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OPRESSÕES

Entre identidades e “identitarismos”

Elber "Cientista", do ABC Paulista

Panteras negras

É necessário realizar uma crítica radical ao “identitarismo”, porém, antes precisamos dizer exatamente o que isso quer dizer, senão atacaremos de forma geral os movimentos contra as opressões, mesmo que sem intenção.

Tal crítica precisa atingir as ideologias que enxergam as identidades como essências eternas, perfeitas e imutáveis. O mundo, sabemos, move-se, as identidades também. Qualquer tentativa de tentar capturar uma imagem estática de uma identidade será frustrada, vai dar em um mito, metafísica, folclore.

Mas quando falamos de identidades temos que ter em mente que, primeiro, elas existem, segundo, o modo de produção influencia e delimita a construção destas, então elas serão pautadas primeiramente pela ideologia dominante, não pelos dominados. Logo, o essencialismo da identidade inicia sempre com o essencialismo da identidade dominante. É a partir dos parâmetros da sociedade burguesa que se constroem e se sustentam as identidades dominantes. A sociedade burguesa foi construída pelo burguês europeu, masculino, cis, hétero e branco, não é por acaso que este foi o primeiro indivíduo a ter direitos civis e políticos, e mesmo depois dos outros alcançarem estes formalmente as ideologias opressivas que transformam diferenças em desigualdades fazem com que o direito até mesmo à vida de mulheres, negros, LGBT’s e imigrantes seja negado. Está aí o primeiro identitarismo a ser destruído: o dos opressores.

O essencialismo da identidade também é manifestado por aqueles que lutam por sua emancipação e a isso temos críticas dentro de seus próprios movimentos. A exemplo, Frantz Fanon (1) e Angela Davis (2)  que se confrontaram com certas vertentes da luta anticolonial e antirracista. Mas, isso não quer dizer que há carta branca para a arrogância ao observar o “primeiro mergulho” daqueles se identificam no próprio processo de luta. Para quem é negada a vida, poder usar uma “gíria não, dialeto” indecifrável para quem mora “da ponte pra lá”, ou um pronome neutro, são formas de enxergar-se como pertencente a algo, o que pode ser um primeiro passo para a luta.

Na própria crítica de Fanon a tendências deste tipo, por exemplo, enxergamos um movimento contraditório em direção à superação e não uma negação taxativa. Vamos ao exemplo do debate sobre “consciência nacional” num país colonizado:

“Por seu lado, o proletariado das cidades, a massa de desempregados, os pequenos artesãos, a que costuma chamar-se pequenos ofícios, unem-se a essa atitude nacionalista, mas deve fazer-se-lhes justiça: não fazem mais do que decalcar a sua atitude da atitude burguesa.” (Frantz Fanon, p. 151)

A atitude nacionalista que extremada vai desembocar no chauvinismo e num tribalismo que geram guerras dentro de um mesmo país é sim um enorme problema a ser enfrentado, mas a sua origem está localizada, novamente, na ideologia dominante, no essencialismo da identidade opressora, decalcado, reproduzido, pelo oprimido.

Outra coisa é que na construção desse embate podemos confundir toda e qualquer manifestação que tende a tornar essencial uma identidade, que por vezes é espontânea e parte de uma experiência real com a negação da existência do sujeito, com o conjunto do “movimento pós-modernista” ou “identitarista”. É necessário se perguntar se há algum movimento surgido das massas e organizado deste tipo ou se essas tendências são o resultado de concepções acadêmicas utilizadas pelos aparelhos ideológicos e mídia burguesa em sua ânsia por absorver e domesticar as pautas dos oprimidos. No momento em que os negros lutam e enfrentam de forma cada vez mais radicalizada o racismo, apareceu a Marvel com o seu “Pantera Negra” pacifista (3)  e a Rede Globo com um documentário para internet centrado neste tema(4). Quanto a isso, nenhuma novidade, é a mídia hegemônica cumprindo seu papel de manutenção da ordem.

Movimentos pautados por ideologias que essencializam identidades existem, mas eles são massivos? É esse o centro da conversa? Muito provavelmente não. O que existe em grande número são oprimidos em busca de ideologias que estejam de acordo com o desenvolvimento de seu processo de luta. Se elas são taticamente ou estrategicamente boas, isso merece ser alvo de sérios debates.

Se a “identidade” e seus desdobramentos não fossem temas tão importantes, revolucionários como Leon Trotsky não teriam feito esta discussão com tanta seriedade, confrontando-se com dirigentes de uma organização como o SWP (Socialist Workers Party) (5). Num país, EUA, em que 13% da população é negra, existiu um movimento que dizia que deveria haver uma república só de negros, ou seja, um movimento separatista e nacionalista negro. Alguns dirigentes do SWP diziam que a defesa disto seria um golpe na unidade entre trabalhadores negros e brancos. Trotsky, apontando que não conhecia suficientemente o estado atual desta reivindicação, admitia que se ela fosse mesmo potente e levantada pelo movimento negro deveria ser apoiada pelo SWP, partindo do princípio da autodeterminação dos povos. (6) 

Por que Trotsky disse isso? Trotsky não essencializava nenhuma identidade, seja ela nacional, racial ou étnica. Como sabemos, os revolucionários comunistas são pelo fim das fronteiras entre nações, pois a identidade nacional é fruto de um certo estágio do desenvolvimento histórico, não é eterna, não é insuperável, não é essencial. Mesmo assim, Trotsky assinalava a importância da luta pela autodeterminação negra. Ele dava importância ao “primeiro mergulho”. Teria Trotsky feito um experimento eclético entre marxismo e nacionalismo negro? É uma boa questão, mas podemos dizer que ele apenas enxergou uma possibilidade de desenvolvimento revolucionário, que de forma alguma contrariava os princípios do socialismo científico. 

Levanto isso em conta parece ser bem prejudicial ridicularizar debates como o de caráter linguístico sobre o “pronome neutro”. Pode ser questionado se esse é o centro do confronto contra a opressão de uma sociedade burguesa e LGBTfóbica, afinal, é questionável até que ponto mudanças linguísticas podem transformar a realidade. É necessário também realizar uma discussão sobre comunicação, levando em conta até que ponto este tipo de coisa ergue barreiras ou pontes entre os movimentos e o conjunto dos oprimidos e explorados. Porém, não deve haver dúvidas de que estas não são questões simples. Dentre outras coisas, porque comunicação se realiza em camadas, e o proletariado é diverso, as empresas de comunicação de massa entendem isso cada vez mais, e Trotsky já sacou isso décadas atrás. 

“A poderosa unidade social que representa o proletariado surge em toda a sua amplitude nas épocas de luta revolucionária intensa. Mas no interior dessa unidade, observamos ao mesmo tempo uma incrível diversidade e mesmo uma grande heterogeneidade. […] Se não existisse essa diversidade, o trabalho do partido comunista no domínio da educação e da unificação do proletariado seria de todo simples. Mas, pelo contrário, o exemplo da Europa prova-nos quanto esse trabalho é na realidade difícil. Pode dizer-se que quanto mais a história de um país, e portanto a própria história da própria classe operária, é rica, mais reminiscências, tradições e hábitos nela se encontram;” (Trotsky, 1923)

O SWP não dirigiu a revolução nos EUA, nem o CPUSA (7) , nem nenhuma organização que veio da tradição marxista. Hoje, a esquerda organizada é muito minoritária nos EUA, mais ainda as organizações revolucionárias. Décadas depois desse debate entre Trotsky e os dirigentes do SWP, surgiram nada mais nada menos que Martin Luther King Jr., Malcolm X e os Panteras Negras. Estes últimos, uma organização negra que lutava contra o racismo e pelo socialismo. Uma organização que fez aliança com brancos, porém, nas palavras de seu próprio fundador, Huey P. Newton:

“No que diz respeito ao nosso partido, o Black Panther Party é um partido totalmente negro, porque pensamos, como Malcolm X pensava, que não pode haver unidade entre brancos e negros até que primeiro exista unidade entre os negros.” (8)

Pode se alegar que Newton era identitário e que estava errado, ou, entender que  temos aqui um sintoma da insuficiente importância dada pelos revolucionários brancos dos EUA daqueles tempos à luta antirracista, levando os negros a construírem sua própria organização revolucionária. Seria um erro enorme classificar este tipo de movimento como regressivo, ainda mais levando em conta seu programa, o contexto em que formou-se, a crítica que este faz ao “nacionalismo cultural”, ao essencialismo da identidade, confrontando-se diretamente com organizações que tinham essas ideologias. O Partido dos Panteras Negras não buscava arrancar as máscaras brancas para encontrar o verdadeiro ser negro por trás destas, mas sim construir uma luta efetiva em aliança com o conjunto de oprimidos e explorados contra o racismo e pelo socialismo. Mesmo assim, não ignorava a questão da identidade, tinha suas próprias formas comunicativas, uma estética comum em seus jornais e até vestimentas características. É um exemplo interessante para se pensar como tais questões podem ser equilibradas, combatendo uma visão que essencializa certas identidades ao passo que afirma-as em seu movimento histórico e político na luta por emancipação. 

 

Notas 

  1. Não deve contentar-se, portanto, em mergulhar no passado do povo para encontrar nele elementos de coerência para enfrentar as empresas falsificadoras e pejorativas do colonialismo. Deve trabalhar-se, lutar com o mesmo ritmo que o povo para conseguir o futuro, preparar o terreno onde crescem já rebentos poderosos. A cultura nacional não é o folclore, onde um populismo abstracto quis descobrir a verdade do povo. A cultura nacional, nos países subdesenvolvidos, deve situar-se, pois, no centro da própria luta de libertação que esses países realizam. Os homens de cultura africana que lutam, todavia, em nome da cultura negro-africana, que multiplicaram os congressos em nome da unidade dessa cultura, devem compreender, hoje, que a sua actividade se reduziu a examinar algumas peças ou a comparar alguns sarcófagos. (Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, p. 245, 246).
  2. [Desde que] os negros compreenderam que eram perfeitamente capazes de resolver eles mesmos seus próprios problemas, de evoluir muito à vontade na política mais complexa, de elaborar teses revolucionárias audaciosas e as aplicar […] eles renunciaram aos trajes, aos enfeites e às quimeras que queriam fazê-los crer que não passavam de africanos. […] Auxiliados pelas ideias de DuBois, de Richard Wright, de Fanon, de Malcolm X, de Newton e Seale, eles [os Panteras Negras] compreenderam que um povo cortado muito tempo de sua verdadeira tradição corre o risco de se perder na que ele crê ter reencontrado e que se apresenta, na verdade, sob forma de um folclore muito tranquilizador para a nação opressora. Os Panteras, contra isso, escolheram, deliberadamente, o projeto revolucionário. (Angela Davis, 1970, retirado de <https://blogdaboitempo.com.br/2018/05/10/dialetica-negativa-e-radicalismo-negro-angela-davis-nos-anos-1960/#_ftn39> Acesso em 19/09/2020.(
  3. Ver também <https://esquerdaonline.com.br/2018/02/28/pantera-negra-e-o-partido-panteras-negras/>
  4. Se trata do documentário “Dentro da Minha Pele”
  5. Organização trotskysta da primeira metade do século XX nos EUA, dirigida, dentre tantos, por James P. Cannon.
  6. Não podemos dizer que será reacionário. Não é reacionário. Não podemos lhes dizer que criem um Estado porque isso enfraquecerá o imperialismo e será bom para nós, os trabalhadores brancos. Isso seria contrário ao próprio internacionalismo. Não podemos lhes dizer “fiquem aqui, mesmo às custas do progresso econômico”. O que podemos dizer é: “cabe a vocês decidir. Se querem uma parte do país, tudo bem, mas não queremos tomar essa decisão por vocês”. (Trotsky, 1939)
  7. Partido Comunista dos Estados Unidos.
  8. Huey Newton fala ao “The Movement” sobre o partido dos Panteras Negras em 1968.  Disponível em: <https://www.novacultura.info/post/2017/05/08/huey-newton-fala-ao-the-movement-sobre-o-partido-dos-panteras-negras>.

 

Referências

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra, 1961,editora Ulisseia, 1ª ed.

LEON, Trotsky. Autodeterminação para os negros dos EUA, Coyacán, 1939. In: A Revolução e o Negro. Iskra. São Paulo. 2ª ed. 2019

________________. Questões do Modo de Vida, 1923. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1923/vida/index.htm> Acesso em 18/09/2020.