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MUNDO

Apoiar luta dos trabalhadores, mulheres e juventude contra ditadura de Lukashenko: por alternativa dos trabalhadores, antineoliberal e anticapitalista

Márcio Musse, Londres (Reino Unido)*
Vasily Fedosenko/Reuters

Cenário global: Crise econômica, social e sanitária sem precedentes e ascensão das lutas

No final de semana que marcava o fechamento do verão europeu – 19 e 20 de setembro – a Bielorrússia vivia, como de praxe, massivas manifestações contra o governo Lukashenko. No sábado, onde as manifestações feministas vêm abrindo alas para os grandes atos gerais dos domingos, a repressão governamental prendeu centenas de mulheres. A brutal repressão não arrefeceu os atos do dia 20, e ao longo da semana mais setores operários anunciam se juntar ao movimento de greves contra o governo. No último dia 24 (setembro), Lukashenko “tomou posse” para um novo mandato, em uma cerimônia relâmpago e que não foi anunciada com qualquer antecedência – o que gerou mais protestos e reflete a ilegitimidade do governo e a crise política e institucional que atravessa o país.

Mesmo antes da pandemia de Covid-19 se espalhar por todo o planeta, já se observavam elementos de um possível novo ciclo de crise econômica global. Com a crise sanitária que rapidamente se propagou por todos os continentes, esta crise econômica tomou proporções qualitativamente superiores, superando em larga escala a crise de 2008 e comparável, se não maior, que a grande crise do final dos anos 1920. Esse processo também aprofundou uma crise geopolítica que já vinha acumulando tensões, marcada principalmente pela disputa entre o imperialismo dos EUA e o bloco de novas potências disputando essa hegemonia até então inquestionada, principalmente a China e, em menor escala, a Rússia.

Junto a esse processo, observamos um importante processo de lutas em vários países que, combinado à crise geminada sem precedentes, tem o potencial de alterar a correlação de forças entre as classes em nível internacional. Mesmo antes da eclosão da pandemia, já eram apontados processos como a semi-insurreição no Chile e no Equador, em países do centro-norte africano, a poderosa luta contra a Reforma da Previdência na França – dentre outros. Com a epidemia, e apesar do isolamento social e a redução na mobilidade exigida pela questão sanitária, esse processo não retrocedeu. Pelo contrário, prosseguiu e ganhou impulso e força. Logo no início, greves e mobilizações de trabalhadores nos serviços essenciais, como as wildcat strikes (greves pela base em vários setores como saúde, fábricas e logística) ocorreram na Europa e na América do Norte. Além disso, processos de luta por questões democráticas ou frente a crises econômicas vem ganhando terreno em várias partes do mundo, como no Líbano, e mais recentemente na Tailândia. Porém, a explosão social nos EUA a partir do covarde assassinato de George Floyd pela polícia de Minnesota – que teve a questão antirracista como eixo ordenador, mas varreu o mundo e impulsionou uma luta mais ampla de trabalhadores, juventude e setores oprimidos – alçou esse fenômeno a um patamar qualitativamente superior ao colocado até então.

É a partir desse cenário, da análise da situação mundial e das perspectivas da luta social e como a esquerda pode virar a correlação de forças atual – que devemos analisar esse assunto que vem gerando polêmica dentre correntes e ativistas em várias partes do planeta: a insurreição democrática na Bielorrússia.

O caráter da economia bielorrussa

Primeiramente, é preciso afirmar o óbvio: a URSS e os demais estados operários (mesmo que degenerados pelas direções e governos de orientação estalinista por décadas) do Leste Europeu não existem mais há cerca de três décadas. Houve um processo de restauração capitalista em todos esses Estados, com formas e matizes distintos, que levaram a que tais economias já tenham completa esta transição. E isso inclui a Bielorrússia.

O país, de pouco menos de 10 milhões de habitantes e área pouco maior que o estado do Paraná, tem 70% de sua população vivendo em áreas urbanas. Quando a URSS foi dissolvida, a Bielorrússia era uma das nações mais industrializadas do planeta em proporção ao PIB, e a mais rica da CEI (Comunidade dos Estados Independentes). Ainda hoje, a presença da indústria é bastante significativa na economia do país, e cerca de 30% da classe trabalhadora bielorrussa – com significativa presença feminina – está empregada diretamente na indústria.

A Bielorrússia adotou um modelo de restauração capitalista distinto dos demais países do Leste Europeu. Diferente do modelo majoritariamente adotado, o país não sofreu com uma onda massiva de desindustrialização e privatizações. Hoje, 70% da economia do país segue na mão de empresas estatais, principalmente em seus setores essenciais: tratamento de petróleo russo para exportação à Europa, maquinários, fertilizantes, dentre outros. Muitas fábricas seguem os modelos de organização antigos, com grandes plantas, creches e benefícios aos trabalhadores. O nível educacional da população é alto, e os índices de pobreza estão dentre os mais baixos de toda a Europa. Baseado na alta qualificação da população, um setor que cresce dinamicamente no país é o de Tecnologia de Informação (desenvolvimento de softwares).

Porém, a Bielorrússia não tem uma economia planificada de forma ou que se sustente por si mesma. A dependência econômica com a Rússia vem aumentando a cada ano, em uma relação que não permitirá ao governo de Minsk manter o modelo atual por muito tempo. Moscou vem reduzindo significativamente subsídios ao comércio com o vizinho, e já avia anunciado acelerar esse processo nos próximos anos. E os investimentos chineses vem sendo qualitativos na última década, principalmente em TI e indústria automobilística. Esse aumento de dependência russa e os elementos de insustentabilidade do modelo econômico local estão na base objetiva do processo de questionamento que varre o país.

O governo Lukashenko

Alexander Lukashenko governa a Bielorrússia desde o estabelecimento da república em 1994, após o fim da URSS. Desde então, vem sendo reeleito em eleições e referendos com amplas denúncias de fraudes e irregularidades. Além disso, o país é conhecido por um estrito controle de informações e repressão a movimentos e personalidades opositoras – tendo um temido serviço de inteligência e polícia política que mantém o nome de KGB e é conhecido por torturas e desaparecimento de opositores. Por isso, detém o título de “último ditador da Europa”.

Seu perfil é controverso e se assemelha aos populistas de extrema-direita que estão em outras partes do mundo. Já foi internacionalmente criticado por comentários homofóbicos, e mais recentemente pela postura ultra negacionista frente à pandemia de Covid-19. Na época, Lukashenko declarou que a melhor forma de combater o vírus era com vodka. Sua péssima gestão da pandemia, assim como ocorreu em outras partes do mundo, foi sem dúvida um elemento subjetivo que impulsionou seu desgaste e ampliou as mobilizações no país.

Sua base de apoio está nos setores burgueses ligados ao grande aparato industrial estatal, a alta burocracia destas estatais e a cúpula dos órgãos de repressão do Estado. Entre as camadas populares, concentra-se nos mais velhos, principalmente nas áreas mais rurais do país. Nestes, assim como em outros países (podemos usar como exemplos os vizinhos Putin e Duda, de Rússia e Polônia), baseia-se em um discurso ultrarreacionário no tocante às liberdades individuais e apostam em temas como a homofobia. Um jornal europeu entrevistou um apoiador de Batjka (seu apelido entre os apoiadores, que significa algo como papai), que declarou queos valores ocidentais já estão aleijando as sociedades, e Lukashenko é um garantidor de nossos valores bielorrussos e cristãos” e mais adiante que “com a Bielorrússia se alinhando ao Oeste, em breve veremos transexuais de mãos dadas marchando pelo centro de Minsk2.

Lukashenko vinha tendo atritos com Putin, principalmente pelas políticas do governo de Moscou que, de forma crescente, aumentavam a dependência e pioravam as condições da Bielorrússia nessa relação bilateral. Chegou a afirmar em janeiro deste ano (2020) que Putin queria anexar seu país, e prendeu alguns de seus opositores sob acusação de “agentes russos com o fim de desestabilizar o país”. Hoje, tem no autoritário presidente russo seu principal (e um dos poucos) aliado para enfrentar a insurreição em seu país.

A semi-insurreição democrática

O processo de desgaste do governo Lukashenko vinha aumentando no último período, principalmente pelas razões descritas nos parágrafos anteriores. É difícil quantificar o desgaste, pois não há pesquisas de opinião independentes na Bielorrússia, e toda essa informação é diretamente controlada pelo governo e a KGB. Um movimento de oposição liberal, pró-EU, vinha ganhando força e era dirigido por setores burgueses emergentes e um YouTuber, Sergei Tikhanovsky, que fazia vídeos denunciando e satirizando o governo. No final de maio, Tikhanovsky foi preso sob acusação de “agente infiltrado”. Sua prisão começou a desencadear protestos, que eram sistematicamente reprimidos, com milhares de presos entre maio e a eleição, em agosto.

Em junho, Viktar Barbaryka, um banqueiro que era o principal candidato de oposição a Lukashenko, foi preso e retirado da corrida presidencial. Com essa prisão, a esposa do YouTuber Tikhanovsky, Svetlana Tikhanovskaya – que até então não era uma personagem no tabuleiro político bielorrusso – registrou sua candidatura a presidente. Sua plataforma de governo era bem sucinta, e tinha como pontos centrais a abertura do regime (libertação dos presos políticos e limitação de mandatos) e apoio à geração de pequenos negócios.

No dia das eleições, a polícia e o exército ocuparam as ruas, e praticamente toda a internet foi derrubada no país – o que o governo atribuiu a um “ataque externo”. Ao final, o governo declarou vitória de Lukashenko com cerca de 80% dos votos, o que desencadeou protestos crescentes – que seguem crescendo até os dias atuais. Tikhanovskaya e outras figuras da oposição se exilaram em países vizinhos, em meio a denúncias de ameaças, sequestros e outros crimes da KGB.

Estes protestos se refletem de várias maneiras. Há os protestos massivos nas ruas, não somente de Minsk, mas de várias cidades do país. Centenas de milhares, em sua grande maioria jovens, com bandeiras vermelho e brancas – a bandeira nacional do país até sua incorporação na URSS. Há os protestos de Mulheres, iniciados com mais peso a partir de setembro, trazendo as bandeiras de combate ao machismo e de defesa dos direitos LGBT. E, fundamentalmente, o carimbo da classe trabalhadora industrial, com greves massivas nas principais fábricas do país, com destaque às greves unificadas nas fábricas de tratores, automóveis, maquinários, fertilizantes, mineiros – dentre outras categorias. No final de agosto, Lukashenko foi falar aos operários da maior fábrica de tratores de Minsk – onde recebeu uma vaia categórica e coros de “renuncie” e “vá embora”. É mais um exemplo onde setores oprimidos, a juventude e a classe trabalhadora se unificam em um processo de luta, para que não paguem a conta da crise que se inicia e contra qualquer ataque a direitos e liberdades democráticas.

A resposta do governo é mais repressão. Lukashenko recentemente afirmou que “só sai morto” do Palácio, e Putin garantiu apoio “no que for necessário” para conter o processo. As prisões de ativistas se dão aos milhares, e denúncias de assassinatos e torturas nas prisões estão em todos os lugares. Mas a luta não esfria, o processo parece ainda estar crescendo. A insurreição bielorrussa ainda não tem um desfecho definido – e já é um dos divisores de água na esquerda mundial nesse importante momento.

Como deve se posicionar a esquerda socialista frente à insurreição na Bielorrússia

Sem dúvida, a não adoção da cartilha neoliberal nos anos 90 pelo governo Lukashenko, mesmo com todas as limitações de seu projeto econômico e social, permitiu que a Bielorrússia mantivesse por mais tempo conquistas de quando não era uma economia capitalista. Sua industrialização, alto nível educacional e não privatizações permitiram que o país mantivesse por mais tempo índices sociais melhores que a maioria dos países europeus e os EUA. E também é óbvio que é preciso denunciar Trump e a União Europeia, bem como os setores burgueses bielorrussos que defendem a “modernização”- ou seja, a aderência da economia do país a essa cartilha de privatizações e austeridade – querem impor um modelo que visa jogar por terra de forma rápida todo esse patrimônio do povo e da classe trabalhadora bielorrussa.

A classe trabalhadora bielorrussa e seus aliados populares, como a juventude, as mulheres e os LGBT demonstraram já terem entendido que o modelo econômico de Lukashenko está fadado ao colapso, que tende a se acelerar com a crise econômica gigante que assola todo o planeta. E que a relação de dependência com a Rússia de Putin significa para eles a perda de suas conquistas e condições de vida. E mais que isso, não tolera a mordaça que o governo lhes impõe, não os permitindo se organizar e decidir seu próprio destino. Não querem um Papai, ainda mais agora que ele os está entregando de bandeja a Moscou. Querem ser o sujeito, o protagonista de seu próprio destino. Isso é algo extremamente progressivo.

O imperialismo (europeu, principalmente) se posiciona para surfar esse processo e canaliza-lo para sua agenda de pilhar as riquezas da Bielorrússia. Seria um erro mortal se as organizações socialistas se posicionassem contra essa luta, justa e correta, pelo fato do imperialismo ocidental estar disputando sua direção. O sujeito somos nós: a classe trabalhadora, a juventude, os oprimidos. Os métodos são os nossos: greves unificadas, produção paralisada, passeatas de massas (com eixos progressivos: democracia, liberdades). Disputemos o programa, sem empenhar qualquer apoio ou confiança nas direções burguesas, como o banqueiro. Até para, se o processo for vitorioso e as direções imperialistas triunfarem em os canalizar, essa mesma classe poderá fazer a experiência e lutar por sua agenda. Ou será um passeio para o banqueiro Barbaryka ou qualquer político pró EU privatizar as fábricas e demitir milhares de trabalhadores após um processo vitorioso de insurreição operária e popular?

Não existe o menor sentido em se colocar ao lado da ditadura Lukashenko – por esse ser um “campo” do capital internacional que se choca contra os imperialismos centrais – virando as costas para lutas de trabalhadores e populares por demandas progressivas. Esse desvio, chamado campismo, desarma as organizações de esquerda e a classe trabalhadora. Coloca as mesmas contra os movimentos progressivos, e ao lado de direções que sabemos que são nocivas, causando derrotas e desmoralização. Essa é uma das características do estalinismo (ou o neoestalinismo, que vem aparecendo em setores da esquerda ultimamente) – a de jogar a classe trabalhadora de mãos atadas no colo de seus algozes.

Por isso, os socialistas de todo o mundo devemos apoiar a insurreição dos trabalhadores e do povo da Bielorrússia. Cerca-la de solidariedade internacional, seguir seu exemplo. Denunciando suas direções, e preparando as próximas lutas contra elas. Esse é o método consequente para a esquerda socialista intervir nessa “nova realidade” que teremos pela frente, na Bielorrússia ou em qualquer outra parte do mundo.

*Marcio Musse é membro da Comissão Internacional da Resistência

 

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