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Por que a candidatura Boulos/Erundina é um catalisador eleitoral?

Boulos discursa em um palco. Ele está com máscara e camisa preta. Ao lado, uma placa roxa com o nome dele e de erundina. Ao fundo, casas com tijolos aparentes
Reprodução / instagram

Para marcar o compromisso com a periferia, a convenção que homologou as candidaturas foi realizada em um campo de futebol na comunidade do Morro da Lua

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Experiência é o nome que a gente coloca nos erros
Sabedoria popular judaica

A campanha eleitoral em São Paulo se inicia com uma aparente surpresa. Pela primeira vez, na mais importante cidade do país, a candidatura do PSol vê confirmado nas primeiras pesquisas que está na frente da candidatura do PT. A candidatura Boulos/Erundina parece cumprir um papel catalisador. Um catalisador é algo que aumenta a velocidade de uma reação.

Em Belo Horizonte, Áurea Carolina está pontuando, também, na frente de Nilmário Miranda do PT. Já tinha acontecido antes, no Rio de Janeiro, em 2016, com Marcelo Freixo. Candidaturas majoritárias do PSOL já tinham superado as do PT, como em Belém com Edmilson Rodrigues. Mas agora é diferente.

Construir lideranças que têm audiência e respeito de massas não é simples, ao contrário, é difícil e complexo. E Boulos e Erundina, Áurea e Edmilson são lideranças inspiradoras. Não é, contudo, essencialmente, pela autoridade pessoal dos candidatos que este fenômeno está acontecendo. A questão é política.

São muitos fatores que explicam esta inversão de lugar entre PSol e PT, mas ela não é um acidente. Tampouco é um fenômeno efêmero. Ela culmina um processo que começou vários anos atrás. Expressa uma reorganização no espaço à esquerda.

É verdade que parece paradoxal, porque o fortalecimento de uma ala mais radical da esquerda só se demonstrou, historicamente, possível depois de uma onda de lutas e, afinal, viemos acumulando derrotas desde 2016. Mas, seria miopia prestar atenção somente ao desfecho dos processos. Que a onda de lutas de resistência tenha sido até agora derrotada, não anula que ela existiu, e foi muito importante.

Mas só pode ser explicada tendo um pouco de perspectiva. A compreensão da situação brasileira exige atribuir sentido a três momentos chaves da luta de classes: as jornadas de junho de 2013, o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018. Estes são os momentos chaves de confronto, porque foram qualitativos para a mudança da relação social de forças entre as classes. Perdemos, mas não foi sem luta. A esquerda radical brasileira está hoje, relativamente, mais forte porque passou a prova da história nestes três combates decisivos.

Foi desafiada, em primeiro lugar, pelas jornadas de junho. Foi um processo muito amplo, só comparável, pela escala de milhões nas ruas, com as Diretas Já em 1984 e o Fora Collor em 1992. Junho de 2013 estava social e, politicamente, em disputa. Nas ruas havia, evidentemente, de tudo, até os fascistas. Mas havia também uma nova geração da classe trabalhadora urbana, mais instruída do que a dos seus pais, fazendo o seu “batismo” político.

Junho de 2013 foi acéfalo, mas foi, também, a antessala da Primavera feminista, das imponentes mobilizações LGBT’s contra Marcos Feliciano, das ocupações de escolas secundaristas, de um ascenso do movimento negro, além do impulso a outros movimentos, como o ambiental, o de Direitos Humanos, ou o de descriminalização do consumo de drogas. A esquerda mais combativa se posicionou ao lado desta onda. Dez anos depois da posse de Lula, Junho de 2013 deixou um PT envelhecido e devorado pela institucionalização burocrática, atônito, perplexo, confuso e, essencialmente, paralisado.

A ausência de uma direção política levou o PT a desconsiderar o seu caráter popular e, pior, a condená-lo como, politicamente, regressivo. Evidentemente, embriões do que veio a ser a onda conservadora se expressaram em 2013, mas ela explodiu com força somente em 2015, em função das sequelas da operação Lava-Jato, não em 2013. Tanto que ainda foi possível, vencer as eleições presidenciais de 2014.

A esquerda radical passou por uma segunda prova de fogo complexa entre o final de 2015 e 2018. Várias correntes e organizações se dividiram, mas, se consideramos o desfecho com grandeza, sobreviveu, e hoje está mais forte do que era. O desafio era fazer, rapidamente, uma curva de reposicionamento diante da iminência de um golpe institucional. Fazer curvas políticas em alta velocidade é muito perigoso. É fácil derrapar e capotar.

A esquerda socialista estava em um campo de oposição ao governo Dilma/Rousseff/Joaquim Levy. Mas, a iminência do golpe exigia que ela se colocasse ao lado do PT contra o golpe. A mudança brusca exigia lucidez e coragem.

Há dois perigos quando se enfrenta o desafio de fazer uma curva. Subestimá-la, e seguir o rumo anterior, diminuindo a máxima gravidade do que era o deslocamento da maioria burguesa para o impeachment, e ser cúmplice da operação reacionária. Ou superestimá-la, e perder a independência política crítica diante do PT, e ficar prisioneira da força de gravidade do lulismo. Houve quem cometesse esses erros.

Mas o MTST e o PSol passaram esta prova da história. Estiveram na defesa do mandato de Dilma e contra a prisão de Lula. Tiveram a lucidez de convergir desde então, construindo a candidatura de Boulos à presidência em 2018, mas na primeira linha da campanha de Haddad no segundo turno, da campanha Lula Livre, e da defesa de uma Frente de Esquerda na oposição a Bolsonaro.

Esta reorientação não poderia ser feita sem conflitos internos, porque sempre há forças de inércia em qualquer organização, inclusive as mais revolucionárias. Eles existiram, mas prevaleceu uma compreensão comum construída nas lutas de resistência nas jornadas de junho de 2013, e na luta contra o golpe. Sim, houve uma onda de resistência ao golpe, embora ela não tenha sido vitoriosa. Ela passou pelas ações de massas em 2016, pela luta contra Temer em 2017, e culminou com o #EleNão e o vira-voto na véspera das eleições em 2018. E a chama permaneceu viva como vimos no tsunami da educação em 2019.

Esta história oferece o contexto do apelo da candidatura do PSol. Não é, portanto, correto dizer que Boulos/Erundina tem o mesmo programa que a candidatura do PT, e que conquistou um lugar dirigente porque o PT errou de candidato. Tampouco é justo com Tatto. Todos os candidatos do PT carregam um fardo pesado nas costas.

Um programa é uma compreensão comum da situação e as lições do que fazer. A compreensão do PSol é diferente daquela que é majoritária no PT. Temos apreciações muito diferentes do que foram os treze anos de governos do PT.

Não estávamos de acordo com a política econômica do Governo Dilma, nos opusemos às metas do superávit primário de Levy, à elevação dos juros, aos cortes no orçamento para a educação e saúde, à liberação do fluxo de dólares que desvalorizaram o real, que eram a principal orientação do Planalto para confortar os “investidores”, o novo eufemismo para burguesia. Nunca concordamos com as alianças no ministério que fortaleceram Michel Temer e o MDB. Nunca tivemos ilusões na política do Itamaraty, depois da presença das tropas no Haiti, da recusa de oferecer asilo para Snowden, da impotência diante da ofensiva contrarrevolucionária na Venezuela.

Tampouco abraçamos a mesma estratégia política. A estratégia da esquerda radical não é o quietismo eleitoral na espera de 2022. É a luta pela derrubada de Bolsonaro, porque o perigo desta situação reacionária se degradar em uma derrota histórica de sequelas irreversíveis por muitos anos é demasiado grande para confiar que as instituições do regime são um obstáculo suficiente para deter o perigo neofascista.

Mas não existe matrimônio indissolúvel entre classe e partido, entre sujeito social e político na luta de classes. A construção do PT e a liderança de Lula foram um enorme salto em frente para a classe trabalhadora nos anos oitenta, mas não tem mais o monopólio da sua representação. Não é possível. A classe trabalhadora brasileira mudou. E o PT também, mudou.

São os erros que explicam a decadência. O PT está sendo pressionado pela direita pelo impacto do auxílio emergencial do governo Bolsonaro sobre as populações mais desamparadas e desvalidas, mas desorganizadas. E o PT está sendo deslocado pelo fortalecimento do PSol pela esquerda. O primeiro processo é reacionário, mas o segundo é progressivo.

São muitos os fatores objetivos e subjetivos que explicam esta crise, que deve ser compreendida no marco de uma longa decadência. Um partido eleitoral encontra dificuldades quando as suas perspectivas eleitorais encolhem.

O PT tem como aliado principal o aparelho da CUT, muito debilitado, mas ainda o principal polo das organizações sindicais mais importantes nos bastiões mais organizados da classe. A implantação do PT está concentrada nos interiores do nordeste, nas periferias populares das regiões metropolitanas, e na geração veterana, portanto, envelhecida, da esquerda brasileira. O PT não é mais a principal referência para juventude popular ou universitária, e perdeu autoridade nos setores médios progressistas.

Existiram três posições na esquerda sobre o destino do PT. Alguns apostam que não seria superado. Outros que só poderia ser deslocado pela direita. E, finalmente, aqueles que sustentaram que poderia ser ultrapassado pela esquerda. O último Congresso Nacional do PT, no final de 2019, não resolveu a crise interna que o partido vive depois das derrotas acumuladas, mesmo se atenuada pela saída de Lula da prisão.

Porque um dia Lula faz uma declaração estilo Jeremy Corbin, mas outro dia incorpora Tony Blair. Um dia alerta que Bolsonaro é um golpista, mas outro dia diz que aceita o direito de Bolsonaro exercer o seu mandato até o fim. Um dia defende o Fora Bolsonaro, mas outro dia se deixa fotografar com Renan Calheiros.

Não parece muito animador.