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OPRESSÕES

Identidade, Raça e Classe

João Gabriel Almeida, do ABC Paulista
detalhe com símbolos na cor preta com um fundo branco. um x, um círculo, um quadrado..

Detalhe da capa do livro “Armadilha da Identidade”, de Asad Haide (Editora Veneta)

Há poucos dias me deparei com um excelente texto de meu camarada Elber, a quem muito admiro. Pra além da linha argumentativa precisa, aquele artigo me atraiu muito pela forma e falta de reverência. Trotsky e Fanon não foram elencados no debate pela requentada via da devoção e busca pela pureza do esquerdismo, houve um diálogo vivo entre estes revolucionários e a história do protesto negro estadunidense _ debate esse que também muito tem me inspirado.

Outra alegria se deu ao ler a discussão sobre o papel da identidade na luta pela emancipação dos explorados. “As armadilhas da identidade” são duas, como nos conta Asad Heider(1): de praticar uma política identitária propriamente dita; de praticar uma política que busca anular ou se apartar do potencial reivindicatório das identidades minorizadas do poder político. A primeira emboscada é da origem da política identitária que é nascida do supremacismo branco e da justificação racista sobre o genocídio e colonialismo negro do século XX. A segunda emboscada é fingir que a negritude é um reflexo invejoso da branquitude, do desejo individualista de dominação _ que é a forma de reconhecimento do Capital _ e não carrega em si poder legitimamente emancipatório.

Inspirado no golpe bem dado às tendências reacionárias, pretendo estender essa crítica agora pelo avesso, pra pegar nossos inimigos com a guarda baixa. Sem mais delongas o ponto é o seguinte: sem ter em mente a invenção da colônia e da raça, não é possível compreender e muito menos derrotar o capitalismo. E isso passa pelos domínios territoriais da identidade.

Classe ou Raça?

A relação entre raça e classe como categoria de análise da realidade material é extremamente complexa, sem dúvida. Mas ela é tão complexa quanto as categorias “raça” e “classe” são complexas e incompletas elas próprias. Sábias palavras sobre essa relação foram expostas por Heider durante a apresentação de “Armadilha da Identidade” em São Paulo:

Eu acredito que a questão sobre a relação entre raça e classe contém uma mistificação. Isso se dá porque raça e classe não são objetos que existem na realidade material. São conceitos abstratos que utilizamos para compreender aspectos de uma realidade material complexa. […] Então não podemos determinar a relação entre raça e classe ao nível de abstração porque existem apenas abstrações que nomeiam aspectos de coisas que já estão conectadas na realidade material. (2)

É sobre essa mistificação da relação entre aspectos que foram conectados de profundas e diferentes formas na história que quero dar conta aqui. A realidade é que as contradições do capitalismo e a vitória parcial de um tipo específico de sociedade de mercado da democracia liberal não estavam inscritas em pedra. E o fim do comércio de escravos e da colonização formal não foram resultados espontâneos de um período em que a “burguesia ainda era uma classe revolucionária”. A própria emergência do marxismo é um exemplo típico do que quero dizer, pois foi uma completa exceção à regra das ciências sociais de seu tempo por desconsiderar a raça como argumento essencial que justifica relações de dominação entre grupos sociais ou étnicos(3). Fossem os humanos seres centenários, estaria certamente na nossa memória que as tendências do racismo científico e culturalista disputavam o paradigma sobre a questão racial até a derrota do nazismo na II Guerra Mundial. A questão é que a sociedade escravista, fundamentalmente estratificada nos direitos humanos mais básicos era parte da visão de mundo predominante na burguesia comercial dos primeiros séculos. E mesmo os conceitos de liberdade, cidadania e democracia dos mais influentes ideólogos do liberalismo estavam em disputa entre uma meritocracia voluntarista e uma alteridade radical, frequentemente recaindo em explícito racismo.

Uma evidência dessa tragédia histórica pode ser encontrada no quadro social enxergado por Frantz Fanon em “Os condenados da Terra” sobre a dominação europeia de diversos territórios africanos:

Nas colónias, a infraestrutura é igualmente uma superestrutura. A causa é efeito: se é rico porque é branco, se é branco porque é rico. Por isso, as análises marxistas devem modificar-se ligeiramente sempre que abordam o sistema colonial. Mesmo o conceito da sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, teria que ser de novo formulado. O servo é de uma essência diferente da do cavalheiro, mas é necessária uma referência ao direito divino para legitimar essa diferença de classes. Nas colónias, o estrangeiro impôs-se com a ajuda dos seus canhões e das suas máquinas. […] Não são as fábricas, as propriedades nem a conta no banco que caracterizam principalmente a “classe dirigente”. A espécie dirigente é, antes de mais, a que vem de fora, a que não se parece aos autóctones, os brancos. (4)

O mercado de consumo, junto a realidade política das classes e por fim a sociedade de mercado estiveram ausentes em mais da metade do mundo em uma era em que o capitalismo como modo de produção já era o centro dinâmico da história a mais de dois séculos. Isso significa que o próprio capitalismo _ entendendo este “ismo” ao modo de Marx, como algo muito mais complexo do que uma mera ideologia _ precisa ter seu entendimento ampliado como categoria de análise ou se tornará um particularismo europeu de estreito recorte histórico. Fanon vai ainda mais longe ao apresentar um entendimento sobre a dialética da colonialidade. Como o interpreta Davison Nkosi, 

[para Fanon,] o capitalismo, enquanto sistema de exploração econômica, que não dissolveu as desigualdades raciais nem a própria reprodução da exploração de classes, estrutura-se a partir de uma existência racializada. (5)

Uma bela prova desse raciocínio está em “A Grande Transformação” do economista e sociólogo Karl Polanyi quando ele examina historicamente a destruição dos laços comunitários e abrupta separação entre os camponeses e seu meio de sobrevivência no século XVIII para suprir as necessidades da nascente mão de obra urbana necessitada pelo processo de proletarização no momento subsequente. Polanyi nos alerta sobre como esse movimento destrutivo, sob uma noção estreitíssima de liberdade burguesa _ que é nada mais que uma rede restrita de tiranias institucionalmente organizadas para exploração do trabalho humano sem a presença de qualquer resquício de compromisso comunitário _ apresentava uma tecnologia muito semelhante ao que seria reproduzido depois nas plantations coloniais. Em um diálogo com a obra do socialista utópico Owen, Polanyi argumenta que

[o] historiador social, porém, não segue a sugestão. Ele ainda se recusa a ver que a força elementar do contato cultural, que está agora revolucionando o mundo colonial, é a mesma que, há um século, criou as cenas funestas do capitalismo primitivo(6)

O exemplo sobre a criação do “livre mercado” aplicado externamente a Índia é o exemplo fatal de Polanyi na questão. É absurdamente clara a semelhança da situação indiana com a tragédia social em que os camponeses foram transformados em esfomeados “exército de reserva”:

As massas indianas não morriam de fome na segunda metade do século XIX porque eram exploradas pelo Lacanshire; elas pereciam em grande número porque a comunidade aldeã indiana havia sido abalada. […] As três ou quatro grandes fomes que dizimaram a Índia sob o governo britânico, desde a rebelião, não foram portanto conseqüência nem dos elementos, nem da exploração, mas simplesmente da nova organização do mercado de trabalho e da terra, que desmoronou a antiga aldeia sem resolver realmente os seus problemas. […] A catástrofe da comunidade nativa é um resultado direto da ruptura rápida e violenta das instituições básicas da vítima […].  Essas instituições são dilaceradas pelo próprio fato de que uma economia de mercado é impingida a uma comunidade organizada de modo inteiramente diverso; o trabalho  e a terra se transformam em mercadorias, o que, mais uma vez, é apenas a fórmula abreviada para a liquidação de toda e qualquer instituição cultural numa sociedade orgânica. (7)

Essas longas aspas também nos servem para qualificar o que é a exploração capitalista quando o estado das coisas parte da acumulação primitiva para a superexploração e se estabiliza institucionalmente _ ou como argumentaria Rosa Luxemburgo, uma acumulação primitiva que ocorre nas neocolônias em modo perpétuo. Nos ajudam a compreender que, em determinado momento do desenvolvimento histórico das potências imperialistas, as próprias massas camponesas destes países estiveram na antessala do inferno que posteriormente conheceriam os povos do “novo mundo”.

Está feita a unidade entre colônia, raça e a invenção da modernidade. Seria tudo mais fácil se Marx tivesse mastigado a declaração “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso” para o significado da modernidade não? Pois ele o fez em mais de uma ocasião. Vejamos:

A profunda hipocrisia, a intrínseca barbárie da civilização burguesa se apresenta diante de nós sem disfarces, assim que das grandes metrópoles, onde elas assumem formas respeitáveis, voltamos os olhos para as colônias, onde passeiam desnudas.(8)

Marx se refere nessa declaração ao mesmo empreendimento colonial da Inglaterra na Índia citado por Polanyi, mas é possível encontrar a extrapolação dessa declaração para todo o sistema colonial em uma carta anterior de Marx de 1846 onde se referia a escravidão de negros no continente americano.

A escravatura directa é o eixo do nosso industrialismo actual, tal como as máquinas, o crédito, etc. Foi a escravatura que deu valor às colónias, foram as colónias que criaram o comércio mundial, o comércio mundial é que é a condição necessária da grande indústria mecânica. Por isso, antes do tráfico dos negros, as colónias só davam ao velho mundo muito poucos produtos e não alteravam visivelmente a face do mundo. Assim, a escravatura é uma categoria económica da mais alta importância. Sem a escravatura, a América do Norte, o povo mais progressivo, transformar-se-ia num país patriarcal.  (9)

Oras, qualquer bom marxista nos apontaria que uma categoria social de tal importância explicativa na realidade precisaria ter parte importante nas definições da intelectualidade burguesa. Tal coisa se verifica em toda parte nos clássicos do liberalismo. Quem diz que Domenico Losurdo no “Contra-História do Liberalismo” (10) fez uma crítica anacrônica e baseada em história pessoal dos intelectuais claramente não leu o livro. Mesmo se discordarmos da ênfase da obra em uma fatia ligeiramente mais conservadora do liberalismo, é importante ter em mente que parte relevante das bandeiras democráticas foram em parte expressos em um setor da burguesia _ que assumia a hegemonia em alguns momentos da história _ ora como manobra tática para derrotar a nobreza, ora como reação da consciência ou do pragmatismo da burguesia ao protesto das classes populares. Bom, os exemplos ali são muitos, e não vou me alongar mais nisso, apesar de recomendar que vocês leiam. Mas o relevante aqui é entender que o período que o racismo perdeu o paradigma que justifica a superexploração foi uma exceção na longa história da modernidade. Essa exceção agora ameaça ter se mostrado um pequeno intervalo, uma vez que o supremacismo branco volta agora sofisticado pela junção ao neoliberalismo. Quem não compreender as implicações disso será atropelado pela história.

E a identidade?

Ficaria incrédulo se alguém que concordou com todo meu argumento até aqui ainda acredite que não há nada a ser feito na prática política reacionária de se negar a importância da identidade. Mas talvez o nexo não esteja tão claro pois a categoria “identitarismo” dificilmente é identificada pelo grupo que se identifica como sendo o “universal”. A questão é que a própria ideia de nação é a operação básica do Estado que conforma por si uma hierarquia racial, camuflada ou não no processo de integração social. A vitória do neoliberalismo possibilitou a burguesia replicar sua polarização sobre suas formas restritas ou particularistas de liberdade: ou trabalhando sobre um esvaziamento da potência reivindicatória dos grupos oprimidos pela diversidade como “geradora de valor”; ou trabalhando com outro polo onde transforma o descontentamento sobre a precariedade da vida de um proletariado sem direitos em uma política identitária oposta forjando as identidades oprimidas como inimigo maior. Sobre esse segundo ponto nos disse Paul Giroy:

O impulso populista nos padrões recentes de radicalização é uma resposta à crise de representação. A direita criou uma linguagem de nação que ganha apelo populista a partir de ambiguidades calculadas que permitem transmitir a si própria como uma linguagem de ‘raça’. Ao mesmo tempo, os recursos políticos da classe trabalhadora branca são incapazes de oferecer uma visão, linguagem ou prática capaz de fornecer uma alternativa. Elas são incapazes atualmente de representar a classe como uma classe, isto é, fora das categorias em que o capital a estrutura e a reproduz por meio da ‘raça’. (11)

Os recursos políticos da classe trabalhadora _ ou seja, a esquerda tradicional _ são igualmente identitaristas e, portanto, antirrevolucionárias, se se recusam a disputar o que fazer com a identidade admitindo sem perceber uma identidade conservadora. Silvio Almeida coloca exatamente isso no prefácio de “Armadilha da Identidade” quando diz que “daí podemos ver que ser “anti” qualquer coisa [ele está se referindo ao anti-identitário] é pautar-se, ainda que na chave da recusa, por aquilo que se quer negar”.

Conclusão

Sempre se fez por muito tempo a pergunta de se é possível acabar com o racismo sem acabar com o capitalismo. A resposta da esquerda marxista brasileira costuma ser “não, o racismo só terá seu fim quando o capitalismo acabar”. A resposta está correta, mas pode induzir a erro. Há um outro diálogo possível, que não invalida o primeiro, mas cuja ausência demonstra o grau de reacionarismo de certa esquerda:

P: Será que é possível acabar com o capitalismo sem acabar com o racismo?

R: Não, o capitalismo é constituído pelo racismo. Se pensarmos um dia ter acabado com o capitalismo e a raça ainda tiver alguma importância é porque a burocracia terá transformado, como diz Fanon, “estrutura em superestrutura”. Nosso inimigo terá nos pegado com a guarda baixa.

NOTAS

1 – “Armadilha de Identidade” – https://veneta.com.br/produto/armadilha-da-identidade/

2 –  “Lançamento: Armadilha da identidade” – https://www.youtube.com/watch?v=fIOB6emwZQE&ab_channel=TaperaTaper%C3%A1

3 – “Os condenados da Terra” – https://www.marxists.org/portugues/fanon/1961/condenados/01.htm

4 – Sartre, Fanon e a dialética da negritude: diálogosabertos e ainda pertinentes – https://deivisonnkosi.kilombagem.net.br/wp-content/uploads/2020/03/SARTRE-FANON-E-A-DIAL%C3%89TICA-DA-NEGRITUDE-FAUSTINO_Deivison-2020.pdf

5 – “A grande transformação” – https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/262942/mod_resource/content/2/A_grande_transformac%CC%A7ao_as_origens_de_nossa_epoca_Polanyi.pdf

6 – Idem

7 – “Os resultados eventuais da dominação britânica na Índia” – https://www.marxists.org/portugues/marx/1853/07/22.htm.

8 – “Carta a Pável V. Annenkov” – https://www.marxists.org/portugues/marx/1846/12/28.htm.

9 –  “Contra-história do neoliberalismo” – https://www.travessa.com.br/contra-historia-do-liberalismo-1-ed-2006/artigo/71c4e6e6-fb06-44b7-926a-ec61f4bf40ba?pcd=041

10 – “Armadilha de Identidade” – https://veneta.com.br/produto/armadilha-da-identidade/