U$ 10,2 trilhões, um incremento de 25% em relação ao ano passado, segundo relatório do banco suíço UBS e da consultoria PWC.
No Brasil, os dados sobre trabalho e emprego são trágicos. No trimestre de maio a julho, o IBGE registrou uma taxa de desocupação (desemprego), de 13,8%, a maior desde 2012. Eram mais de 13 milhões de desempregados(as) (e as prévias de dados de setembro apontam para mais de 14 milhões de pessoas desocupadas). O nível de subutilização (pessoas trabalhando menos horas do que poderiam/gostariam) estava em 7,0% e o percentual de desalentados (desocupados que não procuraram emprego no período) em 5,3%. Na combinação, a taxa composta de subutilização (mais próxima do desemprego real), chegou a 30,1% no mesmo período. Assim, o nível de ocupação das pessoas em idade ativa atingiu seu patamar mais baixo na história recente, com apenas 47,1% de pessoas empregadas.
No entanto, o fato de estar empregado, em meio a esse mar de desocupação, não é uma garantia de segurança social. Um estudo divulgado nos primeiros dias de outubro de 2020, pelo jornal Valor Econômico, mostrou que 45,5% dos empregos no país são de “baixa qualidade”, pois pagam salários baixos, são instáveis e/ou de jornadas muito longas.
Na vigência do “auxílio emergencial” de R$ 600,00, aprovado pelo Congresso Nacional, contra a proposta inicial de R$ 200,00 do governo, ainda no início da pandemia, os indicadores de pobreza extrema no Brasil foram revertidos momentaneamente. Com a diminuição pela metade do valor do auxílio nos três últimos meses do ano e sua extinção em 2021, pode-se prever uma situação de crise social ainda mais aguda, em um país que regrediu nos últimos anos em termos de combate à fome e à miséria absoluta.
É evidente que também no Brasil o peso da crise não é distribuído equitativamente na pirâmide social. Os 42 bilionários brasileiros aumentaram seu patrimônio em U$ 34 bilhões nos primeiros meses da pandemia, segundo os dados divulgados pela Oxfam.
Em síntese, o “novo normal” se apresenta como um período de maior precariedade no trabalho, crescimento da miséria social, em paralelo à elevação obscena da concentração de riqueza nas mãos do 0,1% mais rico da população brasileira e mundial.
Um programa para enfrentar o austericídio e a superexploração
Aqui, na periferia dependente, a receita do capital para superar a crise envolve, como no centro da acumulação global, as chamadas medidas de austeridade, entendidas como corte dos gastos públicos (aqueles destinados a serviços públicos que atendam à maioria da população), de forma a garantir o pagamento das dívidas dos Estados, combinadas a (contra)reformas legais que reduzam direitos do trabalho, de maneira a ampliar a fatia do trabalho excedente apropriada pelo capital em sua luta (literalmente) de morte para conter a tendência à queda da taxa de lucros. Aqui, na vigência do capitalismo periférico e dependente, entretanto, é preciso ir além, ampliando a superexploração sobre a força de trabalho e promovendo (contra)reformas ainda mais regressivas, em um ambiente social no qual as políticas públicas nunca chegaram a se efetivar como direitos universais e parcelas expressivas da classe trabalhadora já vivem entre a pobreza absoluta e a sobrevivência precária.
Por isso mesmo, o programa apresentado por nossas candidaturas, as candidaturas da esquerda socialista, para questões de emprego e renda, deve partir da proposta de ruptura com as políticas de austeridade (especialmente, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Emenda Constitucional 95, que congelou o orçamento social e de investimentos, impondo o chamado “Teto de gastos”), assim como deve se comprometer com a luta pela revogação das reformas trabalhistas e previdenciárias. Não são questões que se esgotam no âmbito municipal, mas devem ser endereçadas concreta e ideologicamente a partir de todos os níveis de governo.
Como medidas concretas no plano municipal na direção da criação de empregos, é possível e necessário apontar para a abertura de concursos públicos para ampliação da oferta de serviços públicos de qualidade, especialmente nas áreas de saúde, assistência e educação, revertendo trabalho terceirizado em cargos efetivos e rompendo com as formas abertas ou disfarçadas de privatização, como Organizações Sociais e Parcerias Público-Privadas.
Diante do tamanho da crise social que atravessamos a reivindicação histórica da criação de frentes de obras públicas deve ganhar concretude com a definição de que tipo de obras públicas serão priorizadas. Para além da criação de emprego, o que é fundamental no momento em que vivemos, elas devem ser propostas no sentido de: sanar o déficit sanitário (40% dos municípios brasileiros não possuem serviço de esgoto, no Norte do país apenas 17% possuem); garantir a ampliação e renovação das escolas e redes de saúde; urbanizar as áreas periféricas e favelas; regenerar florestas urbanas e matas ciliares; criar áreas de produção agrícola comunitária nos municípios, para combater a fome; coletar águas pluviais para abastecimento de água e irrigação das hortas; construir habitações e refuncionalizar prédios abandonados pela especulação imobiliária para moradia popular; criar alternativas de mobilidade, centradas no transporte público e na mobilidade sustentável; garantir intervenções para democratização da cultura e etc. Ou seja, trata-se de uma proposta com potencial de articular e dar concretude a vários outros eixos do programa.
O lugar da renda básica em um programa de transição
Várias candidaturas de esquerda apontam para a criação de uma Renda Básica Municipal, algo que ganhou maior projeção nesta conjuntura em que mais de 60 milhões de pessoas estão sobrevivendo graças ao auxílio emergencial. A proposta é importante, mas deve vir acompanhada de outras que explicitem sua insuficiência para a resolução do problema do desemprego e demarquem a diferença em relação às versões de renda básica que são difundidas pelos organismos financeiros internacionais (e inspiraram as propostas do PT), como instrumento de manutenção da crescente superpopulação relativa em patamares mínimos de sobrevivência e de pacificação social. Ou mesmo demarquem do que Bolsonaro está articulando, com o nome de Renda Brasil ou qualquer outro nome.
Em nossas campanhas, uma renda básica deve estar associada a propostas de redução da jornada de trabalho sem redução de salários e deve ser dissociada de qualquer relação com a degradação e/ou privatização dos serviços públicos (ao estilo dos “vouchers” para utilização de serviços privados) e com a financeirização da economia (privatização da gestão financeira dos auxílios). Porque para nossas candidaturas, a renda básica só faz sentido como reivindicação transitória, explicitando a necessidade de planejamento econômico para além da lógica do capital, com menos horas de trabalho para que todas e todos possam trabalhar e viver uma vida que faça mais sentido. Assim como deve ser permanentemente afirmada a importância das políticas sociais universais (saúde, previdência, assistência, educação, transporte público, etc.), sempre públicas, gratuitas e de qualidade, sem as quais, mesmo com renda básica, as parcelas mais precarizadas da classe continuarão sem recursos para buscar no mercado direitos essenciais a sua sobrevivência, que os serviços públicos sucateados e privatizados não lhes disponibilizam mais.
Relações de trabalho e direitos trabalhistas e previdenciários
Governos municipais podem iniciar processos de redução da jornada de trabalho e criação de novos turnos nas diferentes áreas do serviço público, assim como estabelecer critérios de contratação de empresas prestadoras de serviços e fornecedoras de insumos a partir do respeito aos direitos trabalhistas de seus empregados(as), do compromisso com a formalização do trabalho em toda a cadeia de fornecedores dessas empresas e do respeito a padrões de preservação ambiental.
Tanto em relação aos concursos públicos para os quadros efetivos de servidores(as) municipais, quanto para as frentes de trabalho, devem ser aplicados critérios de ação afirmativa, que garantam a contratação de setores discriminados no mercado de trabalho, seja por critérios raciais ou os que garantam emprego à população LGBTQI+ e a isonomia e paridade na contratação e no pagamento de homens e mulheres, incluindo os altos escalões do secretariado e empresas municipais.
Diante do elevado grau de precariedade e informalidade da força de trabalho, é preciso apresentar as garantias do direito ao trabalho aos trabalhadores ambulantes, apontando, porém, para a necessidade de complementá-lo com os demais direitos sociais. Governos municipais possuem limites para isso, mas podem criar programas que facilitem o acesso aos direitos previdenciários e criar regulamentações que avancem na formalização e limitem a superexploração do trabalho também no mercado informal.
Se afirmamos que o conjunto do programa de candidaturas apresentadas pela esquerda socialista deve ser identificado e abraçado pela classe trabalhadora como seu, as propostas relativas ao emprego e renda, nas condições estruturais do capitalismo dependente e na conjuntura de crise capitalista que atravessamos, mostram-se essenciais para esse objetivo político.
Afinal, a classe trabalhadora não se joga voluntariamente no abismo da crise social: ela é empurrada pelo imperativo do lucro, que comanda as vidas e brinca com as mortes na sociedade burguesa. Cabe a nós apresentar, mais que palavras, saídas. E reafirmar, novamente com Maiakóvski:
“E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho”
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